O arqueólogo Diogo Teixeira Dias publicou um texto de investigação na revista científica Al-Madan, do Centro de Arqueologia de Almada, onde refere que o ilhéu de Vila Franca do Campo,” paisagem indissociável” da costa sul da ilha de São Miguel, tem, na sua costa, pelo menos três sítios com interesse arqueológico subaquático: os canhões do ilhéu, o naufrágio do vapor Maria Amélia e o cemitério das âncoras”.
Na primeira parte do artigo, o investigador fala sobre a relevância da arqueologia em redor do ilhéu de Vila Franca, chamando a atenção para o desinteresse dos investigadores e para o facto de a actuação da Direcção Regional da Cultura não ser suficientemente diligente para com os achados arqueológicos em redor do ilhéu, fazendo o retoque de ter todos os técnicos ligados à arqueologia em Angra do Heroísmo. O primeiro texto, que o Correio dos Açores publicou na nossa edição de 6 de Fevereiro, terminou com a questão: “Qual a razão da existência de três canhões” numa zona próxima do ilhéu de Vila Franca, partindo do princípio de que o recuperado em 1954 pertencia a este conjunto?”.
Numa “interpretação preliminar”, Diogo Teixeira Dias assume como a “menos provável das hipóteses o descarte, ou perda, de artilharia, por uma eventual estrutura edificada no ilhéu, ou de uma embarcação”.
Como acrescenta, “três canhões, no mesmo lugar, e junto à boca do ilhéu de Vila Franca do Campo, poderão ser um indicativo evidente de naufrágio. Ou de uma embarcação que teve dificuldade em atravessar o canal para a bacia, ou mesmo de um arrastamento inopinado pelas correntes”.
O investigador faz eco de que os naufrágios reportados ao largo do ilhéu de Vila Franca do Campo, dos quais se conhece registo, são os da chalupa inglesa ‘Lochyan’, no Inverno de 1806, e do brigue português ‘Restaurador’, a 1 de Fevereiro de 1813 (MONTEIRO, 1999: 27).Ocorrências que, porém, não coincidem com a datação atribuída às peças de artilharia, dificilmente se associando naufrágios do séc. XIX a este calibre de armamento”.
Segundo Diogo Teixeira Dias, “com maior probabilidade, pode colocar-se ainda a suposição de este sítio ter resultado de um descarte de lastro, consideranda prática corrente, a partir do séc. XVIII”.
Cita, a propósito, a arqueóloga N’zinga Oliveira, ao referir que “também se reutilizavam barras de ferro ou peças de artilharia” para esse fim [lastro] (OLIVEIRA, 2012: 21)”.
“Aliás”, prossegue o investigador, “consideremos desde logo que, ao contrário das peças em bronze, as peças em ferro não tinham qualquer valor de reutilização prática, que não o de lastro, visto que após se fissurarem pelo uso se tornam inoperacionais”.
Já as peças de bronze “se incapazes poderiam ser recicladas, isto é, regressarem à fundição, as de ferro, quando ficavam impossibilitadas de tiro, eram “abandonadas no seu local” ou aproveitadas para “cabeços de amarração” (MARTINS, 2018: 57)”.
Em sequência, apresenta outro dado “relevante” baseado em outras fontes: “É que a partir de 1624 proíbe-se o vazamento de lastros, quer no interior, quer no lado norte, sob pena de “dez cruzados para a limpeza.”
Ainda assim, prossegue, “ressalve-se uma proibição formal dificilmente garantiria, na prática, a ausência do delito. Mas este acto necessariamente possibilita a calibragem de uma datação das peças, caso sejam consideradas como resultantes de descarte de lastro. Aponta-se então para uma maior probabilidade de serem coevas, ou anteriores, à primeira metade do séc. XVII”.
No entender do investigador, “o sítio poderá corresponder, com maior probabilidade, a um naufrágio por identificar. O que acrescenta aos argumentos da imperativa necessidade de se investigar o sítio in loco mas também em arquivo, com a maior brevidade possível. Sobretudo considerando que o que ali está são duas peças de artilharia, sobrepostas, e não separadas por larga distância. Uma peça isolada, ou mais do que uma, numa maior área de dispersão, traria outras hipóteses como a do descarte de artilharia, ainda que operacional, para a redução do peso da embarcação, em caso de perigo de naufrágio”.
“Finalmente, e podendo parecer, à partida, o mais evidente, a ausência de vestígios de estruturas fortificadas não autoriza a atribuição destas peças a uma defesa em terra, no ilhéu”, salienta o investigador.
Parque Arqueológico
Segundo Diogo Teixeira Dias, o primeiro passo que agora vai ser dado é a “classificação” do achado arqueológico. “Não necessariamente isolada, mas sim, e para benefício comum, da totalidade dos sítios na área: o cemitério das âncoras e os canhões do ilhéu”.
O investigador vai mais longe, considerando que “à semelhança do Parque Arqueológico Subaquático da Baía de Angra, criado em 2005, e dos que se seguiram, seria pertinente constituir o Parque Arqueológico do Ilhéu de Vila Franca do Campo”.
