Peço de empréstimo o título da canção de Sérgio Godinho, no ano em que a mesma comemora 50 anos, tal como o 25 de abril que a inspirou.
E, prossegue: “Só há liberdade a sério quando houver Liberdade de mudar e decidir/ Quando pertencer ao povo/ o que o povo produzir…”.
Tinha seis anos quando se deu o 25 de abril. Nesse dia, estava em casa da minha avó, paredes meias com o Liceu de Beja, onde os manos mais velhos, já tinham intervenção política e andavam nas lides associativas, na medida em que o regime marcelista permitia. Embora pequena sempre me vem à memória as discussões sobre política, com muita liberdade, apesar de nem sempre todos os membros da família estarem de acordo. Lembro-me de um tio avô materno – a família era grande e muito unida – que esteve preso à guarda da Pide, por ser um fervoroso partidário do PC, amigo próximo de Álvaro Cunhal, e da minha mãe falar do tio e padrinho João, o seu preferido, que tantas vezes foi ver a Caxias.
Cresci a ouvir falar de política e a ver os meus pais sempre comprometidos, a minha mãe na Igreja, o meu pai na vida social e associativa; os meus irmãos envolvidos na atividade política, sobretudo ao nível do associativismo juvenil e poder local. Estiveram sempre na oposição antes e depois do 25 de abril. No Alentejo, quem tivesse dois dedos de testa antes do 25 de abril percebia o mal e as injustiças em que a esmagadora maioria das pessoas vivia. E depois os extremos que se cometeram e que deixaram tanta gente boquiaberta. O meu pai era o único médico da terra e por isso todos lá batiam à porta. Sabiam que ela estava sempre aberta mesmo que não houvesse dinheiro, e quase nunca havia, para pagar a consulta ou o remédio. O meu pai faleceu pouco depois do 25 de abril, era eu uma miúda e os meus irmãos estudantes universitários.
Lembro-me bem do primeiro comício de Francisco Sá Carneiro em Beja, na praça de touros, com o helicóptero a descer e a ser apedrejado. Sempre houve excessos… É sempre assim, quando as dificuldades são grandes e o fosso entre os que podem e não podem é gigante.
Olho para trás e vejo o que o presente nos oferece: em Portugal, ter emprego não é suficiente para não se ser pobre. Há cerca de dois milhões de pessoas em condição de pobreza e exclusão social no país – e destas, uma em cada quatro está empregada. Cinco décadas depois da Revolução de abril, o retrato do país continua a ser feito de pobreza. Em geral e nos Açores, em particular. E já pouco sentido faz reduzi-la a uma vertente monetária.
A pobreza vai além de rendimentos e mostra-se também no acesso à educação, à saúde, à habitação e cultura.
Os dados de um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, divulgados no início do ano passado, mostram um aumento significativo do número de pessoas que não consegue aquecer a casa ou garantir uma refeição de carne ou peixe, semanas inteiras, porque é caro e para se sobreviver há muitas contas para fazer. Gás, luz, comida, farmácia, filhos, transportes… são muitas variáveis de uma mesma equação que dá sempre resto insuficiente para garantir uma vida decente para tantas e tantas famílias, sobretudo nas cidades maiores.
Quando se pensa nesta multidão imensa de pobres, a mensagem do Evangelho resulta clara: não enterremos os bens do Senhor! Ponhamos em circulação a caridade, partilhemos o nosso pão, multipliquemos o amor, dizia-nos o Papa na última mensagem para o Dia Mundial do Pobre, em 2023.
A pobreza é um escândalo e abordá-la de forma diferente é uma exigência, não com receitas fáceis e milagrosas, que os tempos que vivemos propiciam, mas com realismo. E a primeira marca desse realismo não será, também, atirar dinheiro para cima das pessoas e de projectos a que as pessoas não aderem por vergonha ou por ignorância. A pobreza hoje, veste-se de roupagens novas, que não se compadecem com remendos e velhas terapias, que não coloquem o pobre no centro.
A Igreja tem ferramentas para ajudar a combater a pobreza e não só para acudir em situações de emergência ou alinhar em estratégias de curto prazo que matam a fome mas não projectam a vida.
Os pobres não são pessoas externas à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes ser devolvida a dignidade perdida e garantida a necessária inclusão social. Aliás, sabe-se que um gesto de beneficência pressupõe um benfeitor e um beneficiado, enquanto a partilha gera fraternidade.
Como nos lembra o Papa Francisco, os crentes, quando querem ver Jesus em pessoa e tocá-Lo com a mão, sabem aonde dirigir-se: os pobres são sacramento de Cristo, representam a Sua pessoa e apontam para Ele.
Afinal o Evangelho fala disso… É só os cristãos, que integram os partidos, irem lá ver antes de fazerem os programas eleitorais.
Carmo Rodeia