No Natal e Ano Novo é difícil resistir às comidas e doces típicos destas festividades, frequentemente bem regados com vinho, cerveja e outras bebidas alcoólicas. Mas afinal o álcool engorda, e portanto é um alimento, ou faz mal, e portanto é uma substância tóxica? Na realidade trata-se de um assunto bastante complexo, e vamos abordar algumas questões a propósito desta substância com que a humanidade convive há milénios.Antes de mais vamos esclarecer que quando falamos no álcool das bebidas fermentadas, como o vinho e a cerveja, nos referimos ao etanol. Algumas bebidas podem conter outro álcool muito perigoso, mesmo em pequenas quantidades, que pode causar a cegueira e mesmo a morte: trata-se do metanol, que pode existir em certas bebidas fabricadas com poucos cuidados e que escapem aos controlos de qualidade alimentar. Vamos então falar nalgumas questões relacionadas com o que acontece quando ingerimos etanol.Quando bebemos etanol, o nosso organismo tem enzimas que o transformamprimeiro em acetaldeído, depois em acetato e finalmente em acetil-Coenzima A (acetil-CoA), como se pode ver na primeira imagem. O acetil-CoA, bem conhecido de quem estudou Bioquímica, pode ser totalmente degradado produzindo energia sob a forma de ATP, a “moeda universal” de energia das nossas células, mas também pode ser transformado em ácidos gordos que vão formar as gordurinhas que alguns de nós gostaríamos de ter em menor quantidade. Por isso é que se diz que “o álcool engorda”, e que uma dieta de emagrecimento não deve incluir bebidas alcoólicas. Mas o álcool em excesso é tóxico para as células, e para eliminar etanol mais rapidamente o nosso organismo desenvolveu sistemas para o eliminar de um modo parecido ao que faz com outras substâncias tóxicas. É o chamado “sistema microssomal de oxidação do etanol” (MEOS na abreviatura em inglês, que se pode ver também na figura), e que em vez de aproveitar o etanol como fonte de energia, precisa de gastar energia para o eliminar mais depressa. Este sistema também produz acetaldeído e acetato, que pode ser transformado em ácidos gordos e depois em gorduras, mas como gasta mais energia do que produz e do que acumula, é frequente os alcoólicos perderem peso em vez de engordar.Seja qual for o sistema, o etanol é metabolizado maioritariamente no fígado, e é por isso que é este órgão o primeiro a ressentir-se do excesso desta substância. O consumo excessivo e continuado de álcool resulta geralmente em cirroses hepáticas, situações em que há uma acumulação anormal de gordura no fígado, morte das células, aparecimento de cicatrizes (“fibrose”) e alteração da estrutura do órgão, como se pode ver na segunda figura. Estas alterações vão prejudicando as funções do fígado, podendo chegar a ser mortais. Mas muito antes desse desfecho, e para além dos problemas pessoais e sociais relacionados com o alcoolismo, podem-se ir manifestando outros sintomas. Por exemplo, diminui a síntese da albumina, uma proteína do sangue que é fabricada no fígado. A falta de albumina faz com que a água saia dos vasos sanguíneos, formando edemas (“inchaços”) nas pernas e na cavidade abdominal. É também no fígado que se formam uma série de proteínas da coagulação, e estando as células hepáticas em mau estado, há sangramentos em diversas partes do corpo e a formação das chamadas “aranhas vasculares”, em geral no tronco, na cara e nos braços. Basicamente, todas as funções do fígado, e são muitas, são afetadas pela cirrose, portanto é melhor prevenir que remediar e evitar os excessos, até porque as cirroses hepáticas podem levar ao desenvolvimento de cancro. A título de curiosidade, é de referir ainda que o álcool é diurético, portanto se bebermos uma bebida alcoólica para combater a sede, é provável que a perda de água pela urina seja superior à contida nessa bebida e terminemos ainda com mais sede. O ideal para tirar a sede é beber água, e se intercalarmos as bebidas alcoólicas com água, estaremos também a eliminar parte do etanol, a proteger o nosso fígado, e a evitar a “ressaca” do dia seguinte, que se deve à acumulação de acetaldeído mas também à desidratação. Outra estratégia para que o álcool no sangue não aumente tão rapidamente é evitar beber com o estômago vazio, porque a absorção do álcool pelo organismo fica mais lenta e a substância demora mais tempo para chegar à corrente sanguínea, dando mais tempo ao fígado para proceder à sua eliminação. A quantidade de massa muscular e outros fatores individuais, nomeadamente genéticos, também são fatores que explicam as diferenças no metabolismo do álcool entre diferentes indivíduos.O consumo excessivo de álcool, mesmo que seja ocasional, também pode provocar crises de hipoglicémia (baixa de glucose no sangue), especialmente se não for acompanhado pela ingestão de hidratos de carbono de digestão lenta. E é também por isso que não é de todo indicado beber bebidas alcoólicas depois de fazer exercício, uma vez que o nosso organismo precisa de repor não só a água perdida, mas também a glucose que gastou.Não querendo entrar em polémicas acerca do que pode ser uma quantidade segura de álcool, que se existir será diferente de pessoa para pessoa, é importante recordar que não podemos viver sem o fígado e que temos de o proteger para manter a saúde. E só ficamos a ganhar em prestar atenção aos conselhos de organismos como a Direção Geral da Saúde e a Direção Regional de Prevenção e Combate às Dependências, porque a questão do álcool envolve muito mais do que foi possível escrever neste artigo.
Por: Maria do Carmo Barreto
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores
maria.cr.barreto@uac.pt