Ontem assinalou-se a Quarta-feira de Cinzas, o dia em que os cristãos de todo o mundo começam a preparar a Páscoa. O jornal Correio dos Açores esteve à conversa com o padre Duarte Melo da paróquia de São José, que falou da “vivência quaresmal” e explicou alguns dos simbolismos que a protagonizam.
Correio dos Açores – Qual a importância da Quarta-feira de Cinzas para os cristãos?
Padre Duarte Melo (Pároco de São José) – A Quaresma inicia-se precisamente com a Quarta-Feira de Cinzas, uma celebração muito sóbria, simples e que nos apela a viver do essencial neste tempo. As cinzas que são impostas na cabeça dos fiéis são acompanhadas também de duas expressões muito fortes: “convertei-vos e acreditai no Evangelho” e “recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar”. O essencial da vivência quaresmal é o facto de ser um tempo de reconciliação, de mudança de formas de pensar e ser, a que chamamos reconversão. É preciso que as pessoas se voltem para Deus para depois encontrar outros caminhos de vida.
Com todos os cristãos a inaugurarem a quaresma, a Quarta-Feira de Cinzas tem o propósito de levar-nos ao mistério pascal, ao fundamento da nossa fé. Serve para preparar a Páscoa, que é a festa por excelência dos cristãos, a festa que dá de facto alicerce de vida e de sermos seguidores de nosso senhor. A Quaresma é um tempo que nos favorece.
E favorece-nos também com recomendações que a Igreja faz, nomeadamente pela oração mais intensa, mais diligente, fazendo-nos sentir que é uma oração que abraça toda a ilha, precisamente pelas manifestações de religiosidade popular que são a expressão desta intensidade e vivência que os cristãos devem fazer durante a Quaresma.
E para que é que serve a oração? A oração é quase como um enamoramento com Jesus. Também estamos hoje (ndr: ontem) a celebrar o dia dos namorados e o enamoramento é sempre um lugar de conhecimento. Por isso, a oração também nos leva a descobrir mais Jesus Cristo que é tudo na nossa vida através dela.
A imposição das cinzas é uma tradição que remonta a quando e o que representa?
É uma celebração longínqua dos tempos da Igreja. É sóbria, comedida, silenciosa e que nos apela à interioridade. Por isso é que os textos bíblicos, inclusivamente a primeira leitura de Quarta-feira de Cinzas, diz: “rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes”. Portanto, é a partir de dentro porque o coração é o lugar onde podemos sentir a brisa suave da presença de Deus. É a importância de um coração convertido, é um coração humano, que tem ternura, que se avizinha dos feridos da vida. É por isso que na quaresma a Igreja recomenda que iniciem a oração, esta prática fundamental que nos dá o respirar da graça de Deus. É quase como um namoro, a oração leva-nos a isso porque sossega a nossa vida, faz-nos centrar naquilo que é essencial, naquilo que nos dá a verdadeira alegria.
A Igreja recomenda outras duas práticas que são muito interessantes e que não são apenas uma questão disciplinar: o jejum e a abstinência. Jejuar leva-nos a uma certa disciplina, porque, por vezes, a nossa vida é muito anacrónica muito dispersa e nós cansamo-nos é pela dispersão. A dispersão desgasta e actualmente as pessoas vivem vidas muito desgastadas porque não se centram no essencial. Para tal, também é preciso silêncio, e o jejum leva-nos a isso. Ajuda-nos a centrar, a renunciar, a disciplinar todas essas vozes interiores que muitas vezes são vozes confusas.
Através do jejum podemos ouvir a voz de Jesus que nos apela a sermos gente boa, gente com finais de bem-fazer e sem olhar a quem. Por isso, a oração é o lugar de excelência para se fazer o discernimento das coisas que são ambíguas, das meias verdades, daquilo que está confuso na vida e termos a coragem de tomar decisões. Por vezes, levamos vidas inteiras a adiar decisões e isso torna-nos pessoas amarguradas e azedas. O jejum também nos leva à esmola, a sermos pessoas solidárias. Não por fins estéticos e externos, a grande estética do jejum é interior, aquela que vem curar as feridas que por vezes estão muito expostas no nosso próprio interior.
Podemos resumir tudo isso nas obras de misericórdia, que são espirituais e corporais. O que é que eu devo fazer na Quaresma a partir das obras de misericórdia? Estamos a falar de um horizonte espiritual, um caminho para o interior, algo que nos inquieta para nos pacificar. O tempo da Quaresma é muito próspero para aprofundar a nossa própria humanidade a partir da humanidade de Jesus, que se entrega por nós, morre numa cruz para nos abraçar com a ressurreição, com a vida eterna. Também se fala pouco de vida eterna, as pessoas julgam que estão eternamente neste mundo, daí que “recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar” vem também nos relembrar que tudo isto é relativo e provisório, que estamos em trânsito, que somos um povo de nómadas, de romeiros, de peregrinos… E devemos ver tudo isto nessa perspectiva a doutrina cristã que é um tesouro imenso que dá qualidade de vida às comunidades que, por vezes, estão tão cansadas e tristes que se vão desumanizando porque deixam de ter as referências que nascem sempre do coração.
