O lançamento do mais recente livro de Carmen Garcia aconteceu no passado dia 7 de Novembro em Ponta Delgada. A obra organizada por Isabel Alçada é o resultado de um conjunto de ensaios da coluna “Tanto faz não é resposta” do jornal Público. A sua vinda aos Açores foi motivada pelo III simpósio do Dia do Cuidador promovido pela Santa Casa da Misericórdia na Ribeira Grande, onde foi oradora. Já publicou uma série de livros infantis e, em 2022, lançou o livro “A Última Solidão” que coloca o tema da velhice e a institucionalização dos idosos numa perspectiva única em Portugal.
A apresentação nacional de “Tudo o que ouço é coração” da enfermeira Carmen Garcia decorreu na Livraria Letras Lavadas. Desde a alteração dos clássicos da Disney, até ao actual exagero presente nas festas de aniversário das crianças, que se pode ler no ensaio “Hoje é dia de festa”, houve espaço para percorrer alguns dos temas presentes no livro e também para a partilha de histórias entre colegas de profissão.
A obra foi apresentada pela enfermeira Patrícia Tavares, da Equipa Intra Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do hospital de Ponta Delgada. Escolheu as palavras “compaixão” e “honestidade” para classificar esta colectânea de crónicas escritas de 2019 a 2022 “que acompanham a situação do mundo e que tocam qualquer um de nós”. Adianta que o ensaio que dá o título a este livro “é a porta de entrada ao coração de Carmen, que nos faz apaixonar pela pessoa e escritora focando a nossa atenção para o resto do livro.”
“Ser mãe do Pedro tornou-me uma pessoa melhor”
Na Livraria, Carmen Garcia disse que este livro é um elogio às suas raízes e que, se o tivesse de dedicar a alguém, dedicaria aos avós maternos: “Este livro é uma ode à liberdade. Os meus avós viveram sempre presos e é por isso que eu sempre quis ser livre.” A autora partilhou momentos caricatos da sua família e confessou que não compreende quem tem “vergonha do sítio de onde vem”, um tema que, no final, deu lugar a intervenções emotivas por parte do público que também partilhou o orgulho pelas suas raízes.
O ensaio que dá nome a este livro, “Tudo o que ouço é coração” é protagonizado pela surdez de Pedro, o filho mais novo da autora que usa um implante coclear. Confessou que “ser mãe do Pedro tornou-me uma pessoa melhor. Eu sempre quis ser livre, mas, depois de o Pedro nascer, quero que sejamos livres e felizes.” E conclui: “a surdez do Pedro ensinou-me a ouvir com o coração” e que é precisamente isso que espera que os leitores consigam fazer.
A propósito desta intervenção da autora, no ensaio pode ler-se o seguinte: “encontrei a auxiliar a levar a menina ao portão e a relatar à mãe os incidentes da manhã. E sabem o que a mãe respondeu à auxiliar? – Mesmo com tudo isso, acha que ela esteve feliz? E eu compreendi tão bem o que aquela mãe como eu queria dizer. Compreendi tão bem aquela pergunta que, por momentos, temi que tivesse saído da minha boca. Porque, no final do dia, é só isso que importa e as chamadas «mães guerreiras» são só mães, iguaizinhas a todas as outras.”
“Os velhos de amanhã somos nós”
Em 2021, a enfermeira deixou o SNS para se dedicar à sua área de vocação, a Geriatria. Trabalhou num lar de idosos até ao inicio deste ano e, actualmente, faz parte do projecto ALICE, uma parceria entre a empresa Decsis e a Universidade de Évora, destinado a apoiar e a capacitar os idosos e cuidadores informais através da utilização da inteligência artificial.
Em Outubro de 2022 lançou o livro “A última solidão”, que aborda o tema da velhice e a institucionalização dos idosos numa perspectiva até então nunca feita em Portugal. Em conversa com o jornal Correio dos Açores, a autora disse que este livro “serviu para acordar algumas vozes. No meu serviço diz-se muito a frase ‘agora é um projecto para gestão abdominal’ que é, como quem diz, isto agora é para empurrar com a barriga. Mas não podemos continuar a empurrar com a barriga a questão do envelhecimento. A gestão abdominal tem de acabar porque nós temos um problema gigante entre mãos.”
