Fale sobre o seu percurso profissional, de vida e desportivo?
Simão Neves (criador do Bairro Digital de Ponta Delgada ) – Tenho 51 anos e sempre fiz toda a minha vida em Ponta Delgada. Tirei o curso de Gestão e a partir daí exerci em várias áreas, começando pela banca e passando por vários sectores, sempre numa óptima de gestão e execução de projectos, implementando, ora secções, ora direcções, ora negócios no âmbito da informação de gestão, de controle. Com isto fui ganhando uma perspectiva muito alargada do que é a actividade económica, nomeadamente das empresas, ao nível das várias áreas de actividade.
Em 2012, a empresa onde trabalhava, fechou. Nessa altura decidimos em família, e isto é uma questão basilar para mim, criar uma empresa, e aí entrou a parte do empreendedorismo. Podemos ser empreendedores por conta própria ou por conta de outrem e acabei por chegar à ligação a um sector de actividade primário: a comercialização de pescado. Nessa altura trabalhei com um grupo espanhol, que me permitiu continuar a viver onde a minha família queria viver, mas tendo acesso a uma realidade internacional ligada a uma empresa que factura na ordem dos 70 milhões de euros. Montei para eles uma empresa em Rabo de Peixe e aí tive que lidar com diferentes coisas. Nesse projecto tive que lidar com um dos maiores desafios da minha vida, a covid. Nunca paramos, tinha que atravessar barreiras sanitárias para ir trabalhar. Foi uma sensação horrível porque eu era o possível agente de contagioso para a minha família. Por outro lado, permitiu que o sector trabalhasse todo, em conjunto com o Governo Regional, para encontrarmos soluções.
A partir dessa experiência tive a oportunidade de estar na Administração de empresa pública. Foi uma experiência extraordinária, que voltaria a seguir, mesmo que as coisas tenham terminado de uma maneira menos positiva, pois permitiu-me trabalhar com um conceito incrível: os Açores. Esta empresa tem instalações e pessoal nas nove ilhas e eu de seis em seis meses percorri os Açores. Nessa altura acumulávamos a Administração da conserveira Santa Catarina no dia em que São Jorge foi fechado eu estava a aterrar na ilha. Foram experiências de vida muito grandes que culminaram com a oportunidade, através de um processo de recrutamento para gestor do bairro comercial digital do Centro Histórico de Ponta Delgada, de abraçar um projecto novo.
Sempre tive ligado ao associativismo desde novo e é algo que levo sempre na minha vida profissional.
O desporto vem desde sempre. Primeiro como atleta e depois, quando deixei de jogar, fui para dirigente, em primeiro lugar, e para presidente em segundo. Hoje em dia estou numa vertente que me permite aliar a gestão com o desporto uma vez que sou treinador de formação. Como os miúdos esta ali porque gostam e sendo assim estão mais pré-disposto a aprender coisas. Temos o dever de ensiná-los as coisas importantes. Este é um papel muito importante.
Teve que se reinventar a certo ponto na sua vida. Foi difícil?
Foi difícil mas também foi um desafio muito interessante porque me fez descobrir coisas que eu não tinha. Primeiramente, fez-me perceber que a forma como eu me tinha entregue à minha vida proporcional tinha levado a que o meu currículo apresentasse um vazio de três anos. Quando voltei ao mercado de trabalho, tinha este vazio.
Depois, tivemos que nos reinventar como família. Na altura não vimos a hipótese de trabalhar por contra de outrem e criamos, eu e a minha esposa, a CRIAS, para fazer algo que ainda não havia na Região. Queríamos criar um centro de psicologia e o objectivo era reencaminhar os casos para nós, tratávamos e depois distribuíamos os rendimentos. O objectivo era resolver a causa dos problemas. Também teríamos uma parte de vertente para consultoria, na minha área, para ajudar as empresas. Sempre achei, e continuo a achar, que temos muitos micro e pequenos empresários que precisam de ajuda porque eles são bons a fazer o negócio mas não são bons a gerir.
É difícil conciliar a vida familiar, com o trabalho e o desporto?
Não é difícil porque a minha família sempre me apoiou e esteve envolvida. Tudo o que decido é sempre muito conversado em família. Claro que é precisa ter muita organização, algumas horas de sono perdidas, mas compensa e acabávamos por fazer disso uma experiência de família, também.
