Vou começar pelo fim: as minhas lágrimas de domingo à noite, não por no outro dia ser segunda-feira mas porque estava a ver, com as fímbrias da minha alma em pé, o “Got Talent Portugal”, onde Maria Eugénia, aquela menina que desde pequenina tem um sorriso tão doce como os seus olhos, fez vibrar o timbre da sua voz como um violino no sopé de uma montanha. Voz única, cristal da Boémia, voz que faz vibrar dentro de nós as notas certas da alma. Conheço poucas vozes como a da Maria Eugénia.
Antes da apoteose da segunda volta, senti, como muitos, as dúvidas do júri: apesar de perfeita, à canção de Maria Eugénia teriam faltado os esgares e os contorcionismos das sevilhanas ou das mexicanas, extremamente expressivas, à maneira de Chavela Vargas, a autora de “La Llorona”, conhecida pela sua maneira chorosa e intensa de cantar. Mesmo assim, Maria Eugénia recebeu os quatro sins. Foi então que apareceu o pai, o tutor, o que criou a filha numa mão com o violão na outra. Com aquele bigode esgaçado e aquela cara de encher um ecrã, veio dar à canção da filha exatamente aquilo que lhe faltava e o acorde entre os dois chegou à perfeição, ao delírio na plateia e àquela chuva de papelinhos dourados que significava vitória sem espinhas.
Acho que conheço o José Eugénio desde que me conheço. Vizinho dos meus avós, na Canada do Biscoito, o José era gorducho, rechonchudo e simpático. Desde sempre, quando ria, a cara ria toda, os olhos, o nariz, a boca, as faces, o corpo todo ria. Era uma espécie de líder, imaginativo, criativo, eu teria uns cinco anos quando ele, dois anos mais velho do que eu, nos ensinou a fazer mescla de barro: “três baldes de areia e um de cimento” (que era terra, nem a barro chegava). E lá fazia ele aquela mistela para espanto de todos nós.
Mas a nossa amizade concretizou-se mais na adolescência e juventude, quando ele se agarrou a um violão para nunca mais o largar. A música era a sua deusa, a ela dedicaria grande parte da vida. Fomos – e somos – grandes amigos, até porque a amizade mais castiça nasce por aquelas bandas onde se começa a despontar para a vida adulta, naquele espaço híbrido onde já não somos crianças e ainda não somos homens.
Pelos finais dos anos 80, a nossa amizade passava, necessariamente, pela música. Terei escrito umas dez letras para músicas que ele inventava. E as coisas eram assim mesmo, naquele tempo não havia as disponibilidades tecnológicas que hoje temos. Quando se lhe metia uma melodia na cabeça, ele nunca mais a deixava até a música estar pronta. E quando estava pronta, ele gravava-a numa cassete daquelas de fita magnética, coisa hoje pré-histórica, com uns lá-lá-lá-lá acompanhados de violão que eu, depois, traduzia em letras poéticas. Ainda hoje o José Eugénio canta aquela canção, construída em 1989, teria eu 20 anos e ele 22, intitulada “Sonhar Verdade”, coisa de rapazes, mas com sonhos que hoje já parecem estranhos. Começava assim:
Sonhei um mundo mudado,
Todos tinham dado as mãos,
A guerra tinha acabado
E os homens, lado a lado,
Caminhavam como irmãos.
E continuava:
A fome tinha morrido,
Já também morrera a dor.
Para cada irmão caído,
Para cada perseguido
Nunca faltava o amor.
E lá a canção continuava, com uma melodia que entrava no coração sem resistências, sempre expressiva, emotiva, por vezes dramática, que era a nota de autor do José Eugénio. Porque é que os sonhos não são verdade… quero fazer do sonho uma realidade. Nem doença nem prisão, nem ódio nem escravidão.
Não havia servidão
Nem conflitos raciais.
O negro era meu irmão
E o branco dava-lhe a mão:
Os homens eram iguais.
E acabava com a esperança de que esse Cristo, que um dia entre nós veio habitar, havia de mudar o mundo. Ainda acredito desabaladamente nessas palavras que moldaram a nossa juventude. Ainda penso e sonho assim e não me apetece desistir. E aquele bando de rapazes da Fonte do Bastardo que fizeram da amizade, nos anos 80, um sacrário de vida, ainda hoje continua quase como ontem, já velhos, cabelos grisalhos e barrigas para dar e vender, mas os olhos e o olhar mantém a mesma candura, amizade e disponibilidade de há mais de trinta anos atrás.
O José Eugénio é um homem simples, humilde, um pouco envelhecido pelas ventanias da vida. Adora tradições e a sua despensa está cheia de coisas estranhas, licores e aguardentes que nem em Marte se encontram, uma criatividade culinária castiça, até porque a sua arte musical só se compara à gastronómica. Algum de vocês já comeu alcatra de couves? Perguntem ao José Eugénio.
A apoteose na RTP1 de domingo passado não é mais do que um prémio merecido. Pela simplicidade de José Eugénio e Maria Eugénia. Pelo génio musical que cada um deles encarna.
Sonhar é o melhor remédio.
Padre José Júlio Rosa