Martim Moniz, Como o desentalar e passar a admirar, por José Ferreira Fernandes, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, dá-nos um olhar pessoal sobre um lugar/região que vive há décadas num tremendo desconforto como espaço histórico de deslumbrante e enigmática paisagem com uma envolvente de mamarrachos e uma estrambótica ocupação da praça que dá arrepios. Recordo em 1951 o Teatro Apolo, já à beira do camartelo, num ambiente de passado mal gerido, a igreja do Socorro, como em miúdo também frequentei o Cinema Piolho, de nome Salão Lisboa, e o espanto que senti vendo passar o elétrico em direção ao cemitério do Alto de S. João por debaixo do Arco do Marquês do Alegrete. Creio que os paisagistas, urbanistas, presidentes da edilidade, olissipógrafos, nunca se entenderam muito bem nesta culminância da Av. Almirante Reis, as bermas da Mouraria e seus caminhos para S. Tomé e rua do Benformoso, por um lado, e toda aquela encosta que decliva para S. Domingos e que sobe para o Desterro. Deitava-se abaixo sobras do terramoto e teatros, reformavam-se palácios, e depois os autores da terraplanagem ficavam embasbacados com o terreno ermo que veio a servir de parque automóvel, de teatro abarracado e que deu origem a dois centros comerciais que desfiguram a paisagem, não houve coragem de limpar do terreno a Senhora da Saúde, que lá se aguenta perto da rua do Capelão, e de paredes meias com pavilhão de vendas multiétnico. O espantoso de tudo é que a malta de dezenas de países que aqui vêm buscar dinheiro para mandar para as famílias e até segurança que não encontram nas pátrias por ali circulam, mercadejam, nas redondezas pernoitam e durante o dia circulam pela praça, certamente atraindo a curiosidade dos muitos milhares de turistas que por ali vão tomar o elétrico 28.
Gosto muito do olhar de Ferreira Fernandes, dos seus comentários ousados para que se encontre uma solução para este Martim Moniz que se transformou numa marca d’água do Portugal universal. “Este livrinho não é para traçar riscos na cidade, não sou arquiteto, urbanista, político ou visionário. É só para relembrar o largo pelo tanto que ele merece. Simples lisboeta, instado pelas autoridades camarárias a pronunciar-me como qualquer cidadão, digo o que há para dizer: oxalá!” E entram em cena o boxeur Blarmino, que deu um excelente filme de Fernando Lopes, em 1964, já a igreja do Socorro e o palácio do Marquês do Alegrete tinham sido arrasados a seguir à Segunda Guerra Mundial, bem como o Teatro Apolo e o Arco do Marquês do Alegrete. Tudo arrasado, agora é a minha vez de recordar, meteram para ali uns armazéns com lojas de ourivesaria, sapataria, flanelas e roupa de cama, autênticos pavilhões a ocupar a praça que aguardava uma solução estética. Em frente a S. Domingos cresceu o Hotel Mundial, com saídas e entradas paradoxais: uma saída que passava junto à abside de S. Domingos, as lojas Porfírios, com saídas para a Travessa Barros Queirós e Praça da Figueira; do outro lado, sai-se para o largo do Martim Moniz, com vistas para um correnteza de prédios comerciais de estética duvidosa, viramos à direita entra-se num local histórico de nome Poço do Borratém, ou virando à esquerda fica-se confrontado pela Mouraria, o visitante detém-se na praça, e pode ficar de frente de construções de traça louvável e harmoniosa que pode levar para o Desterro ou enfiar, infletindo à esquerda para a colina de Santana. Mas o paradoxal e grotesco da praça ali está, de pedra e cal.
Ferreira Fernandes socorre-se de imagens antigas, fica-se abismado diante de uma fotografia tirada por Judah Benoliel, em 1958, a capelinha da Senhora da Saúde e a praça arrasada, o contraste é brutal com outra foto revelando prédios de habitação, tudo desaparecido.
E houve o Martim Moniz das tascas e fadistas, no fundo no sopé da Mouraria, recordam-se as imediações, como e quando António Costa, então presidente da Câmara, se instalou num Intendente então de pouca fama, fala-se da camioneta fantasma e do assassinato do Almirante Machado dos Santos, dos espantos da Mouraria, do longo percurso histórico desta praça que entupia a cidade, não faltam os sonhos megalómanos de edis que aqui pretenderam fazer experiências revolucionárias, consta que se quer avançar para aprazível jardim, um misto de local de passagem e de repouso (coisa difícil de acreditar), Ferreira Fernandes recorda o passado dos teatros e não se esquece de referir o Bolero Bar, antro onde se misturavam as prostitutas com os intelectuais, tinha engraxador e o bife da casa. Depois aconteceu a implantação dos centros comerciais, com cheiros a especiarias e têxteis asiáticos, faz-se o reparo às esculturas de Gracinda Candeias na estação do metro de Martim Moniz e até ao trabalho artístico de Eduardo Nery, obviamente que se fala da Severa e do Fado Malhoa e assim avançamos para o grande final, o cronista e repórter sonha que esta praça, riquíssimo património do passado, mal enjorcada, poderá ter um futuro ridente, um cruzamento para dezenas e dezenas de pessoas de outros povos aqui se encontrarem, até mesmo abrirem tenda, uma coisa assim:
“O milagre é o dia, um primeiro domingo de maio, em que um político português – um de qualquer cor, mas inteligente, solidário e ambicioso – se meter na posição de Nossa Senhora da Saúde. Perguntaram-lhe porquê e ele confessou: ‘Procuro um upgrade na minha vida pública, quero tudo!’ O facto é que durante a procissão ele teve uma visão. Confirmando que o que ele queria mesmo era fazer em grande, candidatou-se, em 2025, a presidente da Câmara de Lisboa. Que maior glória pode ter um político português do que ter na mão o destino da praça Martim Moniz?”
Ferreira Fernandes tem um sonho bom ao gerar este espaço de diálogo entre pessoas, num tu cá, tu lá, gente de vários orientes, então mulheres que não aceitam a segregação nem a discriminação, aqui se reunirem para que todas as mulheres sintam o sabor da grandeza de que é aprender a ler e ganharem autonomia…
É um sonho de tornar esta praça um encontro de todos os continentes, uma forma de sarar feridas de tanto derrube de igrejas, palácios, teatros e de centros comerciais de mau gosto, mas onde felizmente circulam gentes enérgicas e mexidas. Não passa de um sonho, o que se escreve neste livro é a tal viagem a uma praça confusa e fascinante, praça radial e radiosa, lugar de fado e do cinema português, dos marialvas, artistas e imigrantes. De população antiga e de recém-chegados. O autor tem uma certeza: o Martim Moniz saberá reinventar-se. Oxalá seja verdade.
Por: Beja Santos