João Freitas, professor na Escola Secundária da Lagoa, foi o responsável por desenvolver a versão digital do jogo de tabuleiro pedagógico “Conhecer a Lagoa”. Gratuito e de fácil acesso, está disponível no site da Câmara Municipal da Lagoa, além de ser compatível com dispositivos Android, IOS e PC. O docente realçou, nesta entrevista, o feedback positivo dos alunos e defende o uso de jogos em contexto escolar como forma de promover o conhecimento e a aprendizagem.
Correio dos Açores – Como surgiu a ideia de desenvolver a versão digital do jogo “Conhecer a Lagoa” a partir da versão em tabuleiro?
João Freitas (Professor de Biologia na Escola Secundária da Lagoa) – Primeiramente, o jogo foi lançado na Lagoa e foi entregue uma cópia na nossa escola. Mais tarde, realizámos o Steam & Games, um evento que se foca em tecnologia, videojogos e educação.
A Câmara Municipal da Lagoa esteve presente, representada pela vereadora da educação e cultura Albertina Oliveira, e foi a própria a lançar o desafio de converter este jogo de tabuleiro num videojogo.
Havia outro projecto na escola, igualmente relacionado com videojogos, que usa um motor gráfico mais complexo. Mas, como o meu trabalho, sobretudo em scratch, permite elaborar o jogo, publicar imediatamente e disseminar para todos sem custos, disse que ia fazer o jogo em segredo e que, depois, víamos como ficaria.
Foi a partir deste desafio e de alguma troca de impressões que o videojogo foi tomando forma.
Pode falar um pouco sobre o processo de desenvolvimento do jogo?
Existem três fases. A primeira fase é, essencialmente, de programação e acaba por demorar mais tempo porque os algoritmos têm de ser feitos para funcionar de acordo com uma ideia de design. Depois, faz-se um protótipo com imagens temporárias que vai sendo testado até estar, mais ou menos, bem e começa-se a introduzir os elementos artísticos finais. Numa fase inicial, pode-se usar elementos temporários e só numa fase final se introduz os elementos finais, como o personagem que inicialmente era só um círculo.
Quanto tempo demorou desde o início até à conclusão?
Talvez tenha durado mais de 100 horas. Como sou professor, tenho várias coisas para fazer, mas sempre que tinha um tempo, dedicava-me a este processo. A parte da programação demorou mais tempo. Depois, a parte de introdução dos elementos artísticos finais foi mais célere, além de que tive alguns elementos fornecidos pela Câmara Municipal da Lagoa.
A parte final, que é a introdução de questões, ainda está em processo. As questões ainda não estão todas inseridas, porque o jogo original apresenta centenas de perguntas.
Com que desafios se deparou durante o desenvolvimento do jogo?
A programação tinha alguma complexidade. Houve também questões técnicas que tive de pesquisar como iria aplicar. Depois, foi decidir o jogo que queria. Creio que o grande desafio foi perceber de que forma recriar o jogo num formato e numa plataforma diferente, neste caso a digital. Tive que pensar na plataforma que estava a utilizar e na interacção.
Este jogo usa as perguntas e tem um sistema de navegação semelhante ao de tabuleiro, mas enquanto que o outro é competitivo e onde os participantes estão a jogar uns contra os outros, este é jogado individualmente, a pares ou a trios. Esta adaptação não pretende substituir o jogo original, mas criar algo alternativo que, de certa forma, venha a completar a experiência.
Já trabalho com videojogos em educação desde 2009. Estive envolvido em projectos como o Erasmus e vários projectos em scratch, inclusive para a plataforma EDA. No âmbito dos projectos Erasmus, o último, o Shadows [School and Home use of Advanced Digital Online Worlds in a Serious Game] também se foca no uso de questões no âmbito do videojogo e essa experiência acabou por ser canalizada para o jogo “Conhecer a Lagoa”.
Agora, o desafio final é arranjar tempo suficiente para colocar todas as questões dentro do sistema. Temos um jogo, que está praticamente complemento, mas ainda falta as questões.
Como tem sido a recepção dos alunos à versão digital do jogo “Conhecer a Lagoa”?
Tive algumas experiências de teste em contexto de sala de aula e em Novembro, na segunda edição do Steam & Games, o jogo estava a correr num ecrã gigante no hall da escola e estiveram sempre alunos a jogar, alguns mais do que uma vez. Por isso, o feedback foi positivo.
No contexto de sala de aula, os alunos colaboram ao jogar esse tipo de jogos?
Os jogos têm duas grandes vantagens dentro da sala de aula. A primeira, e a mais óbvia, tem a ver com a motivação. O outro aspecto está relacionado com a natureza dos próprios jogos, que permitem ter experiências que não são reproduzíveis ou são caras.
Por exemplo, se quisermos ter uma experiência de andar na superfície de Marte, não a conseguimos ter no cinema, mas podemos andar virtualmente numa superfície em Marte, através de um jogo que tenha uma boa simulação da superfície marciana.
Utilizo muitas vezes um jogo, especialmente no ensino especial, de montagem de computadores. Se fosse adquirir todas as peças e ferramentas de uma oficina de montar computadores, não seria possível dentro de uma escola. Os jogos tornam possível reproduzir acções que seriam dispendiosas ou até impossíveis.
Que influência teve o projecto Shadows no desenvolvimento do jogo “Conhecer a Lagoa”?
