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Foto Jornalista Rui Caria faz documentários fotográficos com guardador de rebanhos e sobre o último chocalheiro dos Açores no seu mais recente trabalho

Rui Caria, premiado fotojornalista que reside na ilha Terceira, documentou no seu mais recente projecto um guardador de cabras e o último chocalheiro dos Açores. O fotógrafo e jornalista, natural da Nazaré, foi desafiado por uma marca multinacional a realizar um trabalho documental através da lente de uma câmara de telemóvel. O projecto surge no âmbito do “Xiaomi Master Class,” sob o mote ‘redescoberta’, que tem desafiado fotógrafos profissionais de todo o mundo. Deste mais recente projecto e da convivência com os açorianos cujos trabalhos documentou, Rui Caria leva consigo, e tenta transmitir através das suas imagens, a mensagem de que tudo tem o seu tempo, assim como acontece quando o chocalho vai ao lume, ou quando as cabras são ordenhadas, conta, em entrevista ao Correio dos Açores.

Correio dos Açores – Foi desafiado pela empresa multinacional Xiaomi a documentar um tema à sua escolha, sob o mote ‘redescoberta’, com apenas um telemóvel. Decidiu descobrir a história de um guardador de cabras, João Rocha, e do último chocalheiro dos Açores, António Costa, ambos da ilha Terceira. Tratam-se de profissões identitárias da cultura açoriana e portuguesa, mas que se estão a perder. Como surgiu esta oportunidade? Conte-nos um pouco sobre este novo projecto.
Rui Caria (fotojornalista) – O telefone por vezes toca, e desta vez tocou com mais um desafio. Desta vez seria fazer, com um telemóvel, um trabalho documental. A marca deu-me liberdade total para fazer o que quisesse. Seria um trabalho para ser dividido em três master classes, espécies de lições sobre Fotografia, que estão a ser feitas com vários fotógrafos de todo o mundo e o tema é constante, a ‘redescoberta’. Fui à procura de duas profissões que penso acabarem num futuro mais ou menos próximo, que é o guardador de cabras e o chocalheiro. O senhor António é já o último chocalheiro nos Açores, e presumo que a nível nacional não haja muitos mais, e são pessoas com alguma idade. Pelo que vou vendo, os mais jovens não estão interessados em aprender esta arte. Um dia não haverá ninguém a fazer chocalhos. Fui à redescoberta destas pessoas e destas profissões, que fazem com toda a dedicação. Também é uma forma de aprender coisas novas, porque aprendemos sempre, quando vamos atrás destas histórias e isso tem um valor muito grande.
Estive um dia com cada um deles. Como são master classes filmadas, que vão ser apresentadas nos canais da Xiaomi, em todo o mundo, estas reportagens que fiz foram observadas por uma equipa de filmagens que esteve quatro dias comigo. A equipa não teve intervenção nenhuma nas reportagens, apenas foi observadora e filmaram-me a trabalhar. O que se vai ver é uma espécie de bastidores. O trabalho consiste em master classes, em que eu explico como é que faço os meus trabalhos, como abordo as pessoas, como é que as fotografo, como trato as fotografias depois, a publicação, a escolha, etc. É a passagem pelo processo fotográfico, desde a preparação do trabalho, à sua edição, publicação. É este circuito, em três episódios, que vou demonstrar. No dia 21 de Novembro, vai haver uma master class presencial em Lisboa, onde vou estar a falar com as pessoas sobre o trabalho que fiz e fecha-se este ciclo deste desafio que achei bastante curioso. É giro ver as marcas de telemóveis a interessarem-se pela fotografia desta forma, a um nível de fotografia séria, de trabalho.

António Costa, terceirense de 88 anos, é o último chocalheiro dos Açores. Actualmente, os chocalhos são mais procurados como lembranças para turistas
António Costa, terceirense de 88 anos, é o último chocalheiro dos Açores. Actualmente, os chocalhos são mais procurados como lembranças para turistas


Este seu novo trabalho surge à semelhança daquilo que fez em “As Mulheres da Terra”, em que documentou o quotidiano de oito mulheres terceirenses que trabalhavam na lavoura.
Durante três meses, mais ou menos, fotografei-as, todos os dias na lavoura. É um trabalho deste género. Não sei se tem a ver com o meu interesse por este tipo de histórias, por este tipo de vidas e por estas pessoas que fazem coisas que se calhar já poucas outras pessoas gostam de fazer, diria eu. A lavoura é uma profissão bastante dura, que nem toda a gente está disponível para fazer, sobretudo as novas gerações, apesar de haver pessoas bastante novas a fazer isso. São trabalhos duros e gosto de explorar estas histórias e vidas, documentar coisas que receio que possam deixar de existir, passados alguns anos, e gosto de pensar que aquilo fica, de alguma forma, registado, o trabalho dessas pessoas, para as próximas gerações verem como é que se fazia aquele tipo de trabalho. É neste sentido arqueológico de deixar alguma coisa feita para que outros vejam.

