“O Fim do Mundo em Cuecas” é um livro que reúne textos de vários especialistas de diferentes áreas que foram desafiados a imaginar cenários apocalípticos com humor. Com o objectivo de transmitir o conhecimento científico de forma divertida, a cargo de Fátima Viveiros, professora e investigadora de vulcanologia da Universidade dos Açores, ficou o capítulo intitulado: “E se o vulcão mal-humorado provocasse um inverno nuclear?” Em entrevista ao Correio dos Açores, Fátima Viveiros fala da importância de divulgar a ciência com “qualidade” para que, neste e em qualquer outro cenário de crise, estejamos “preparados para lidar com esse ‘mau-humor’ (do vulcão) da melhor forma possível”.
Correio dos Açores – Sendo investigadora do Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos e docente na Universidade dos Açores, como se deve fazer chegar a divulgação científica às pessoas?
Fátima Viveiros (Professora Associada da Universidade dos Açores) – Na sociedade actual temos imensas ferramentas para fazer chegar informação às pessoas. Mas, é necessário fazê-lo com qualidade para que não se transforme em desinformação. Diria que temos de utilizar todas as ferramentas disponíveis, desde as redes sociais, pois não podemos fugir delas, a todos os órgãos de comunicação social, desde a televisão, à rádio e aos jornais.
Para além disso, quando se pensa na comunicação de alguns riscos, é fundamental existir a transmissão de conhecimentos face a face, com palestras e eventos para fazer chegar à população alguns dos perigos a que possam estar expostas. Em determinadas circunstâncias, esta divulgação científica tem de ser explicada e as dúvidas que possam surgir na população esclarecidas logo que possível, para que haja uma confiança entre ambas as partes.
Portanto, diria que todas as formas de comunicação possíveis são fundamentais para fazer chegar o conhecimento à população. O livro também é uma forma abrangente de chegar a todos. (…)
No livro “O Fim do Mundo em Cuecas” escreveu um capítulo sobre o cenário apocalíptico da vulcanologia, intitulado “E se o vulcão mal-humorado provocasse um Inverno nuclear?”. Quer contar a história deste vulcão?
O capítulo tenta relembrar-nos daquilo que nós, muitas vezes, vemos nos filmes de Hollywood. Neste caso, temos um vulcão e um dos objectivos é compreender que os vulcões são únicos. O vulcão acorda com os pés de fora, mal-humorado, e isso pode ter uma série de consequências com impacto global. Por exemplo, aquilo que está a acontecer com um vulcão numa pequena ilha do Pacífico pode ter impactos no mundo inteiro em termos de alterações climáticas. Pode, por exemplo, criar refugiados vulcânicos a larga escala e pode afectar os nossos relógios digitais, pois a presença de cinzas na atmosfera pode ter algum impacto a nível de GPS e fazer até com que as próprias bolsas mundiais entrem em colapso. No fundo, este vulcão vai criar uma série de impactos globais. Vai mostrar que os vulcões têm atestado de residência, porque não existem vulcões em todo o lado e, por incrível que pareça, até vai mostrar que o tamanho importa, pelo menos naquilo que diz respeito aos vulcões.
Depois, vamos ver que, se o vulcão acorda realmente mal-humorado, não há psicólogo ou psiquiatra que possam resolver o problema. É necessário que estejamos preparados para lidar com esse “mau-humor” da melhor forma possível.
Qual foi a maior dificuldade ao abordar este tema de forma científica e humorística?
Esta foi, realmente, a pergunta que coloquei no início: como é que vou enfrentar este paradoxo de conciliar uma catástrofe com algo divertido? Confesso que foi necessária alguma reflexão, até que, de repente, fez-se uma luz. Como eu costumo dizer, foi tipo erupção vulcânica nocturna. Na verdade, o humor tem um pouco de tudo, portanto, o desafio foi esse: manter o rigor científico, tentando não perder a ligeireza e, sempre que possível, com alguma piada.
Considerando o desafio de conciliar o paradoxo entre um cenário catastrófico e humor, como acredita que esta abordagem pode contribuir para o interesse do público pela vulcanologia?