Quando estive desempregado, em 2012, foi muito marcante, porque percebi que quando as coisas acabam mal, todos os trabalhadores são da mesma maneira. Então, a partir dai, comecei a dar prioridade à família, algo que não fazia anteriormente. Levamos a vida toda a aprender, e este foi mais um ensinamento.
Foi, e continua a ser, dirigente desportivo. Como vê o desporto nos Açores?
Temos de perceber que, apesar de defendermos o nosso clube, que a nossa Região ou o nosso desporto tem que esta acima de qualquer rivalidade. Acho que se leva muito essas rivalidades para locais onde não deveriam de acontecer. Temos que separar a competição do fazer desporto. O desporto para mim é actividade física e saúde. Devíamos ter o máximo de pessoas a praticar actividade física, por uma questão de saúde e mobilidade. Quanto mais pessoas fizerem actividade física, mais pessoas acabaram por entrar na competição. Isto iria permitir trazer mais pessoas para as modalidades. Por exemplo, no voleibol masculino temos um grave problema de captação de atletas.
Também há falta de instalação desportivas que permitam treinar mais horas. Os resultados têm sido positivos, mas à custa de muito esforço. O haver resultados positivos significa que noutras áreas do país se investe menos em certa modalidade. Aqui temos treinado cada vez menos horas e para se fazer um trabalho de qualidade em uma hora e meia é difícil. Vamos arranjando estratégias para fazer render o tempo e vamo-nos reinventando como treinadores.
A mentalidade a nível de dirigismo também tem que mudar. As rivalidades têm que ficar dentro de campo. Já temos desafios suficientes ao nível das federações ao nível dos Açores.
A questão do recrutamento teria que vir do alargar da actividade física e isso tinha que vir do desporto escolar. O que temos visto é que o desporto escolar existe à custa do desporto federado, pondo muitas vezes em risco alguns atletas. Seria uma boa base de recrutamento se houvesse mais crianças a fazer actividade física. Os espaços cedidos para quem não tem competição também são escassos, o que dificulta ainda mais as coisas. Todos são válidos para praticar desporto porque todos os recursos podem ser importantes.
Foi seleccionado para criar o Bairro Digital de Ponta Delgada. O que sentiu ao ser escolhido?
Quando concorri achei que tinha um projecto muito interessante. A minha base é gestão de empresas com especialização em finanças e marketing. Mas, ao longo da minha vida sempre gostei de aprender e tive sempre a sorte de em casa os meus pais ter acesso a compradores e, portanto, a tecnologia sempre esteve na minha área de interesse.
Sou um curioso e tento sempre olhar para a frente e ver como é que me posso adaptar. O Bairro Comercial e Digital pareceu-me um projecto aliciante para isso pois envolve três coisas que para mim são muito interessantes: o marketing, a tecnologia e o facto de poder fazer alguma coisa pela minha ilha.
O projecto Bairro Social e Digital tem esse nome, mas o objectivo não é só um bairro virtual que retire as pessoas do centro de Ponta Delgada, pelo contrário, queremos que as pessoas venham e tenham outro tipo de experiência. Para além disso, estas ferramentas digitais vão permitir que os comerciantes vejam os seus negócios de outra maneira: podem ter acesso a dados que lhes permitam tomar decisões com base em factos e ajudá-los também a evoluir enquanto empresa.
Por um lado, temos de cumprir e existem prazos e datas e balizas e, por outro lado, já temos criar bases para que o projecto continue, pois, como já foi verbalizado publicamente pelo Presidente da Câmara de Ponta Delgada, este projecto é para continuar pós PRR
Portanto, por um lado é um orgulho e uma honra muito grandes e, ao mesmo tempo, um sentimento de muita responsabilidade e noção de que temos de ter os pés bem assentes na terra. Este é o grande desafio: que isto não seja um mar de intenções, mas seja algo executável e que as pessoas vejam acontecer.
Neste momento, o nosso cronograma está a ser cumprido e se continuar a correr bem, teremos todas as metas atingidas dentro do prazo.
É fácil ser empreendedor. Que características deve ter um empreendedor?
