José Soares, mais conhecido por José Rebeca, natural da Achada, Nordeste, no século passado vagueava pelas freguesias do concelho, descalço, a pedir esmola. Poucos percebiam o que dizia, tinha um olhar expressivo, e andava sempre de bordão e saca de lona. José Rebeca foi homenageado na Casa João de Melo, a 8 de Fevereiro, com um painel evocativo à sua memória. O tributo foi pensado por João de Melo, premiado escritor natural da Achadinha, que se inspirou em José Soares para a criação de uma personagem de um dos seus livros. João de Melo conta que sempre viu em José Soares um retrato de uma humanidade muito remota: “o senhor José Soares era, positivamente, o retrato da muita miséria que existia no concelho do Nordeste naquela altura.”
Quem foi José Furtado Soares, vulgarmente chamado por José Rebeca, que foi agora homenageado pela Casa de João de Melo com um painel evocativo?
João de Melo (escritor) – José Soares, que naquele tempo toda a gente chamava José Rebeca, era um pobre, natural de uma das freguesias de Nordeste, que peregrinava continuamente por aquelas povoações a pedir esmola e a oferecer-se para trabalhos, como forma de pagamento. Chamavam-no de “rebeca” ou “rabeca,” porque o falar dele lembrava o instrumento da rabeca e era difícil entendê-lo.
José Rebeca era uma pessoa que tinha alguns problemas mentais, porque, entre as coisas que toda a gente verificava, falava de uma forma que pouca gente compreendia, por um lado. Por outro, tinha um olhar expressivo demais, quase agressivo, mas que não condizia com a pessoa. José era uma pessoa pacífica.
Como nota da sua eventual menor lucidez, fazia algo que nos causava espanto: quando lhe davam dinheiro, ele não aceitava as moedas brancas. Naquele tempo eram escudos, de 50 centavos para cima eram moedas em prata, depois havia os tostões que eram negros, de cobre. Ele só aceitava o dinheiro negro. Ou seja, só aceitava o dinheiro que tinha menos valor. Isto dá nota do que ele era e pensava.
José Rebeca vagueava por aquelas aldeias, de porta em porta, descalço, roto e remendado, com uma saca de lona às costas, um bordão que tanto amparava o cordão das esmolas como o aparava a ele, e que servia também para enfrentar os miúdos que lhe atiravam pedras, que lhe chamavam nomes e lhe atiçavam os cães.
Era uma figura digamos que bizarra, do ponto de vista da sua humanidade, mas carregada exactamente dessa humanidade muito própria dele.
Nascido em 1897 e falecido em 1983, José Rebeca serviu de inspiração para um dos seus livros…
Pensando muitos anos depois na sua figura, decidi dar-lhe um nome diferente e incorporá-lo num livro meu, chamado “O Meu Mundo Não É Deste Reino.” Aí, ele é a personagem João- Lázaro, nome nitidamente com ligação à Bíblia. É uma personagem que atravessa várias fases. Uma é aquela terrena, que acabo de descrever: pobre, miserável, a dizer coisas que ninguém entendia. No livro diz-se que era vagamente Latim. Na realidade, era um português muito remoto que ele usava para se exprimir.
Na narrativa, este pedinte morre e é enterrado no cemitério da Achadinha. Dias depois, a terra levanta-se, ele ressuscita e surge transfigurado, numa espécie de novo patriarca que vem anunciar o progresso, a civilização e também a revolução para as ilhas. Tem uma voz quase profética daquilo que veio a acontecer muitos anos depois, no país, que foi o 25 de Abril. Ele antecipou este evento, assumindo um carácter quase divino. Anunciou a vinda da electricidade, da televisão, e destas coisas que naquela altura não existiam nos Açores, o que desembocou, de tal maneira, numa revolta que transforma o Rosário numa colmeia de revoltosos contra o regime. Para sufocar essa ressurreição, vêm os americanos, desembarcam na Achadinha no pesqueiro e levam João-Lázaro consigo, porque consideravam-no uma criatura muito especial. A literatura tem estes delírios. A evolução desta figura, do seu carácter terreno e miserável, para uma figura áurea e poderosa, só é possível através da ficção e foi o que fiz.