Tenho uma ideia muito pessoal de que nós nos lembramos daquilo e de quem nos faz sorrir. Por isso mesmo, este livro tenta usar esse princípio: se as pessoas sorrirem e ficarem menos trombudas, porque precisamos de estar menos trombudos, já vai ser uma forma de se lembrarem de alguns destes conceitos que são transmitidos de uma forma divertida, sem perder o rigor científico. Com o bom humor podemos ficar na memória das pessoas por algum tempo e em alguns casos de forma permanente.
Na sua opinião, qual é a importância de tornar a ciência mais acessível e atraente para o público em geral?
É fundamental porque sociedades informadas têm maior resiliência e maior capacidade de resposta em cenários menos favoráveis e, muitas vezes, improváveis. Alguns destes cenários podem caracterizar-se como sendo de alta intensidade, mas de baixa frequência. Ou seja, vão acontecer poucas vezes mas se acontecerem, mesmo que não acabem com o mundo, podem causar constrangimentos globais e, portanto, a ciência é a base daquilo que somos hoje e temos de apostar na sociedade do conhecimento. Foi por isso que aceitei o desafio de criar este capítulo.
Muitas vezes temos a ideia de que a ciência está nas bibliotecas, nas universidades e nas enciclopédias. O conhecimento, aquela chamada ciência fundamental, é essencial porque é o que nos explica os processos. Mas eu gosto de pensar que é possível fazer um salto da ciência fundamental para a ciência utilitária. Estamos numa fase em que tem de ser a ciência utilitária a dotar todos os cidadãos, desde as autoridades até ao cidadão comum, de uma capacidade de resposta eficaz para que o mundo seja melhor.
Que outras iniciativas ou estratégias sugere para cativar as pessoas para as ciências?
Há imensas e penso que, neste aspecto, tem havido uma tendência para transmitir a ciência ao público em geral. Por exemplo, ainda recentemente, em 2023, a Universidade dos Açores teve o primeiro congresso de comunicação de ciência, organizado por colegas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e da própria Faculdade de Ciências e Tecnologia. Isto veio demonstrar a importância de aprendermos a comunicar ciência, porque, e passo a redundância, a própria comunicação em ciência é uma ciência.
Por exemplo, ao nível da vulcanologia, que é a minha área de eleição, o Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos da Universidade dos Açores organiza, anualmente, a Noite Europeia dos Vulcões, o que permite ao público vir à Universidade partilhar com os cientistas aquilo que são as aprendizagens, os progressos, as dúvidas que os próprios cientistas têm ao nível da vulcanologia. O ano passado contámos com mais de 150 participantes num dia de temporal terrível e confesso que foi uma boa surpresa. Este tipo de iniciativas tem de continuar, em especial nas escolas, onde, apesar de já haver muita divulgação científica nas escolas, ainda não é suficiente.
Como foi a experiência de colaborar com outros especialistas e divulgadores de ciência neste projecto?
Foi muito gratificante. Confesso que, pessoalmente, só os conheci na apresentação do livro em Lisboa. Portanto, foi uma oportunidade de conhecer investigadores e divulgadores de ciência de outras áreas, desde a inteligência artificial à biologia, dasalterações climáticas a toda a parte planetária e extraplanetária. Todos têm o objectivo de transmitir a ciência da forma mais simples possível.
Uma das coisas que falamos na apresentação é que se os vários cenários que idealizamos individualmente acontecessem ao mesmo tempo, não há cuecas que salvem o mundo, porque nem elas escapam. Por isso, foi uma excelente experiência. Já se está a pensar, eventualmente, fazer uma nova apresentação, todos juntos, se possível, na Feira do Livro de Lisboa. Isto só demonstra o bom ambiente que foi criado entre nós.
Qual é o impacto que espera que este livro tenha na percepção do público sobre os potenciais perigos que enfrentamos diariamente?
O conhecimento é poder. Se tivermos informação, vamos ter maior capacidade de reacção a determinados cenários. Se a leitura deste capítulo fizer com que cada um de nós tenha uma maior capacidade de reagir, então já valeu a pena.
O objectivo seria levar-nos a uma reflexão sobre aquilo que nos rodeia e todos os perigos que nos podem afectar, desde os naturais, que há vários, aos riscos tecnológicos.
