Correio dos Açores – Esta colecção de livros tem por base uma investigação que já se iniciou em 1999, em Santa Maria.
Sérgio Ávila (Investigador e coordenador de “Os Fósseis de Santa Maria”) – É uma investigação feita por uma equipa multidisciplinar, com mais de 80 investigadores, que já passaram por aquela ilha. São geólogos, paleontólogos, biólogos, oceanógrafos, uma série de diferentes áreas da Ciência que têm sido utilizadas por nós para responder a uma série de perguntas. No fundo, é uma série de abrir e fechar portas, e queimar etapas, em Santa Maria.
O resultado desta experiência tem sido aplicada nessa ilha, através de uma série de produtos direccionados para o mercado turístico. Numa primeira fase, foi a Rota dos Fósseis. Depois a construção de um museu, chamado Casa dos Fósseis. Numa fase posterior, após a inauguração deste museu, apresentamos ao Governo Regional mais uma série de propostas, entre as quais saliento a ideia de, com o apoio da Associação Internacional de Paleontologia, edificar em Santa Maria, o primeiro PaleoParque a nível mundial. Isto foi feito em 2018. Numa fase subsequente, entregamos ao Governo Regional – na fase final do anterior, e neste momento já está a ser implementado pelo actual – o plano de acção e gestão do PaleoParque de Santa Maria, que está, neste momento, em consulta pública. Este foi o grosso dos produtos que resultaram da investigação feita por muita gente ao longo de mais de 20 anos, na ilha de Santa Maria.
Por outro lado, apostamos também na componente de divulgação científica, e é aí que surgem estes livros. Este é já o terceiro volume, de uma colecção de livros intitulada “Os Fósseis de Santa Maria.” Já estamos a trabalhar no 4.º e 5.º volume. O 4.º será publicado no próximo ano.
Que conclusões tem esta investigação permitido retirar?
Esta investigação abarca desde a Geologia, Paleontologia e Biologia. Tem sido transversal e tem respondido a muitas questões. Por um lado, por exemplo, elucidou a história geológica de Santa Maria. Conseguimos rever as datações. Tornámos Santa Maria mais jovem. Antes, as datações das rochas mais antigas de Santa Maria apontavam para os 8 milhões de anos, e hoje em dia sabemos que não é. A idade destas rochas mais antigas anda à volta dos 6 milhões de anos e estes dados são corroborados pelo trabalho independente de duas equipas de investigação. Há congruência nos resultados. Conhecemos a história geológica da ilha.
Os estudos dos seus fósseis também em sido muito importante, porque nos dão pistas em termos de alterações climáticas. Sabemos efectivamente o que é que se deve esperar, porque a análise do estado interglacial e da fauna correspondente a esta altura, numa época mais quente cerca de dois graus centigrados, em média, do que as temperaturas que registamos hoje nos Açores, e que se verificou há 120 ou 130 mil anos atrás. As indicações que temos é que iremos esperar uma subida, em altitude, de espécies tropicais, típicas de climas mais quentes, nomeadamente da zona do Senegal, portanto, a costa Africana, mas em particular, e com maior relevo, das ilhas de Cabo Verde, que vão atingir as Canárias, vão passar pela Madeira, e algumas delas irão chegar aos Açores.
O nível das águas vai subir. Pode subir tanto quanto 10 metros, que foi a altura atingida, no máximo, do último estádio interglacial, há 120/130 mil anos atrás. Obviamente, isto terá impacto, quer sobre as populações, quer sobre os ecossistemas, quer sobre a própria linha de costa das ilhas dos Açores, e no que toca a muitas das infraestruturas portuárias, não sei como isto será possível de ser resolvido. É isto que teremos de esperar, com as alterações climáticas globais, nos próximos 50, 100, 200 anos, isto irá certamente acontecer.
O estudo de Santa Maria tem também permitido colectar dados que nos ajudam a prever acontecimentos futuros.
Os nossos dados permitem-nos dizer, com um elevado grau de certeza, o que será de esperar, em ecossistemas insulares localizados a várias altitudes e o que é que irá acontecer à fauna e flora litorais, em particular, à fauna e flora litorais marinhas.
Os dados de registo fóssil são muito interessantes, porque são também cruciais para esclarecer problemas relacionados com as filogenias, ou seja, as relações entre várias espécies pertencentes a diferentes famílias de animais e de plantas no meio marinho.
O que nos traz este 3.º volume “Os Fósseis de Santa Maria – O Trilho Marítimo da Rota dos Fósseis”?
O primeiro projecto que foi por nós idealizado e apoiado pelo Governo Regional foi a implantação e implementação, também, de uma rota dos fósseis, que em Santa Maria é composta por cinco trilhos, quatro deles em terra, e um marítimo. O trilho marítimo é um trilho que prevemos que seja homologado em 2024, ou 2025, num trabalho conjunto de duas secretarias, a responsável pelo turismo, e a responsável pela área do ambiente. Estas duas secretarias estão a trabalhar em conjunto para tornar realidade aquilo que hoje em dia não existe em nenhuma das ilhas do Atlântico. Será um trilho que permite aos turistas visitar e desembarcar em determinados lugares ao longo da linha de costa de Santa Maria, durante uma volta guiada por guias credenciados pelo PaleoParque de Santa Maria. Quando pararem ao largo da costa, ficam sujeitos a uma explicação dada pelos guias, que vão explicar os conteúdos que estão neste livro.
