Em 2023, a ARRISCA deu apoio a mais de 1300 utentes em diversos programas, desde desabituação até à redução de danos. Suzete Frias, Directora Geral da instituição, revela uma mudança no perfil dos consumidores na Região para um padrão de policonsumo. A preocupação com o fácil acesso às substâncias sintéticas, a imprevisibilidade dos efeitos e a potencial ameaça do Fentanil, um opióide que mimetiza a heroína mas muito mais potente, são alguns dos temas abordados nesta entrevista.
Correio dos Açores – Em termos gerais, qual o balanço que faz da acção da ARRISCA em 2023?
Suzete Frias (Directora Geral da ARRISCA) – A ARRISCA deu apoio a mais de 1300 utentes em 2023, em diferentes programas desde o programa de desabituação, ao programa de tratamento com agonistas opioides, ao programa de reabilitação, bem como o programa de redução de danos em diferentes fases do processo.
Pode dizer-se que as drogas sintéticas dominaram os consumos de opiáceos durante o ano passado, sabendo-se que as drogas que mais se consomem na Região são o haxixe e a cannabis?
Convém separar os dados dos estudos feitos à população em geral, aos jovens e aos utentes já em acompanhamento. O haxixe e a cannabis são a substância psicoactiva ilegal mais consumida na Região na população em geral, contudo quando nos centramos na pessoa já com dependência e em tratamento – aqui refiro os que estão no Sistema Regional da Saúde e nas IPSS –, a substância sintética mais consumida actualmente são as catinonas.
As substâncias sintéticas e as Novas Substâncias Psicoactivas são mais atractivas por serem significativamente mais baratas. Logo, o acesso fácil não é só pela disponibilização no mercado, mas pelo preço e, apesar de mimetizarem as tradicionais, são muito mais potentes, daí a atractividade que oferecem. Para além disso, outros aspectos que levam os consumidores a optar pelas Novas substâncias Psicoactivas é o facto de estas não terem sido ainda incluídas nas tabelas da convenção, pelo que a venda não constitui crime e o consumo não é ilegal. Outra vantagem é que, como surgem muitas e as fórmulas são alteradas, para algumas ainda não há reagentes, logo a detecção é mais difícil.
Aqui também devemos separar dois grupos. Primeiro, as pessoas que usam nos espaços recreativos, e são pessoas funcionais e que, na sua maioria, encomendam pela internet, através da darkweb. A atracção por este meio de compra tem a ver não só com o preço, mas pela experiência de compra ser mais securizante, na medida em que não lidam presencialmente com o traficante. Os motores de busca conferem anonimato ao comprador e ao vendedor, e no final o comprador ainda responde a um questionário de satisfação. A distribuição é através da “uberização” – entrega à porta. O segundo grupo, que são consumidores de risco, faz a compra e imensas vezes consome em “cena aberta”, com a substância já “cortada” com outras substâncias, que trazem tantos ou mais riscos para a saúde, e muitas vezes com efeito contrário no sistema nervoso central. Por exemplo, a associação de uma substância depressora com uma estimulante, ou uma perturbadora com uma depressora. Tem acontecido em alguns países canabinóides sintéticos borrifados com Fentanil, por exemplo.
São cada vez mais os jovens que se iniciam no consumo de drogas? Que análise faz à evolução dos consumos de drogas na Região?
Não podemos generalizar. Pelos estudos que têm sido publicados, percebemos que há indicadores que têm vindo a melhorar desde há alguns anos. O que me preocupa é a alteração no padrão de consumos. O problema não passa por mais jovens iniciarem os consumos, mas mais pela severidade dos consumos e o tipo de substâncias que se consomem. Preocupa-me a acessibilidade às Novas Substâncias Psicoativas e outras substâncias sintéticas que são muito mais disruptivas e potentes que as tradicionais, constituindo assim um perigo grave à saúde pública e social. Preocupa-me as comorbilidades associadas, como as doenças mentais crónicas e as doenças neurodegenerativas que poderão comprometer o futuro de muitos jovens.
