Não conheço livro mais rigoroso sobre o conflito israelo-palestiniano que este. Se bem que anterior ao drama que atualmente se vive na faixa de Gaza, que está a incendiar a opinião pública mundial, este guia de Daniel Sokatch, da Bertrand Editora, é uma obra esclarecedora, não só sobre a génese do conflito, como vai comentando o que se passou a partir do Mandato Britânico na Palestina, como se deu a desarrumação do território que era maioritariamente dos palestinianos, as sucessivas guerras, as Intifadas, os acordos esperançosos, a avalanche de colonatos em território palestiniano, a chegada ao poder de uma direita radical associada a ultraortodoxos, o papel desempenhado pelos EUA, e também as janelas de oportunidade que se põem a um futuro de tolerância, se acaso se ultrapassar esta vaga imperialista israelita e se gere um quadro de harmonia entre todos os palestinianos, interessados em reerguer o seu Estado, hoje uma aspiração quase universal: “Israel, Um Guia Sobre o Conflito Israelo-Palestiniano para os curiosos, confusos e indecisos”, ilustrado por Christopher Noxon.
O autor é dirigente de uma organização dedicada à igualdade e à democracia para todos os israelitas, o New Israel Fund, tem largo currículo como publicista e formador de opinião pública, tendo sido diretor-executivo da Federação da Comunidade Judaica de São Francisco. “Esta é a história do porquê de Israel transformar alguns judeus liberais clássicos em ultraconservadores numa única questão. É a história do porquê de Israel inspirar tantas lealdades e alianças ferozes a certos cristãos evangélicos que nunca conheceram um judeu verdadeiro ou para quem os judeus verdadeiros são basicamente almas que devem ser salvas ou despertadas para o Apocalipse. Neste livro, tentarei explicar a história e os contornos básicos de um dos mais complicados conflitos do mundo.” Estão em confronto dois povos, ambos com ligações e pretensões legitimas à terra, importa saber como chegarão a um justo termo em que tanto israelitas como palestinianos devem ter direitos iguais e a sua segurança garantida, e Jerusalém se manterá como espaço religioso das três religiões monoteístas.
Inicia-se esta digressão por contar o que se passou neste território ao longo de milénios, como a partir do ano 70 d.C. e até meados do século XIX os judeus viveram em diáspora, se espalharam sobretudo pela Europa, um pouco por África e foram atraídos pelos Estados Unidos. Conheceram perseguições e massacres por razões religiosas, por preconceitos nacionalistas e raciais. Surgiu depois a ideia sionista, isto é, a ideia de que o povo judeu tinha direito à autodeterminação na sua antiga pátria de Israel; como o tal fenómeno imperialista que hoje preside em Israel tem a sua génese em duas visões do sionismo, os trabalhistas e os revisionistas e os religiosos, são estas duas últimas visões que hoje governam Israel, pretendendo expulsar os palestinianos, sugar todos os recursos naturais e, em caso algum, dar direitos iguais aos árabes que vivem desde sempre no Estado de Israel.
O autor não esconde que no Mandato Britânico os judeus formaram um grupo terrorista que pôs bombas, matou e torturou britânicos. Estes, pretendiam restringir a emigração judaica para a Palestina, impunha-se fazer uma divisão equitativa do território. Tudo se agravou com o Holocausto que acelerou o ritmo da imigração de judeus para a Palestina. Os judeus declararam a independência já em guerra civil entre judeus e árabes, estes atacavam as comunidades judaicas, os judeus responderam com um massacre na cidade de Deir Yassin, na periferia de Jerusalém, acontecimento que horrorizou os árabes palestinianos, os árabes põem-se em fuga, nasce o Estado de Israel, Estado judaico, sucedem-se as transferências de população, constrói-se um Estado com ajuda da comunidade judaica internacional e fundamentalmente com o dinheiro norte-americano, o que a América dá a Israel supera o que dá em termos de cooperação à escala universal, não só por razões estratégicas no Médio Oriente mas para satisfazer uma parcela de eleitores judaicos e evangélicos.
Temos a descrição das guerras, a ocupação de terras, desde as que pertenciam à Jordânia, outras à Síria e o Sinai, que pertence ao Egito. Foi Ben-Gurion quem alertou os israelitas para o perigo da miraculosa vitória de 1967 e os territórios conquistados; o fundador de Israel declarou que tinham de devolver os territórios acabados de conquistar, caso contrário perdia-se qualquer hipótese de haver paz com os vizinhos, e se não se devolvesse o território Israel não podia continuar a ser um Estado democrático e judeu. Vieram as resoluções da ONU, outras se irão seguir, Israel não as acata. Temos a sequência dos acontecimentos: os massacres do Setembro Negro na Jordânia, a guerra do Yom Kippur, depois as negociações de Camp David, depois a desintegração do Líbano, o nascimento da OLP, as Intifadas, o imperialismo sobre a máscara de que se trata de defesa, os planos de Yitzhak Rabin para chegar à paz com os palestinianos, assim se chegou aos acordos de Oslo, Rabin é assassinado por um fanático judeu, surge uma nova onda imperialista, uma nova guerra no Líbano. Obviamente que, ao longo de todas estas décadas, grupos radicais palestinianos praticaram também terrorismo, desde raptos e sequestros, morte de atletas olímpicos israelitas, bombas-suicidas, e muito mais.
Estamos chegados ao século XXI, e o autor designa este tempo como da recessão democrática, o líder todo-poderoso é Netanyahu, vitorioso em mais de cinco eleições israelitas, no meio de um crescente conjunto de escândalos pessoais e políticos, com três acusações criminais e uma despudorada tentativa antidemocrática para controlar o poder judicial. Israel dá sinais de autocracia, a direita radical tem minado todas as soluções para a convivência entre dois Estados, Netanyahu deu-se lindamente com Trump, este tudo fez para deitar abaixo a doutrina norte-americana dos dois Estados. O espezinhamento dos direitos palestinianos está em alta, como observa o autor: “Muitas comunidades israelitas modernas estão construídas sobre as ruínas de vilas e cidades árabes que foram abandonadas, esvaziadas ou arrasadas durante a Guerra da Independência de Israel. E essas comunidades árabes tinham sido construídas sobre povoações judaicas nas eras medieval e bíblica, pelo que tanto judeus como árabes têm profundo sentimento de posso e de ligação à terra – um sentimento que cada um dos lados tenta argumentar como sendo mais justificado que o do outro.” E as autoridades de Israel também aceitam o despudor que os arqueólogos dirijam um enorme complexo destinado a reforçar as reivindicações israelitas sobre toda a cidade de Jerusalém.
O autor disseca a situação dos cidadãos árabes de Israel que vivem segregados, despojados de direitos; explica como a maioria dos judeus americanos não pactuam com o fanatismo verdadeiramente racial dos atuais dirigentes, estes, por pura hipocrisia e conveniência, recebem de braços abertos os cristãos evangélicos, uma turba apocalítica que sonha com o Armagedão que separa os puros dos impuros.
De leitura obrigatória, dada a honestidade e a humanidade que atravessa este portentoso ensaio.
Mário Beja Santos