Neste novo projecto, documentou o dia-a-dia e trabalho de João Rocha, um guardador de cabras, e António Costa, o último chocalheiro dos Açores. Como foi a experiência?
O João Rocha tem 61 anos e o seu dia-a-dia é ir ter com as cabras de manhã, ordenhá-las e cuidar delas. Anda com elas pelas estradas da ilha. É diário, não há forma de não tratar delas todos os dias. É um trabalho que não permite grandes férias, e é semelhante ao trabalho das mulheres na lavoura. Também é um trabalho bastante duro e esteja a chover, ou a fazer sol, os animais precisam de ser tratados e cuidados. A natureza não permite grandes descansos. Se está a chover vai fazer-se o trabalho, se está a fazer sol, também. O que me agarra, também, nestas histórias, é poder olhar para estas pessoas e perceber que elas têm uma vida dedicada, com uma abnegação e desprendimento total das coisas que temos como certas, do conforto, até. São pessoas que fazem coisas que nem sequer muito vantajosas em termos económicos, por aquilo que percebo. São pessoas com vidas regulares, que trabalharam a vida toda, de uma forma ou de outra, com animais – sobretudo o João, o guardador de cabras.
Se falar do senhor António Costa, chocalheiro, que tem 88 anos, faz um objecto que já nem sequer quase é procurado para o fim que tem, que é colocar no pescoço das vacas e das cabras, agora é mais um objecto de adorno para turistas, que se compra como uma lembrança e já não traz grande rendimento. Faz aquilo pela paixão que tem, e por se divertir a fazer. Ele disse-me, precisamente, que antigamente fazia quatro ou cinco por dia, e agora faz um ou dois, e faz sobretudo de manhã, apenas porque gosta de fazer e para não estar parado. É uma profissão protegida pela UNESCO, que decidiu caracterizar a arte de fazer chocalhos como uma tradição a manter. Isso faz com que o trabalho dele seja ainda mais interessante. No continente, acho que já há muito poucos chocalheiros.

João Rocha, também da Terceira, é um guardador de cabras, uma actividade cada vez menos comum. Tal como na lavoura, nesta profissão não há férias nem dias de descanso, faça chuva ou faça sol


Que mensagem é que estas pessoas lhe transmitiram e que levou consigo?
A mensagem para mim, nestas situações, é o tempo e andar em busca do tempo. Já não há tempo para nada. As conexões de rede desconectam as pessoas, cada vez mais. Apesar de parecer que estamos todos ligados, há um desligar. Acho que o tempo é o que busco nestes trabalhos e por isso é que digo que precisaria de mais tempo para estar com estas pessoas.
Se quisesse dar um título a este trabalho seria “Tempo”. Isto foi a redescoberta do tempo. Estas pessoas têm trabalhos que não podem ser feitos depressa. O pastoreio e a ordenha das cabras têm o tempo certo. Tem de ser feito naquele tempo. Não há inteligência artificial para aquilo. Com os chocalhos é igual. O chocalho tem o seu tempo e quando o senhor António leva um chocalho ao fogo, para ele abrir e soldar, a solda derrete ao sabor do lume. Não podemos apressar aquele processo. Isso é fantástico, porque permite-nos pensar que há coisas que levam o seu tempo. Se quisermos transformar isso num mantra de vida, a verdade é que tudo tem o seu tempo, embora nós aceleramos as coisas, as coisas às vezes abrandam-nos também.
Com um objecto muito evoluído como um telemóvel, documentar um trabalho quase ancestral… acho que estas ligações são metáforas suficientes para eu definir este processo todo como uma busca do tempo. Foi mais ou menos isso que fui fazer, tanto com o senhor João, como com o senhor António. Fui à procura de como é que eles gerem o tempo, como é que o tempo os gere a eles, também, e o que é que isso me pode fazer a mim. Aprendo sempre com estes trabalhos.

“Num trabalho destes, em que estou à procura de pessoas e do que elas fazem, para contar as histórias delas, não há mal em criar intimidade. Na verdade, acho que até é vantajoso para a história,” considera o fotógrafo Rui Caria (à esquerda) sobre a sua relação com as pessoas que documenta.

Enquanto fotojornalista, que relação estabelece com estas pessoas cujas vidas e trabalhos documenta? Tem de manter uma certa distância, mas ao mesmo tempo tem também de criar proximidade e confiança com elas?
Estes conceitos de jornalismo da isenção e da distância que é preciso manter do nosso objecto e do tema que estamos a explorar é verdade, faz parte do jornalismo, da ético, porém, a vida vai nos ensinando que podemos escolher outros caminhos, que não prejudiquem a ética e que também não prejudiquem o resultado do nosso trabalho e aí entra a parte documental do trabalho. Acho que podemos quase nos incluirmos na história, sem interferir nela. É este tipo de jornalismo que me agrada mais, hoje em dia. Há um histórico na minha pele que me permite estar nisto de uma forma mais consciente e tranquila em relação aos conceitos da ética, da distanciamento e de isenção. Por exemplo, aprendemos isso num cenário de guerra. Na Ucrânia, não conseguimos ser absolutamente isentos, não é humanamente possível, por isso aí o jornalismo cai por terra, em termos conceptuais. Mas acho que apesar de tudo consegui fazer um trabalho interessante que não prejudicou os espectadores.
Num trabalho destes, em que estou à procura de pessoas e do que elas fazem, para contar as histórias delas, não há mal em criar intimidade, na verdade, acho que até é vantajoso para a história, que ganha mais com isso. Ninguém pode falar de factos sobre um chocalheiro, ou sobre um guardador de cabras. Há coisas que importa aos factos, e outras que os factos são irrelevantes e não contam para a história. O jornalismo está cada vez mais chegado ao story-telling dos americanos e nos somos “animais” de ouvir histórias. São as histórias que nos fazem imaginar mundos e criar coisas novas, e é isso que eu gosto de fazer.
Mariana Rovoredo

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