As Cinzas são impostas na cabeça das pessoas, são feitas a partir dos ramos de árvores do Domingo de Ramos do ano anterior. A cinza é isso, é uma coisa muito frágil, que desparece num instante. Não há mais nada para dizer perante a cinza, está tudo dito. É nela que está a cartografia do finito. De certa maneira, a nossa vida também é isto: vai-se consumindo no tempo, portanto, o tempo é fundamental para a nossa santificação.
Como é que os jovens sentem e encaram a Quaresma?
Temos a preocupação constante com a juventude, porque detemos o tesouro da fé que é guardado no coração e passado aos mais novos. O que se nota é que há muita gente desligada desta dimensão religiosa e espiritual, estão muito marcadas pelo materialismo e consumo e fazem do prazer uma religião. Isso não traz leveza, traz prazeres muito momentâneos. Depois, também há espiritualidade paralela que é descontextualizada da nossa cultura, as práticas orientais. O grande problema é que quando as pessoas dispensam o transcendente e Jesus, tornam-se muito orgulhosas e fechadas sobre si e o grande problema do mundo de hoje e das nossas sociedades é viverem como se Deus não existisse. As sociedades europeias estão bastante envelhecidas porque se desgastaram no prazer do consumo e neste percurso também vão perdendo a alma. A própria Igreja também ajuda a estruturar as sociedades.
Claro que há muitas pessoas que estão descontentes e escandalizadas, pessoas que se sentiram feridas pela própria Igreja e pela própria comunidade, mas que precisam também de reconciliação.
Que mensagem tem para aqueles que procuram reconciliar-se com a Igreja?
Que não deixem de procurar, de fazer perguntas a Deus e à vida, que questionem, que façam pazes com silêncio, porque no silêncio pode-se encontrar o verdadeiro aplauso da vida. Procurem orientação espiritual, pessoas credíveis espiritualmente, façam boas leituras espirituais. Tudo isso ajuda as pessoas a curarem-se interiormente e a descobrir depois o valor do cristianismo, uma religião tão bonita e que não vem carregar ninguém, que é leve. O próprio Jesus diz “o meu jugo é suave e a minha carga é leve.” Nós, às vezes, é que complicamos as coisas e o cristianismo não é isso, é leveza.
É visível o aumento do número de sem-abrigo e de consumidores de novas substâncias psicoactivas em Ponta Delgada. Qual é o papel da Igreja no auxílio destas pessoas?
É visível o seu drama. Reflecte uma sociedade doente, com incapacidade de tratar dos seus doentes, a começar pela prevenção. Há, neste campo, falhas no âmbito das políticas e todos nós somos chamados a participar no processo de resgate e recuperação dessas pessoas que estão completamente perdidas, sem horizonte de vida, sem objectivos e sem alegria. Portanto, pessoas também muito doentes na sua alma.
Ao longo dos tempos, a Igreja tem tido sempre essa preocupação pelos mais feridos e pobres da vida, no acolhimento e também em programações de inclusão. É preciso não esquecer que a Igreja é que alertou para a questão dos repatriados e iniciou este caminhar.
Esta é uma questão social que requer um trabalho de todos, em que a Igreja não está isenta de participar, juntamente com outras instituições cristãs e não cristãs da sociedade civil e do Governo. A situação é grave e vê-se quase uma incapacidade de acção que é preocupante porque o problema está a aumentar e torna-se muito mais visível na cidade, que se torna numa cidade que parece mal vivida, onde o problema social e de exclusão deambula nas ruas de forma desorientada. Estas pessoas têm de ser resgatadas e reorientar as suas vidas. É um trabalho muito personalizado que deve ser feito, mas isso requer também recursos, humanos e financeiros, e políticas assertivas que envolvam a comunidade no seu todo.
Caso contrário, vai ser muito difícil minimizar o problema e resgatar essas pessoas porque elas não têm qualquer desejo de vida. O objectivo destas pessoas é ter dinheiro da mendicidade para comprar droga. Não há outro horizonte. Temos que trabalhar essas problemáticas de outra forma, que não é aquelas que estão a ser feitas, parece-me. E o resultado está à vista.
Qual é a dimensão da comunidade cristã dos Açores que celebra espiritualmente a Páscoa?
Nós sentimos a vivência pascal em todos os Açores. São dois tempos diferentes: a quaresma prepara a Páscoa e depois a Páscoa inicia-se com a Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa, Sábado Santo e o Domingo Pascal. Depois, a Páscoa prolonga-se até ao Pentecostes e as pessoas já começam a viver a dimensão festiva da Páscoa pelas Domingas ao Espírito Santo. O espírito de Jesus ressuscitado, o Espírito Santo diz-nos precisamente isso. São festas muito vividas, o problema é que, às vezes, são pouco explicadas. São vividas e repetidas pela tradição, mas precisam de ter um aprofundamento espiritual que está a faltar.
Que mensagem quer deixar aos nossos leitores?
A mensagem de Quaresma é que não tenham medo de abrir o seu coração. Deixem-se ficar com Jesus como quem escolhe a melhor parte e façam o seu percurso espiritual porque vão ganhar muito mais vida.
Daniela Canha