Há sempre as características normais como a liderança, organização, etc. Daquilo que é a a minha experiência pessoal, nós temos de ser humildes para perceber aquilo que não sabemos e para pedir ajuda. Também temos de engolir muitos sapos porque o foco é “chegar lá” e em caso de conflito tenho duas hipóteses: discutir e ficar agarrado à briga, ou arranjar solução. A terceira característica é a criatividade para estar constantemente a arranjar soluções para os problemas que nos vão ser colocados. A última característica que o empreendedor deve fazer como os pinguins do Madagáscar, “sorrir e acenar”. Porque muitas vezes temos de ter a força de espírito para penar: ‘Ok, eu quero chegar ali e tenho de respirar fundo’. Não se trata de fazer o que as pessoas querem, mas arranjar solução sem discutir.
Geralmente só falamos das coisas boas, e um dia estávamos à conversa e percebemos que era bom ver outra vertente. Ofereci-me a falar, porque na prática a minha empresa CRIAS não prosseguiu, mas, por outro lado, através da CRIAS eu cheguei a uma consultoria que me levou a conhecer a empresa espanhola e que me permitiu uma vida completamente diferente. Por um lado, é um fracasso uma empresa não atingir aquilo que é o seu fim, mas, por outro lado, foi isso que me permitiu-me conhecer pessoas incríveis. Temos de estar preparados para o insucesso.
Outra coisa importante é não ser empreendedor por necessidade. Quando desenvolvi a CRIAS estava no desemprego e precisava rapidamente de pôr dinheiro em casa. Nós identificamos o nicho de mercado e sabemos perfeitamente porque é que aquilo não correu bem: fizemos parcerias e quando as formos formalizar, os parceiros já tinham seguido outro caminho. A partir daí foi uma bola de neve.
E aqui tínhamos outro problema: aos 39 estava numa situação monetária em que tinha de pôr dinheiro, é a isso que chamo de empreendedorismo de necessidade.
Nem toda a gente tem características para ter uma empresa e ser empreendedor. Quando fomos exonerados da Lotaçor, naturalmente que uma das coisas que tínhamos em cima da mesa foi o reactivar a empresa. E hoje em dia, com muito mais condições do que eu tinha em 2012 para abrir a empresa, já não foi com a mesma vontade…
Estão criados incentivos suficientes para proporcionar a criação de empreendedores nos Açores?
Tenho estado um pouco afastado da vertente dos incentivos. Criei a empresa foi há 12 anos atrás. Quando montei a empresa espanhola não lidámos com o sistema de incentivos regionais e depois fui para uma empresa pública. Uma coisa que tem vindo a melhorar é o apoio em termos de ajudas que as empresas recebem através das redes que têm sido criadas. Existem redes de incubadoras que estão disseminadas pelas várias autarquias da Região e isto ajuda muito ao primeiro impacto. Mesmo a covid que teve coisas más, trouxe uma coisa muitíssimo boa: a pré-disposição para lidarmos com o online. Hoje em dia conseguimos aceder a muito mais informação e a muito mais pessoas que nos ajudam com informação.
Que mensagem quer deixar aos jovens que tencionam ser empreendedores nos Açores?
Quero deixar uma mensagem em duas partes. A primeira parte de cuidado, no sentido de ponderarem bem os passos que vão dar. E ponderem com a sua família, porque são eles que os vão ajudar numa primeira instância. Com isto não quero dizer para não serem empreendedores, só estou a dizer para serem cautelosos. A segunda parte, o empreendedorismo permite-nos a estar despertos para o que se passa no mundo. Temos que ver se a ideia é viável. Temos que perceber se só temos uma ideia ou se temos uma ideia de negócio, ou seja, se consigo fazer de alguma forma que alguém pague pelo que estou a oferecer e perceber quantas pessoas existem disponíveis para pagar e permitir que seja um negócio viável. É importante ver como fazem o nosso negócio lá fora, não para copiar, mas para perceber que outras formas existem para arranjar receitas. Como vivemos numa ilha, somos um pouco influenciados por aquilo que nos rodeia e se olharmos para fora abrimos horizontes. Existem coisas muito interessantes que existem por este mundo fora que nos podem permitir pensar em outras maneiras de fazer o nosso negócio. É um bom desafio ser empreendedor.
Frederico Figueiredo/Daniela Canha