“Continuamos a combater os pobres em vez de criarmos soluções integradas que os retirem da pobreza…”
O que é preciso fazer para que se acredite no Estado, e que reformas devem ser pensadas?
Cónego Manuel Carlos Alves (Reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo) – Temos de voltar aos clássicos, aos grandes pensadores do Estado e da política para entendermos os atalhos por onde nos estamos a meter e que nos podem fazer entrar em autodestruição.
É elementar, mas também importante insistir: o Estado foi criado para servir/ajudar os cidadãos na “polis”. Hoje temos a sensação, perante a maioria das decisões que o Estado toma, que os cidadãos é que estão ao serviço do Estado. Lembram-se da frase “ai!, aguenta, aguenta”? É a mentalidade dominante, e terá de ser dominada.
Por outro lado, é importante percebermos que a formação ética dos cidadãos foi gradualmente desvitalizada porque, pensou-se que bastava a lei, cumprir a lei. O problema é que não há leis perfeitas e “o lobo” está sempre à espreita. É sempre o mais forte a ditar a lei: olhem para os bancos… a cobrar taxas e taxinhas quando é preciso aumentar os lucros! Onde está o Estado?
Perante o fenómeno do abuso inflacionista, onde está o Estado? A arrecadar impostos?
A promiscuidade entre sectores da Justiça e da comunicação social é uma máquina destruidora de reputações e democracias que se esgota nisso mesmo.
No sector social, no combate à pobreza, continuamos a combater os pobres em vez de criarmos soluções integradas que os retirem da pobreza. Os pobres não se combatem, dignificam-se como pessoas. A Sociologia já estudou tanto a pobreza, tem milhares de conclusões e uma visão integrada para uma mudança social sustentada. Só é preciso ir ter com quem sabe…Veja o nosso caso: quanto já gastámos sem frutos concretos, sem conseguirmos ter sempre o rótulo dos mais pobres entre os pobres da Europa.
Temos de voltar à ética, uns e outros. Todos! E a ética do Estado é colocá-lo ao serviço do bem comum e não apenas de alguns.
O próximo ano é um ano de eleições para a Assembleia Legislativa dos Açores; para a Assembleia da República; e para o Parlamento Europeu. Como vê estas eleições e que políticas devem ser adoptadas por cada Parlamento para que os governos possam responder aos desafios com que a sociedade está confrontada?
As eleições são a festa da democracia, também tempo de muita luta pelo poder dentro dos partidos e entre os partidos e, por vezes, até entre parlamentos. E como festa da Democracia requer a participação e o envolvimento de todos e, portanto, esforço, paciência e vigilância, porque diante da complexidade da Democracia, há sempre quem chegue com soluções e propostas fáceis, tentadoras, mesmo. O que não pode acontecer é que fiquemos anestesiados por elas e devemos exigir que os partidos esclareçam ao que vêm e que programas e soluções trazem para os problemas concretos das pessoas e das famílias: como o acesso à habitação e à educação, o direito ao trabalho e a um salário digno, a proteção às famílias, às crianças e aos mais velhos… São apenas algumas questões concretas que merecem respostas sérias e não milagrosas e fáceis, como alguns populistas nos querem dar. A sociedade tem de exigir isso aos partidos.
As circunstâncias em que vivemos não mudarão de imediato; todavia, podemos olhar para a realidade de maneira nova, podemos viver com renovada paixão os desafios na construção do bem comum. A política como serviço ao bem comum significa apostar na amizade social.
Aprecio nos políticos sobretudo coragem, seriedade, audácia e capacidade de decisão. Grandes camadas sociais reagem com apreensão ou até mesmo medo perante a mudança. Há que decidir com solidez de convicções, explicando objectivos e meios para os alcançar. É precisa muita seriedade.
Com frequência se percebe que alguns parlamentos mais parecem ringues do que anfiteatros, em que quase só importa desvalorizar ou apoucar as ideias alheias. Chega-se por vezes ao cúmulo de pré-anunciar chumbos a documentos que… ainda nem estão escritos.
O que deve ser feito para pôr termo em 2024 às guerras em Israel e na Ucrânia?
Estou convencido que essas guerras só terminarão como consequência dum sobressalto civilizacional, do âmago da humanidade.
Ninguém pode esperar ganhar seja o que for com a guerra, mas todos nós podemos ganhar com a paz.
Qualquer fruto da guerra está manchado de sangue humano, é profundamente imoral, é uma loucura. E aqueles que se beneficiam tanto da guerra quanto do comércio de armas são criminosos que matam a humanidade, também a humanidade que há si mesmos.
A comunidade internacional tem de fazer uma frente glacial contra a guerra. Qualquer guerra! Todos contra um! Quem quer que seja!
A carnificina tem de parar. O mal – tenha a forma que tiver – tem de ser detido. Por isso rezo e por isso me empenho. Só a paz interessa à humanidade, ao desenvolvimento, ao respeito pelo irmão.
Com que desafios está a Igreja confrontada para 2024?
Em primeiro lugar a sinodalidade. Na Igreja existe muita gente que pensa que as soluções do passado é que respondem – com segurança – aos desafios de hoje; mas muita gente também pensa que devemos ter novas respostas, em fidelidade ao Evangelho, às questões que se colocam ao homem de hoje. E têm tanto o dever como o direito de tentar isso mesmo.
Em alguns países a Igreja está cansada de esperar, outros têm medo do futuro. O Papa Francisco percebeu os dilemas e lançou o desafio: temos de caminhar juntos, escutando-nos mutuamente – todos têm razões! – e é possível caminharmos juntos. Uns, refreando a pressa e outros, procurando acelerar o passo. Juntos é que teremos de caminhar. “Que todos sejam um como Eu e Tu somos um” pediu Jesus.
Nos Açores, passados 30 anos, estamos a retomar a caminhada do Congresso Diocesano de Leigos. O nosso Bispo, D. Armando Domingues, está a pedir a cada uma das nossas comunidades que seja protagonista da sua história, caminhando juntos em Ouvidoria, por Ilha, na caminhada única da Diocese, que ouse construir à sua volta o Reino de Deus.
Algumas comunidades, mais dependentes do clericalismo, poderão sentir desorientação nos tempos mais próximos, mas estou convencido que à medida que forem descobrindo a riqueza e a beleza do caminho, irão desabrochar e empenhar-se na missão conjunta e única.
Em termos mais pessoais, como reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo espero corresponder ao serviço que me é pedido: o Santuário é um local de encontro entre a humanidade fragilizada e um Deus que se fez homem, rico de misericórdia e que vem em nosso auxílio para nos socorrer e salvar.
Espero que o Santuário seja um lugar onde todos, todos, todos se sintam acolhidos pelo amor paternal do Senhor Santo Cristo dos Milagres e todos se sintam impelidos e amparados – como resposta de gratidão a Deus – a trabalhar na construção de um mundo melhor.