Ano novo, desafios velhos
Em cada início de ano, é costume dizer-se que “ano novo, vida nova”, uma expressão popular tradicional que encerra um sentido de renovação da esperança em dias melhores. Porém, trata-se do traçar de uma fronteira abstracta, porque o tempo é contínuo e a única descontinuidade aparente é estabelecida pelo comportamento humano, este por vezes tão desgarrado que recorre a artifícios de calendário para reconsiderar (muitas vezes, para pior) situações anteriores. No dealbar deste 2024, um ano de soma “redonda” (2+2+0+4=8), abundam como habitualmente os vaticínios sobre os meses seguintes, o que é um artifício de cálculo, considerando o carácter plurianual dos condicionantes da nossa vida: trocas e baldrocas do carrossel económico, tecnológico, geopolítico, climático/telúrico, demográfico, sanitário – “you name it”, como diriam os adeptos do inglês global – a nível mundial, europeu, nacional e mesmo regional. Num mundo interligado criaram-se interdependências tais que apenas um pequeno grupo de nações se podem intitular verdadeiramente soberanas, sendo disso prova a existência de organizações como a NATO, a União Europeia, a ASEAN, o Mercosul ou o G20. Não excluindo a ONU, um areópago a precisar de reforma urgente para se tornar eficaz, cujo atraso evolutivo é propositadamente mantido pelas maiores potências mundiais.
A necessitar igualmente de um conjunto de acções reformistas está o Estado Português, enredado desde há muito em teias burocráticas facilitadoras da vigarice de alto nível, situação agora superiormente agravada pelas baias legislativas da Comissão Europeia. Ainda que, como sabemos, as directivas europeias sirvam de desculpa para a inépcia e incompetência nacionais, de que temos múltiplos e variados exemplos na Saúde, Educação e Justiça portuguesas. A saúde do Serviço Nacional de Saúde anda abalada há anos, apesar da propaganda governamental andar a tecer-lhe elogios, enquanto assistimos à fuga de médicos e enfermeiros para o estrangeiro e o setor privado. Na origem estão causas ideológicas, começando pela redução para 35 horas do tempo semanal de serviço, aumentando a carga sobre as urgências, forçadas a recorrer a horas extraordinárias. Excedidas estas, surgem os conflitos remuneratórios e sindicais, as greves e os atropelos, situações previsíveis que podiam ser evitadas com atempada reorganização dos Centros de Saúde, quer em pessoal, querem equipamentos. A questão pesa mais ainda em ilhas pequenas e dispersas como os Açores, exigindo a aplicação de regras tipo “política comum regional” ao SRS, matéria nada fácil de gerir politicamente. Nas questões de saúde, o dinheiro é importante, mas não é tudo: meios técnicos, modernização de redes informáticas para evitar quebras na telemedicina, podem ser atractivos para elementos jovens. Senão, a desertificação do sistema será inevitável – e nem se deseja imaginar quais poderão ser as consequências.
Na Educação, submetida em Portugal a uma série cumulativa de disparates, a uma onda de construções escolares que não tiveram por base os devidos estudos demográficos e de evolução tecnológica, sucedeu-se a ausência de manutenção dos edifícios destinados ao ensino público, levando quem pode pagar a colocar os filhos em escolas privadas. A “doença” estendeu-se ao Ensino Superior, inclusive na nossa Região Autónoma, onde alguns edifícios do campus universitário de Ponta Delgada (Complexo Científico/Faculdade de Ciências, junto ao Relvão; antigo e histórico anfiteatro C, junto à Biblioteca Central da Universidade dos Açores) se vão degradando ao ponto de exigirem reparações incomportáveis. Mais cedo ou mais tarde, alguém irá pagar a futura política desta indiferença, quer dos meios públicos, quer de certos privados. É inconcebível que se invistam milhões em observatórios, centros disto e daquilo, mar-daquilo -daqueloutro por essas ilhas fora, esquecendo que um pilar fundamental da nossa Autonomia se vai corroendo com o tempo. Empurrar responsabilidades para Lisboa não é suficiente, é preciso assumir o que é a nossa missão educativa a todos os níveis, com incidência especial na Cultura, a verdadeira e secular alma do povo. Educação e Cultura devem andar de braço dado, porque uma sem a outra resumem o conhecimento à Ciência e Tecnologia, que sendo fundamentais, não devem sobrepor-se demasiadamente aos aspectos e tradições culturais. Neste 2024 irão acentuar-se as desumanizações resultantes da dependência do online, cuja expansão foi potenciada pela Covid-19 e se entranhou na sociedade. Se novos surtos se perfilarem, o recurso ao ensino online tornar-se-á rotina, retirando às escolas o seu papel essencial nas relações entre jovens, tal como já acontece nas relações de trabalho. Numa sociedade insular, esse risco de afastamento divisionista é maior, não havendo campanha eleitoral que o elimine- Música, desporto, associativismo jovem (o escutismo é um bom exemplo) e o intercâmbio escolar (o modelo de sucesso dos Erasmus europeus demonstra-o claramente) são desafios velhos que o Ano Novo terá de encarar, a bem da juventude.