O primeiro passo é identificar o problema e o livro mostra que os idosos não são, com tendemos a tratá-los, um grupo homogéneo: “Porque quando se diz “idoso”, “idosos” são um grupo. Em “A última solidão” os idosos têm uma cara, um nome, uma família e, quando assim o é, começamos a olhar para o problema de outra forma e na sua real complexidade”
Adianta que temos de resolver os problemas destas pessoas “porque um dia a Maria, a Teresa e o João vamos ser nós. Se não o fizermos por amor aos mais velhos, ou por uma questão de gratidão e de moral, então que o façamos por egoísmo porque os velhos de amanhã somos nós e temos de pensar que, se as coisas continuarem assim, a nossa velhice vai ser uma miséria. ‘Filho és, pai serás’, a minha avó dizia muito isto. O livro serviu para começarmos a falar destas coisas.”
III Simpósio do Dia do Cuidador no Teatro Ribeiragrandense
A vinda à Região foi motivada pelo III Simpósio Dia do Cuidador, onde Carmen Garcia fez parte do quadro de oradores. Quando questionada acerca da importância deste simpósio dedicado aos “novos desafios do cuidar”, diz-nos que, apesar da Região Autónoma dos Açores estar “mais protegida” neste aspecto, “somos um país que está a envelhecer a um ritmo vertiginoso, com uma desproporção brutal entre o número de idosos e o número de jovens. Quanto mais a população envelhece, mais desafios surgem.”
Segundo a enfermeira, um dos maiores desafios que temos entre mãos é a demência: “A percentagem de pessoas que chega aos lares com demência já ultrapassa os 40%. E quando temos de falar destas questões: o modo como devemos falar com uma pessoa que tem demência; o que é que devemos fazer quando ela se descontrola e quais é que são os truques na comunicação, noto sempre que as pessoas estão muito sedentas desta informação porque têm pouca formação.”
“O erro de Aristófanes”
O tema que levou Carmen Garcia à Ribeira Grande foi “O erro de Aristófanes – Infantilização dos idosos e as suas consequências” e diz-nos que este título aponta para a frase do dramaturgo grego: “Os velhos são duas vezes crianças” que “é a pior que podia ter sido escrita, mas é uma aberração que persiste há quase 2.500 anos”.
Explica que a ideia que esta frase carrega faz com que se olhe para os mais velhos como se fossem crianças e “legitimou-nos a tratá-los como tal”, um erro que não podemos deixar que se continue a perpetuar: “Os idosos não são crianças, não são nada que se pareça com crianças. Quando estão cognitivamente bem são donos e senhores das suas vidas e têm capacidade de decidir sobre as suas vidas. Sobre os meus filhos tenho de decidir porque, caso contrário, eles vão de t-shirt para a escola em Dezembro. Sobre os mais velhos não é preciso. Eu acho que nós aproveitamos muito esta ideia de Aristófanes para decidir por eles, para impor aquilo que é nosso. Eles não são como as crianças, e este é um erro muito grande na prestação de cuidados.”
“A insularidade não fez ninguém parar”
Confessa que não conseguiu ver muito da ilha de São Miguel e que aquilo que leva de cá são as pessoas “genuínas” com quem se cruzou. Adianta que “é a primeira vez que venho aos Açores, o que é uma verdadeira vergonha, mas, infelizmente, é mais caro voar do continente para os Açores do para França. O que é uma coisa perfeitamente indecente, os Açores são Portugal.”
Afirma que a realidade de cuidados paliativos da Região “faz inveja a muitos sítios do continente, para não dizer todos. Vi projectos muito interessantes e acho que, os Açores, tal como a minha Região, que é o Alentejo, distrito de Évora, sofrem do mesmo preconceito: toda a gente pensa que lá não se passa nada, mas depois vamos aos sítios e percebemos que há tantas pessoas a fazer coisas tão boas e tão bonitas. É óptimo perceber que a insularidade não fez ninguém parar, tal como ser do interior não nos faz parar e que, pelo contrário, faz-nos ter ideias, projectos e andar pata a frente. Estou a gostar muito daquilo que estou a ver nos Açores,” conclui.
Daniela Canha