Além do projecto Shadows, estive associado a outros como o “Level”, que é um videojogo adequado à matemática e ao Game On, um projecto associado a um grupo de professores, investigadores e desenvolvedores, que se reuniram para criar um manual, cuja ponto de partida era como se pode utilizar os videojogos em sala de aula, passar desafios, formas de abordagem de jogos e tipos de videojogos.
O projecto Shadows foi criado e pensado durante a pandemia, para ser um videojogo que pudesse ser jogado remotamente e também em sala de aula.
Era, essencialmente, um jogo de estratégia que toda a turma podia jogar ao mesmo tempo e os combates eram feitos com questões. No fundo, o mundo está ameaçado por sombras, que são os inimigos, que querem ocupar as cidades e para combate-los tínhamos de responder a perguntas sobre um determinado tema.
O jogo está disponível na PlayStore e na AppStore. Para criar os níveis, existe uma plataforma online gratuita em que, após o registo, o professor pode criar a as suas próprias campanhas. Ou seja, o professor de Matemática faz perguntas de matemática e assim sucessivamente.
Quando apareceu a oportunidade de fazer a adaptação do “Conhecer a Lagoa”, eu já estava dentro do conceito de como utilizar as questões no ambiente de videojogos e apenas tive de pensar em como adaptar, de uma forma interessante, no que diz respeito aos pormenores de design, som, entre outros.
No projecto Shadows, existe a possibilidade de adaptação a várias disciplinas. Como isso pode ser alcançado?
Enquanto o jogo “Conhecer a Lagoa” tem por base a cultura e o espaço da Lagoa, o Shadows permite ao professor criar as suas próprias perguntas na plataforma, podendo ser adaptado a qualquer disciplina. Está adaptado para escolha múltipla, o que limita a profundidade de como se pode tratar alguns temas, mas dentro deste âmbito, o professor pode colocar a questão que quiser.
Quais são as características dos serious games e de que forma estas características se aplicam aos jogos educativos?
Este é um conceito desenvolvido para transmitir que alguns jogos têm fins didácticos. Por outras palavras, os serious games ideais são jogos em que não se nota a existência dos conceitos pedagógicos. Quando estes jogos começaram a sair, a receptividade não foi muito boa porque havia um desequilíbrio entre jogabilidade, que é a característica dos jogos comerciais, e a aprendizagem.
Hoje em dia, acredita-se que os serious games são jogos que foram desenvolvidos de raiz para a educação. Por outro lado, também acontece haver jogos que não foram desenvolvidos para educação, mas que são usados de forma séria, como é exemplo o “Minecraft”, que já existe uma versão para a educação.
Há dois aspectos dos serious games que considero importantes. Em primeiro lugar, após elaboração do jogo, ver de que forma pode ser utilizado em contexto educativo. Muitas vezes, os desenvolvedores não são professores e falta-lhes conhecimento. Embora os conteúdos possam parecer interessantes, a sua adaptação em contexto educativo torna-se muito difícil.
Quando estava a desenvolvera versão digital do “Conhecer a Lagoa”, tendo em conta que é um jogo sério de tabuleiro e já tem uma função educativa, pensei em criar algo que fosse rapidamente mobilizável pelos utilizadores e que fosse acessível em sala de aula. Pode ser jogado individualmente, mas tem mais piada se for entre duas ou três pessoas porque se cria um espírito de colaboração, que os professores tanto procuram em sala de aula.
Existem planos para expandir o uso de jogos digitais educativos para além do contexto actual?
Desde 2019, pelo menos, uso jogos na Escola Secundária da Lagoa e pretendo continuar a utilizar. Tenho vários projectos de videojogos e de programação adequados ao ensino especial, onde faço pequenas aplicações em videojogos adaptados a dificuldades específicas que os alunos possam ter.
Na nossa escola temos, por exemplo, o professor José Silva, que está a desenvolver um videojogo sobre a descoberta dos Açores. A professora Paula Silva também tem um projecto, onde inclui não só os jogos, mas também a robótica. Tenho trabalhado com estes dois docentes e com o professor David Rosa que, neste momento, é um grande especialista na parte da impressão 3D.
A meu ver, há um longo caminho até à introdução dos videojogos nas escolas. Parece que é simples utilizar um videojogo na escola, mas nem todos os jogos estão devidamente adaptados para serem usados em sala de aula.
É preciso ter um dispositivo, a interface tem de ser adequada, bem como a forma como o jogo inicia e como se retoma. Embora os videojogos sejam algo de há muito tempo, à excepção de alguns jogos, ainda vai levar mais uma década até se conseguir a sua devida integração na sala de aula.
Quais são as futuras aspirações na área de desenvolvimento de jogos digitais na Escola Secundária de Lagoa?
Os jogos e as aplicações podem ser feitos em qualquer sítio. Se dermos o know how aos alunos, numa fase inicial, para desenvolverem jogos e aplicações, estes não sofrem com a insularidade e são vendidos no mercado mundial.
Além disso, devido ao turismo, temos ampliado muito a necessidade de gestão da informação e é possível amplificar todo um conjunto de serviços, que dão dinheiro. As aplicações dão muito dinheiro. (…)
Na minha opinião, temos que pensar como podemos criar uma cultura que é digital, mas também tecnológica, que tem know how e que permite criação. Tento fazer parte e envolver-me com o máximo de oportunidades que levam ao aparecimento dessa cultura, que considero muito importante para os Açores.
Carlota Pimentel