Outro velho desafio para o novo ano é a urgente reforma do sistema de Justiça, tantas são as notícias negativas que surgem permanentemente a respeito do sector. E sem uma Justiça eficaz, a corrosão do Estado de Direito acentua-se perigosamente. Porque não organizar uma rede de tribunais de polícia, destinada a delitos de menor gravidade, geralmente a maior sobrecarga do sistema judiciário, aliviando assim a pressão a que está sujeito? No tempo do “antigamente”, existiam os regedores, que sob forma moderna poderiam dar lugar a um modo de exercício de uma justiça de proximidade, obviamente assessorada por advogados e magistrados, eventualmente servindo de treino para estagiários da área. Trata-se de simples bom -senso, mas imagino as objecções dos perfeccionistas, lobistas e demais artistas, que na Justiça, como na Saúde, gostam de pescar em águas turvas. Certo é que, tal como está, a aplicação da justiça em Portugal é mais questionável de ano para ano, o que se vê por processos de grande dimensão que, de recurso em recurso, se aproximam inevitavelmente da prescrição. Aceitar passivamente a situação conduz à descrença na política e nos políticos, quando seria possível agira tempo, aproveitando os debates eleitorais para discutir questões de fundo. Mas será que algum partido está interessado nisso? Avisos não faltam, desde logo do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que afirmou em Novembro e fez manchete no semanário Sol: “A corrupção está instalada em Portugal”, acrescentando numa corajosa a entrevista à jornalista Felícia Cabrita que “isto não é uma simples percepção, é uma certeza!”. Estamos à espera de quê? Da entronização europeia do Dr. Costa?
Onde todos estão interessados é na discussão do “social”, um modo encapotado de anestesiologia política que, através da distribuição de migalhas, conquista votos. Arranjar trabalho, ou liquidá-lo, é coisa diferente, até nos grupos ligados à Comunicação Social, conforme se vê pelo exemplo de um grande grupo português do sector. Esta é mais uma consequência nefasta da digitalização generalizada, previsível há muito, porque pressionada por 2 factores: a obtenção de lucro para sobreviver na selva crescentemente competitiva e a pressão ecológica sobre a impressão em papel. O mundo está a mudar, quem não acompanhar a mudança, desaparece, constituindo este um dos desafios mais evidentes para 2024.Todavia, há que ter cuidado com as mudanças, pois existe sempre a possibilidade de mudar para pior. O que se anuncia para já não é auspicioso, a principiar pelo aumento dos preços da electricidade doméstica, enquanto diminui para as empresas, acompanhando o circo dos preços do petróleo, enquanto se prepara os how circense da COP29, a ter lugar este ano em mais um país “petroleiro, desta vez no Azerbeijão. Tudo sob a bênção das Nações Unidas, cúmplice descarada da palhaçada em curso. Todos sabemos que a meta de aumento da temperatura planetária, pensada para 1,5ºC é inatingível em 2050, escondendo na manga as soluções do binário hidrogénio/energia nuclear, possivelmente o futuro grande negócio do século XXI.
Para complicar ainda mais o panorama, 2024 será ano de eleições legislativas regionais nos Açores, seguidas das nacionais e europeias, as 3 a terem lugar por esta ordem no primeiro semestre. Daqui que a campanha eleitoral que determinará a composição da próxima Assembleia Legislativa Regional dos Açores, tenha começado de forma não-oficial em paralelo com a da Assembleia da República, visto as 2 eleições se realizarem com apenas 5 semanas de intervalo. Depois da República, virá à baila a União Europeia, mas ambas serão problemáticas, a portuguesa pela instabilidade política vigente, a segunda devido à guerra da Ucrânia. Pelo meio, nos Açores e no País, fica a miserável situação em que vai ficando a classe média portuguesa, onde o mérito parece ser pecado, o que não impede existir uma franja de 4,4 milhões de cidadãos a viver no limite das possibilidades, quando não de pura sobrevivência. Explica-se assim a fuga dos mais capazes, o despovoamento progressivo e a transformação da sociedade numa corte de populações que abominam a política e os políticos. Como as guerras se irão prolongar, tanto na Ucrânia como na Palestina, preparemo-nos para um difícil Ano Novo, pleno de desafios velhos que se poderiam ter evitado, mas cuja solução deu jeito a muita gente ser adiada.
Ponta Delgada, 31 de Dezembro de 2023
*Ex-Reitor da Universidade dos Açores