Este livro é muito prático e é direccionado para as empresas e o mercado marítimo turístico, mas também para os turistas que tenham a pretensão de saber mais. Neste livro é-lhes facultado este conhecimento através de um guia detalhado desta volta ao redor de Santa Maria e exemplificando quais são os lugares e quanto tempo se deve parar em determinados sítios e quais são os conteúdos que aí devem ser explicados. É um guia ilustrado por muitas fotografias, com muitos esquemas. Tem ainda a particularidade de ter um glossário e bibliografia científica para os mais curiosos e que pretendem saber mais sobre estes assuntos.
No fundo, representa o esforço da nossa equipa de investigação em transformar o conhecimento científico em algo que seja directamente utilizado pela comunidade em geral, e, em particular, pelas empresas, vindo daqui retorno económico para Santa Maria e para o seu tecido económico.
No que toca a esta investigação, que trabalhos estão a realizar agora?
Neste momento, temos em Santa Maria vários alunos de doutoramento. Tenho quatro alunos que estão a trabalhar com os fósseis, directa ou indirectamente. Daqui estão a resultar múltiplos e variados artigos em revistas internacionais da especialidade. Só após a publicação destes dados em revistas especializadas, é que podemos transmitir ao público os resultados destes artigos.
Isto é um trabalho em contínuo de uma grande equipa de investigação ao longo de mais de duas décadas. Há muitos já que o trabalho que temos feito em Santa Maria despertou o interesse da comunidade científica. Há o reconhecimento da comunidade científica a nível internacional. Os meus colegas dizem-me que graças ao trabalho de todos nós, Santa Maria, neste momento, é, talvez, uma das cinco ilhas, a nível mundial com maior quantidade de conhecimento produzido em várias áreas, embarcando a Geologia, a Paleontologia, e o conhecimento, também, da biodiversidade e da genética de populações terrestres e marinhas naquela ilha.
É uma ilha com um elevadíssimo conhecimento científico e que tem estado a servir de mote para, através da experiência que a nossa equipa adquiriu ao longo destes 20 e poucos anos de investigação, ser transplantada a estratégia, a nossa visão e a nossa experiência. Temos estado a receber convites – e estamos já a trabalhar – por parte de vários colegas dos restantes arquipélagos da Macaronésia. Nos últimos quatro, cinco anos temos expandido os nossos trabalhos para os arquipélagos de Cabo Verde, Madeira e Canárias. No próximo ano, iremos também às Ilhas Selvagens. Estamos a fazer um trabalho interdisciplinar e interarquipelágico e que tem um enorme interesse científico, mas que também é reconhecido por parte do poder político, dos resultados práticos que daqui podem advir e os resultados práticos têm retorno económico.
É isto que as populações destes arquipélagos realmente querem, é que haja uma utilização sustentável, com uma conservação evidente dos seus recursos naturais, mas sem colocarmos cercas. Ou seja, mediante uma série de regras que têm de ser seguidas e implementadas, através da transferência do conhecimento científico para guias certificados. O que é um facto é que todo este património pode e deve ser valorizado, quer pelas populações locais, quer por várias empresas, permitindo que estes lugares sejam visitáveis mas havendo o usufruto por parte da população e dos turistas, com retorno económico para quem está a trabalhar estas áreas do nosso conhecimento.
Utilizando a nossa experiência, estamos a alargar a investigação a outros lugares menos explorados, como é o caso da ilha de Porto Santo, por exemplo, ou Tenerife, Lanzarote, Gran Canária. Em Cabo Verde, muito pouco é conhecido acerca dos seus fósseis. Temos muito trabalho de campo já feito nesse arquipélago. Neste momento diria que Santa Maria está numa fase já muito madura da nossa investigação e Cabo Verde está na sua juventude. São estes contrastes entre arquipélagos que me permitem dizer que há ainda muita coisa para fazer na Macaronésia, e há muitas perguntas que precisam de ter uma resposta.
Esta investigação em Santa Maria tem, portanto, sido motor de arranque para outras investigações noutros arquipélagos?
Sim, foi precisamente isso. Foi o facto de termos reunido uma grande quantidade de informação, uma larga experiência de trabalho de campo em ilhas oceânicas, que nos permitiu, por um lado, chamar a atenção da comunidade científica, e, numa fase mais tardia, dos responsáveis políticos.
Há evidência que a nossa equipa e investigação produz resultados, trabalho e tem uma preocupação que é haver sempre, tanto quanto possível, um impacto económico decorrente desta investigação. Esta nossa preocupação com a economia local atrai o interesse dos governos nacionais ou regionais, e, nessa medida, tem permitido alavancar e apoiar também, quer do ponto de vista financeiro, quer do ponto de vista logístico, as investigações que têm sido efectuadas nestes arquipélagos.
Que questões irão abordar os próximos volumes?
O 4.º volume será acerca de duas jazidas, que vamos sugerir não serem abertas a visitas turísticas, porque têm acessos muito complicados. No entanto, têm interesse, fazem parte da Rota dos Fósseis e queremos fazer a sua divulgação.
O 5.º volume será um guia prático dos fósseis mais comuns existentes em Santa Maria. Será muito ilustrado, com todas as espécies fósseis fotografadas e identificadas, com muitas informações acerca delas e com ligação, também, a uma base de dados em que temos estado a trabalhar: a base de dados da Paleodiversidade da Macaronésia.
Mariana Rovoredo