“O Meu Mundo Não É Deste Reino” é, simultaneamente, uma repescagem da memória local e também da denúncia da ordem que aí se praticava e que era comum a todo o país, e, depois, o seu contrário, que era a vinda da democracia. No entanto, os americanos, como donos do mundo, põem termo e não permitem que nas ilhas se faça a revolta, muito menos revolução.
Que recordações tem de José Soares?
O senhor José era uma figura do nosso quotidiano, tanto em casa, como na rua, quase diariamente. Ele vinha de uma freguesia próxima, entrava na Achadinha, pela rua Direita abaixo e logo ali parava nas casas. Então era inevitável o encontro com ele, quer ali na rua, quer, depois, ao pé das escolas, às quais ele se aproximava, também. Ele era, em geral, vaiado, lesado e até muitas vezes afastado. Havia um pouco de tudo. Havia um pouco de ternura, sobretudo por parte das mulheres, em relação a ele. Os miúdos eram mais cruéis e mais assanhados, porque tentavam afastá-lo e o José tentava defender-se deles com uma espécie de cajado, que trazia com ele, e enfrentava também os cães que lhe atiçavam.
Nunca participei dessas crueldades, não porque tenha sido um menino diferente dos outros, mas porque sempre vi nele o retrato de uma humanidade muito remota que eu queria conhecer melhor e que me ensinou também algo sobre o género humano, daí a sua transfiguração literária quando decidi escrever este livro.
Que mensagem José“Rebeca lhe deixou?
José Soares, sem dizer nada e sem poder falar e ser entendido, era visualizado por nós como um caso de consciência, se calhar até muito mais do que outros pedintes e pobres. Havia pessoas muito pobres naquele tempo, descalças, rotas, remendadas e frequentemente feridas, devido aos tropeções nas pedras do caminho ou a agressões.
José Soares era para mim um caso de humanidade que não se compreende e não estava cumprida. A forma que encontrei, muitos anos depois, de o resgatar dessa condição primitiva e de tal maneira limitada, foi dar-lhe outra dignidade e outros poderes e até a capacidade de castigar quem o tinha perseguido.
O senhor José era, positivamente, o retrato da muita miséria que existia no concelho de Nordeste naquela altura. O dominante das pessoas, e sobretudo das crianças e dos homens, era andarem descalços. A minha infância foi toda ela descalça, e a dos meus irmãos, amigos e vizinhos. O contacto dos pés com o chão, que aliás não era nada suave para os pés, transposto para aquela figura, que descia pelas ruas abaixo a pedir esmola para sobreviver era positivamente um retrato possível do submundo daquela sociedade de então. Havia muitas outras pessoas pedintes e havia sobretudo ladrões nocturnos que assaltavam as tulhas e as galinhas para dar de comer aos filhos, porque a miséria era muita.
O senhor José Soares representa um estádio de evolução do salazarismo e do poder eclesiástico e dos poderes temporais, também, daquela altura. Ele era uma figura desta ordem, repreendida e injustiçada, que abundou no concelho de Nordeste, praticamente até à revolução.
Vivi duas condições portuguesas, uma insular, e outra aqui no continente e admirei-me imenso quando cheguei aqui e fui estudar para uma aldeia do interior, onde a pobreza era infinitamente menos pobre do que nos Açores. Não via ninguém descalço. Aos 10 anos, quando desembarquei em Lisboa, ao fim de cinco dias de viagem, e vi toda a gente bem vestida e calçada julguei que era Domingo, porque nos Açores só nesse dia as pessoas se calçavam para ir à missa, porque nos outros dias andavam descalças. Esta cidade “dos Domingos” que vim encontrar em Lisboa é uma espécie de patamar superior daquilo que não existia nas ilhas. A pobreza nas ilhas era infinitamente mais pobre do que no continente, daí o fenómeno específico, também, da insularidade e de todo o percurso histórico das ilhas na sua dimensão própria e na sua marcha para o progresso e para a civilização do século XXI.
Mariana Rovoredo