A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) trouxe consigo uma nova era na regulação dos direitos de soberania no mar. Ao estabelecer limites geográficos claros e criar institutos legais para a extensão da plataforma continental (EPC), a CNUDM suscitou, entre os especialistas de política e relações internacionais, o desenvolvimento das teses idealistas e dos alertas realistas sobre a ordem jurídica marítima.
Este artigo carateriza estas duas visões e, com base em alertas realistas sobre a provável evolução da ordem jurídica marítima, identifica oito requisitos da soberania efetiva no mar, essenciais ao desenvolvimento e à segurança de Portugal em particular nos Açores, devido à enorme área da plataforma continental estendida na região.
De forma muito simplificada a CNUDM permite fixar o mar territorial até à distância das12 milhas náuticas (MN), a zona contígua até às 24 MN e a zona económica exclusiva (ZEE) até às 200 MN, medidas a partir das linhas de base, que definem o contorno legal da linha de costa.
Nos casos em que a margem continental legal, constituída pela plataforma continental, pelo talude e pela elevação (Fig.1) exceda as 200 MN, são utilizados critérios e procedimentos que conferem a possibilidade do Estado costeiro estender a sua plataforma continental até 60MN do pé do talude, ou até à linha que une os pontos em que a espessura sedimentar é, pelo menos, 1% da distância ao pé do talude, não podendo os limites exteriores da plataforma continental estar situados a mais de 350 MN das linhas de base, ou a uma distância que exceda as 100MN da batimétrica dos 2500 metros.
As teses idealistas enfatizam a relevância da ordem jurídica marítima estabelecida pela CNUDM, por ter contribuído para a resolução dos problemas de sobre pesca, de exaustão de jazidas, de poluição e de destruição ambiental, bem como por valorizar o regime autónomo da Área (região além da jurisdição dos Estados), e por estabelecer uma Autoridade para a sua gestão, aspectos que concorrem para preservar o mar como património comum da Humanidade, numa parte significativa da sua superfície.
Os realistas reconhecem a validade das teses idealistas, mas consideram que a ordem jurídica marítima estabelecida pela CNUDM não será perene, como não foi nenhuma outra no passado. Nestas circunstâncias, alertam para o impacto que poderão ter, no surgimento de uma outra ordem, a incoerência nas jurisdições marítimas do Estado costeiro e a criação de uma nova geografia marítima mundial, situações decorrentes da aplicação dos preceitos instituídos na CNUDM.
A incoerência nas jurisdições marítimas do Estado costeiro decorre do facto de, na ZEE (200 MN), ter direitos exclusivos de soberania para exploração, conservação e gestão dos recursos naturais vivos e não vivos no leito, no subsolo, na coluna de água e no espaço aéreo sobrejacente. Daí, até ao limite da plataforma continental estendida, só possui direitos de soberania para exploração e aproveitamento dos recursos naturais no leito e no subsolo. Esta incoerência jurisdicional nos Açores, em locais onde se aplica a linha restritiva das100 MNcontadas a partir da batimétrica dos 2500 metros,poderá ter mais 350 (550-200) a 420 (620-200) MN de largura além da ZEE (Fig. 2).
Situações como esta verificam-se em diversos pontos dos oceanos e constituem-se como um incentivo a uma nova evolução da ordem jurídica marítima, destinada a homogeneizar as competências do Estado costeiro em todo o espaço marítimo sob sua jurisdição, até ao limite exterior das respectivas plataformas continentais estendidas.
A nova geografia marítima mundial resulta do facto da CNUDM permitir que o Estado costeiro modifique a sua configuração, pela ligação e integração dos respectivos domínios marítimo e terrestre. Com efeito, pelas delimitações provisórias das plataformas continentais estendidas que já foram objecto de reclamação junto da Comissão de Limites da ONU, percebem-se os processos de alteração geográfica de alguns Estados costeiros à custa do espaço marítimo, o que terá implicações na política e nas relações internacionais.
Portugal será um destes casos, em resultado da conjugação das plataformas continentais estendidas do Continente, da Madeira e dos Açores, numa área total aproximada de 2 150 000 Km2. Em consequência, o país terá uma função internacional distinta da atual, devido à sua superior dimensão espacial e aos acrescidos recursos naturais ao seu alcance, o que colocará novos desafios e responsabilidades no âmbito da governação marítima global.
Os preceitos da CNUDM também provocaram uma redução do património comum da Área, e um acentuar do encravamento marítimo de alguns Estados costeiros relevantes, que ficarão sem novos acessos aos recursos marinhos, o que contrastará com aqueles que, como Portugal, beneficiaram de factores geográficos associados à localização relativamente à margem continental, à dimensão da linha de costa e à composição territorial por dois arquipélagos e uma parcela continental.
Evidentemente que os Estados costeiros encravados mais dinâmicos procurarão alterar estes constrangimentos ao seu desenvolvimento, para o que forçarão a alteração da ordem jurídica marítima, evidenciando as suas capacidades e competências para colocarem novos recursos marinhos ao serviço da comunidade internacional.
Tendo presente as teses idealistas e os alertas realistas relacionados com a incoerência das jurisdições marítimas e a criação de uma nova geografia mundial, para que Portugal consiga preservar os seus interesses marítimos, qualquer que seja a evolução futura da ordem jurídica marítima, afigura-se essencial dispor de: mentalidade e vontade marítima robustas; política externa e diplomacia hábeis no mar; política marítima mobilizadora do poder nacional; conhecimento científico sobre o potencial do mar; capacidade tecnológica necessária à exploração marítima; actividades económicas relevantes e sustentáveis no mar; competências de gestão multidisciplinar das actividades marítimas; instrumentos legais e de força essenciais à afirmação da autoridade do Estado no mar.
O cumprimento destes oito requisitos da soberania efectiva no mar é crucial nos Açores, para que a enorme área da plataforma continental estendida na região se torneum fator de desenvolvimento e segurança de Portugal.
António Silva Ribeiro