O perfil dos consumidores na Região evoluiu para um perfil de policonsumidor, sendo que a imprevisibilidade do efeito com as diferentes substâncias é também ela um factor aditivo.
Qual é a dimensão dos consumos de Fentanil nos Açores? Já existem casos de dependência de Fentanil na Região?
Nos Açores, até à data, o consumo de Fentanil não tem constituído um problema. Porém, isso não significa que não seja uma preocupação grande dos profissionais pois, como sabemos, há uma globalização das tendências, o que quer dizer que nos devemos preparar para este perigo. Tanto é que no Governo anterior, era eu Directora Regional de Prevenção e Combate às Dependências, fizemos uma formação em São Miguel e Terceira a profissionais de saúde, polícias, bombeiros e guardas prisionais sobre o uso de naloxona nasal, antagonista opióide para ser usado em casos de overdose de opiáceos/opióides, como é o caso do Fentanil.
O passo seguinte seria a Direcção Regional incluir no seu Plano de Investimentos uma rubrica para financiar o fármaco e criar um fluxo de distribuição às equipas. Desta forma, superávamos os constrangimentos tanto a nível financeiro e sobretudo com o facto de ser exigida actualmente uma prescrição nominal. O Fentanil é muito mais potente do que a heroína, o que leva a que muitos casos de overdose resultem em mortes antes da pessoa poder ser assistida na urgência. A naloxona injectável já é usada em espaço hospitalar por profissionais de saúde, contudo como o Fentanil é muito mais potente, é necessário equipar as equipas de rua e outros profissionais como a PSP, bombeiros e guardas prisionais, com esta ferramenta para assistir estes casos em situação de emergência antes de os encaminhar para tratamento hospitalar, diminuindo assim o risco de morte antes de ser intervencionados por profissionais de saúde.
Têm aparecido pedidos de ajuda na ARRISCA de pessoas dependentes desta substância?
Pessoas a pedir ajuda especificamente por uso de Fentanil não temos. Temos sim utentes com um perfil de policonsumos que recorre a substâncias sintéticas muito mais baratas e muito mais potentes e que, muitas vezes, ao consumirem nem eles sabem o que estão a consumir. Até agora no que diz respeito às substâncias “sintéticas” as mais consumidas nos Açores são as catinonas que são substâncias estimulantes, similares à cocaína, mas também muito mais potentes e mais disruptivas. O Fntanil é um opióide, que mimetiza assim a heroína, mas é muito mais potente. Até agora tivemos um número residual de casos positivos ao Fentanil e que nos ofereceram dúvidas, uma vez que em várias contra-análises os resultados foram inconsistentes.
Que tratamento se adequaria à dependência de Fentanil?
Sendo o Fentanil um opióide deverá ter um tratamento similar à heroína. Requer uma abordagem multidisciplinar e poderá incluir a terapia por agonistas opióides como o cloridrato de metadona ou a buprenorfina. Estas substâncias ajudam a reduzir os sintomas de abstinências e craving (desejo de consumo).
A ARRISCA está envolvida na sensibilização e prevenção do uso de Fentanil nos Açores?
A ARRISCA tem um serviço de Promoção da Saúde e Empoderamento Comunitário que tem tido intervenção nas escolas de uma forma sistemática e ao longo de todo o ano, na promoção de factores de protecção – competências sociais e gestão das emoções –, e diminuição de factores de risco. No caso de 2023, no concelho da Ribeira Grande, com todos os alunos do 7º ano e 8º ano num total de 385 e 199 alunos, respectivamente.
Fizemos sensibilização a 646 jovens de 18 anos de São Miguel, integrado no Dia da Defesa Nacional.
No que respeita as acções de formação aos profissionais, fizemos formação em parceria com o Instituto de Acção Social dos Açores a elementos de todos os todos os CDIJ da Região e às equipas da EMAT de São Miguel. A formação não foi específica ao Fentanil, mas às Substâncias Sintéticas, onde este se enquadra, e Novas Substâncias Psicoactivas.