Gostaria que houvesse uma consideração ética sobre todos estes processos e, principalmente, sobre aqueles em que temos algum poder de influenciar o resultado final. No fundo, temos este poder sobre todos porque, mesmo no caso dos fenómenos naturais, se estivermos preparados, já é uma forma de minimizar os riscos.
Como é que a ciência pode lidar com a desinformação e as fake news?
Diria que é quase uma luta diária. Nós, os cientistas, temos que abraçar os desafios de forma a produzir textos que sejam acessíveis e contribuam para o conhecimento geral. Temos de fazer a nossa parte, ou seja, temos de produzir conhecimento de qualidade e tentar fazer, tanto quanto possível, que ele chegue à população.
Os pseudocientistas e as fake news estão em todo o lado. Por vezes, e quando um determinado assunto não é da nossa área do conhecimento, até para nós, é difícil percebermos que estamos a ler fake news. Acho que uma das hipóteses poderia ser novamente o regresso ao ensino mais básico e às escolas. A luta contra a desinformação é educar, educar, educar! E talvez inserir nos próprios currículos das escolas uma certa reflexão sobre estas fake news, a capacidade de as identificar e os riscos que têm. Este problema está presente em todas as áreas da sociedade e a única forma de reagir é com conhecimento, com educação, com ver que, às vezes, há coisas que são absurdas, mas para entendermos temos que saber o que é que não é absurdo. Costumo dizer aos meus alunos que temos de seguir as redes sociais e os órgãos de comunicação oficiais. Vamos seguir aquilo que é o conhecimento oficial porque é onde existe controlo e revisão dos conteúdos.
Como docente, qual é a abordagem que utiliza para motivar os seus alunos a explorar a ciência para além das salas de aula e dos livros académicos?
Para além do conhecimento mais teórico, que é fundamental pois nós temos de saber a base, temos algumas experiências de laboratório e saídas de campo para ver in loco aquilo que são os processos naturais. Sempre que possível, tento levar exemplos do dia-a-dia para discutir em contexto de sala de aula. Recentemente, comecei a aplicar um exercício que acredito funcionar muito bem, o role playing. Colocar os alunos a simular, em ambiente de aula, como reagiriam a certos cenários se fossem eles uma autoridade, um jornalista ou um cientista. Isso faz com que tenham de saber como aplicar o conhecimento e que se coloquem no lugar do outro, porque, assim, entendem as dificuldades e mais dificilmente vão apontar o dedo, sem uma reflexão sobre aquilo que também eles fariam. Os nossos alunos são os futuros cidadãos activos, são eles quem vai controlar o evoluir desta sociedade e têm de começar a ter noção de como aplicar a sua aprendizagem teórica no dia-a-dia. No ano passado, desafiei os alunos a criar filmes mediante o cenário hipotético de os terem de apresentar no horário nobre de um canal nacional. O intuito era o de ensinar as pessoas a reagir num cenário de erupção vulcânica. Devo dizer que passamos alguns dos filmes na Noite Europeia dos Vulcões pela qualidade que tinham. Creio que fazermos a nossa parte como docentes também passa por aqui.
Qual é a mensagem fundamental que gostaria que as pessoas retirassem do seu capítulo no livro?
Vou deixar como mensagem fundamental um pensamento que não é meu, mas do bom espírito de Hegel, que diz que a história se repete pelo menos duas vezes: “a primeira como tragédia e a segunda como comédia.” Agora acrescento que, para isso, vamos então prepararmo-nos e a nossa arma será sempre o conhecimento.
Quer deixar alguma mensagem aos potenciais leitores de “O Fim do Mundo em Cuecas”?
Leiam. Ler é fundamental para despertar a nossa mente e para termos uma capacidade mais crítica perante o mundo e a desinformação.
Tem algo mais que gostaria de abordar no enquadramento do livro e desta entrevista?
Se sorrirem pelo menos uma vez, já valeu a pena aquilo que foi o meu contributo para o livro. Espero que apreciem e que fiquem com um bocadinho mais de conhecimento ao nível da vulcanologia, fundamental para nós que vivemos em áreas vulcânicas adormecidas. Mas, não nos esqueçamos que não deixam de ser sistemas vulcânicos.
Daniela Canha