Esta acção, prossegue, “seria o mote fundamental para a infra-estruturação dos locais, reduzindo o lançamento dos sistemas de ancoragem próprios das embarcações, através da colocação de poitas e bóias de amarração. Este tipo de sistema já se apresenta, por exemplo, no Parque Arqueológico Subaquático do “Dori” (naufrágio ao largo da ilha de São Miguel), criado em 2012”.
No entender de Diogo Teixeira Dias, o sistema “possibilita indirectamente a conservação do fundo, não se verificando a erosão que resulta da constante ancoragem, com os sistemas das embarcações (fateixas e âncoras)”.
Depois, prossegue, deve-se “projectar uma prospecção, que percepcione claramente a linha de dispersão dos vestígios, através da qual se programe, caso venha a ser necessário, uma intervenção mais alargada, e intrusiva, designadamente escavação”.
Entende ainda que seria de renovar o registo fotogramétrico (3D), “numa abordagem sistemática, considerando que o sítio tem vindo a sofrer alterações na sua disposição”.
“Em simultâneo”, afirma, “será imperativo constituir-se, por razões consultivas, uma base de dados estatística, para a percepção do número de mergulhos realizados nos locais classificados como ‘Parque Arqueológico Subaquático’, para uma percepção clara do rácio visitante/investimento”.
Isto “ainda que não deva ser o indicador basilar da aposta na infra-estruturação dos sítios arqueológicos subaquáticos, torna-se um dado relevante quando os recursos são escassos e necessário fundamentar a priorização da sua alocação”.
“Uma realidade preocupante”
Assim, afirma, “não são apenas conhecidos, para a ilha de São Miguel, “quatro os sítios arqueológicos subaquáticos visitáveis”, conforme afirmam outros autores, mas sim, no mínimo, cinco, contando com os canhões do ilhéu”.
Considera o investigador que “a desconsideração deste lugar como oficialmente um sítio de valor arqueológico persiste não pela sua efectiva inexistência, nem pela notificação de achado e, muito menos, pela ausência de um fluxo de visitantes, como verificado”.
No seu entender, “a não referenciação dos canhões do ilhéu é sintomática de uma realidade preocupante, no que há gestão do Património Arqueológico Subaquático diz respeito. Tem-se secundarizado a deslocação efectiva a alguns territórios. E isso traduz-se, por vezes, num conhecimento menos objectivo, em função do que se apresenta na realidade”.
Releva que, “caso se venha a verificar a replicação sistemática desta situação, seria relevante, até por uma questão de prestação de contas (accountability), perceber e analisar as razões desta ocorrência. Sobretudo quando há investimento público – que é de todos e para todos”.
E, a propósito, Diogo Teixeira Dias deixa algumas questões: “Descartando, como fizemos, o desconhecimento do sítio, objectivamente há uma orientação política nalgum sentido divergente? Haverá diversidade de visões, aquando do desenho estratégico das iniciativas? De que forma é condicionada a decisão política – necessariamente menos esclarecida que a técnica?”.
Onde estão os arqueólogos?
Ao Correio dos Açores, Diogo Teixeira Dias desenvolve: há pelo menos três arqueólogos e um técnico de arqueologia em Angra, na DRAC. Quantos há em Ponta Delgada, por exemplo? Onde há obras a afectar património cultural todos os dias… Os directores regionais são decisores e não técnicos. Tomam opções mediante um conhecimento global, e necessariamente limitado, dos assuntos. Decidem em função do caminho que os técnicos lhes indicam – e muito bem. Como decorre esse processo? O que resulta daí?”
“Em boa verdade”, sublinha o investi-gador, “reconhece-se a sistemática condição parca dos recursos atribuídos à Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Mas não podemos, de igual modo, deixar de constatar a discriminação que ocorre perante os sítios em ilhas nas quais não estão sedados os recursos humanos da tutela. Bastará analisar-se, através dos dados que são públicos, e inquiríveis, a quantidade de trabalhos arqueológicos directamente realizados pelos recursos da tutela e a sua distribuição geográfica. Facilmente se compreenderá até onde chega a coesão territorial da Região Autónoma. E, assim, a tutela que fiscaliza, é a mesma que desenvolve os trabalhos arqueológicos que avalia”.
No que concerne à cooperação, afirma Diogo Teixeira Dias, os municípios, com capacidades técnicas na área da Arqueologia Subaquática, nos quais se insere o de Vila Franca do Campo, “devem ser tidos como parceiros estratégicos para se dirimir a rígida envergadura do alcance dos serviços do Governo Regional. Quer em matéria defiscalização das condições do Património Arqueológico Subaquático, quer em matéria de definição de políticas plurianuais de intervenção”.
O investigador conclui, finalmente, que os operadores de mergulho locais, são também, quer logisticamente, quer do ponto de vista da comunicação de Ciência, parceiros fundamentais na consolidação e difusão do conhecimento. E é esse trabalho, porque direccionado à base, e por se constituir numa força ascendente, o maior defensor, a longo prazo, do que cá vamos deixando – e não raras vezes esquecendo”, termina.
João Paz