Qual é o papel da ARRISCA na instrução e consciencialização de profissionais de saúde sobre a prescrição e monitorização do uso de fentanil?
O Fentanil é um analgésico opióide que é prescrito em contexto terapêutico no caso de dor aguda crónica. No contexto da ARRISCA, não é prescrito pelos nossos profissionais. A Direcção Geral da Saúde já assumiu rever a circular de prescrição do Fentanil. Na minha opinião, a prescrição deste fármaco não devia ser alargada aos médicos em geral, sendo que os dados indicam que quem mais prescreve são os médicos de família. No meu entender, e não sendo médica, a prescrição deveria estar limitada a determinadas especialidades e com uma monitorização apertada.
Que desafios a ARRISCA identifica, nos Açores, em relação ao uso de Fentanil?
Na minha opinião, apesar de as catinonas serem as substâncias sintéticas actualmente mais consumidas pelos doentes em tratamento nos Açores, e no caso específico em São Miguel, e de grande parte dos utentes em tratamento, com um percurso grande de consumos, terem tido como substância de preferência a heroína, caso o fentanil se torne uma droga de rua, sendo mais barata, se se tornar de fácil acesso, os consumos de fentanil podem passar a ser os eleitos.
Associando isto ao facto de ser mais potente e acarretar consigo outras comorbilidades, há o perigo das overdoses aumentarem exponencialmente e voltarmos a ter uma epidemia pior do que a tivemos na década de 70/80 com a heroína, o número de mortes por consequência aumentarem bem como o aumento precoce de doenças degenerativas e por inerência incremento dos problemas de saúde pública e sociais.
A associação trabalha em conjunto com profissionais de saúde para garantir uma abordagem holística?
A abordagem holística e sistémica que tentamos ter não é específica das substâncias, mas tem em conta a pessoa e os seus contextos vivenciais.
A ARRISCA, na sua actuação, pretende uma intervenção integrada e tem vários princípios basilares. Procuramos seguir um modelo humanista e pragmático, reconhecendo a toxicodependência como uma doença, reconhecendo o utente na sua dignidade humana, e reconhecendo a complexidade e impacto de factores individuais, familiares, sociais e ambientais no problema, bem como na solução.
A nossa intervenção tem como foco a centralidade na pessoa. Desenhamos as nossas respostas e valências por forma a assistir todas as pessoas, tendo em conta o seu ciclo de vida e as suas necessidades especificas. Assim, disponibilizamos respostas – dentro dos recursos que temos -, que não se centram apenas na doença, mas que promovem a vinculação familiar, O sentido de pertença e a identidade comunitária, competências individuais e sociais.
Os utentes são acompanhados dentro de diferentes programas terapêuticos de desabituação, reabilitação e/ou de redução de danos. Temos outras respostas de reabilitação social e sócio-ocupacional com o Apartamento de Reinserção, a carpintaria e a cerâmica e serviço de inserção sócio-laboral na comunidade.
Dado o carácter multidimensional dos comportamentos aditivos e das dependências, tentamos ter, por isso, uma intervenção de proximidade e multidisciplinar, médica, enfermagem, psicológica, social que permite potenciar os resultados na saúde das pessoas que assistimos.
Procuramos a territorialidade, como forma de potenciar a intervenção. Baseamo-la na realidade local, necessidades e potencialidades para a mudança. Por isso, temos parcerias com diferentes municípios, designadamente Ponta Delgada, Ribeira Grande e Lagoa, com diferentes projectos baseados num diagnóstico das necessidades e recursos existentes.
A nossa intervenção é de proximidade. Para além da disponibilização de respostas nos diferentes eixos de actuação, a ARRISCA, tem feito esforços no sentido de possibilitar maior acessibilidade às mesmas. A descentralização das consultas e das Tomas Observadas Diárias reflectem a acessibilidade geográfica a todos os elementos da comunidade
Carlota Pimentel