Nasceu em Curitiba, mas foi nos Açores que Gabriel Salles Silva, o baixista dos D.A.M.A, deu os primeiros passos no mundo da música. Nesta entrevista, fala sobre o percurso que o levou aos grandes palcos, ao lado de nomes como Nenny, Marisa Liz, Bárbara Tinoco e Nelson Freitas. Actualmente, está em digressão com The Readbeds, a sua banda de originais, os D.A.M.A, Da Chick, Mimicat e Eugénia Contente Trio, a banda residente do ‘5 Para a Meia-Noite’. Hoje, regressa a casa, para um concerto no Teatro Micaelense.
Correio dos Açores – Como surgiu o gosto pela música?
Gabriel Salles Silva (Músico) – Posso dizer que sou apaixonado pela música desde sempre. Os meus pais contam que, por algum motivo, quando eu era bebé demorava imenso tempo a adormecer. Eles ponham a rádio a tocar e eu ficava a cantar as músicas e só por fim é que adormecia.
Quando se apercebeu que queria ser músico?
Penso que só tive noção disso quando comecei a ir com o meu pai aos concertos e aos ensaios. O meu pai é músico e quando ia ver os concertos pensava ‘também quero ser assim um dia’.
O que é que o influenciou na escolha do instrumento? Para além do baixo, que outro instrumento toca?
Foi o meu pai, claro. Ele também toca baixo. Tinha mesmo de ser, tinha de imitar o velhote. Para além disso, toco violoncelo, synth bass, que é basicamente tocar baixo num teclado para conseguir os sons mais digitais e estou a começar a aprender piano.
Quais foram as suas maiores inspirações quando começou no mundo da música?
No fundo, só o meu pai. Como imigramos do Brasil os quatro – os meus pais, eu e a minha irmã –, vivemos sempre num núcleo um pouco fechado e a minha casa foi sempre a minha referência para tudo, inclusive nas músicas que eles ouvem. Havia muito AC/DC, Iron Maiden, Pantera, entre outros, mas também se ouvia muito samba e sertanejo por causa da minha mãe, que não pertence ao mundo da música, mas tem um óptimo gosto musical. O meu pai é mais virado para o rock e eu acabo por ser uma conjugação entre os dois.
Nasceu em Curitiba, mas podemos dizer que também é açoriano. Quer falar um pouco sobre este início do seu percurso?
Costumo dizer que no Brasil sou português, em São Miguel sou brasileiro e em Lisboa sou açoriano. Ou seja, não sou de lado nenhum. Mas foi em São Miguel que vivi mais tempo e considero-me mais açoriano do que outra coisa qualquer.
Vim para os Açores em 2001 porque o meu pai arranjou uma banda, que tinha uma residência fixa e, como já estava farto de viver no Brasil, decidiu trazer a família. No início, foi muito complicado a nível financeiro, mas também a nível do preconceito com que tivemos de lidar por sermos de fora, ou seja, no início existiram algumas barreiras que tive de quebrar, mas depois as coisas acabaram por se ir encaixando.
Quando é que começa a dar os primeiros passos no mundo da música?
Aos nove anos comecei a estudar violoncelo no Conservatório de Ponta Delgada e fui aprendendo o instrumento ao longo da minha adolescência. A dada altura, o interesse pelo baixo foi surgindo e comecei a aprender as músicas que o meu pai tocava e ouvia em casa. Então, ele começou a chamar-me para tocar uma música nos concertos dele. Num destes concertos, estavam lá dois grandes amigos meus, o André Kolim e o André Jacob, que me viram a tocar e indicaram-me a uma banda que precisava de um baixista, a Banda Royal naquela altura. Eu tocava cerca de quatro músicas no baixo e de repente tive de aprender quatro horas de concerto. Foi um esticão gigante, mas também acredito que foi isso que me deu estaleca. Depois, tive outras bandas de bares, como os KM8, uma banda de covers de rock e metal. Também toquei com o Romeu Bairos e com a Sara Cruz em alguns eventos na ilha, e as coisas foram-se desenvolvendo assim.
Quando sentiu que tinha de deixar o curso de gestão para se focar na música?
Acho que o clique deu quando tive de escolher entre uma coisa e outra. Na altura, tive a oportunidade de ir para Lisboa gravar o disco da Mariana Rocha, que tinha estado no Factor X, e a semana de gravações coincidiu mesmo com a semana de exames. Então, tive de escolher e, obviamente, que entre o exame de contabilidade e a música, escolhi a música. Nessa altura percebi que, por mais atraente que seja ter uma vida mais estável, não podia sacrificar aquilo que mais gosto. Desisti de gestão e depois pensei agora o que é que vou fazer? Se não vou para gestão, vou para quê? Foi nesta altura que decidi ir para Lisboa estudar música, no Hot Club.
Como foi a adaptação à vida e ao ambiente musical de Lisboa?
No início foi complicado, porque além de viver num sítio em que não conhecia quase ninguém, também não estava em boas condições financeiras. No meio de tudo isto, ainda tinha de arranjar forças para estudar, para ir ver concertos, fazer contactos, então, foi mesmo muito intenso. Tinha muita coisa para fazer numa altura em que não estava nada estável e, depois, quando ia aos bares e ouvia músicos incríveis a tocar, pensava: ‘ainda tenho de estudar muito, ainda falta muito para chegar lá.’
Quais são os momentos mais marcantes desta altura?
Do lado musical, os momentos mais marcantes foram claramente quando comecei a ir ao Tokyo [Bar do Cais do Sodré, em Lisboa]. Passava-me a ver o Pity, o actual baixista dos Black Mamba, que na altura tocava com os Impossibly Funk. Na altura, foi muito marcante para mim. Mas também houve o outro lado, o da dificuldade que passei no início. Houve um dia em que não tinha mesmo dinheiro para comprar comida e isso marcou-me bastante. Lembro-me até hoje.
Qual foi a sensação de tocar pela primeira vez num bar emblemático de Lisboa?
Para já, foi uma pressão gigante porque ia substituir o Pity nos Impossibly Funk e tinha obrigatoriamente de fazer um óptimo trabalho. Foi mesmo muita pressão, mas no fim do concerto foi uma sensação incrível: ‘uau! toquei com essa banda num bar icónico como o Tokyo’.
Que caminho teve de percorrer para se tornar músico profissional?
Em primeiro lugar, foi compreender a música e o meu instrumento, ser o melhor possível a tocar. Depois, também há parte das pessoas, temos de perceber como é que elas funcionam, aquilo que é fixe e o que não é. Há pessoas que não têm muita noção deste lado e deixam de ser convidadas por isso. Não há só a parte musical, também tens de ser boa pessoa e tens de perceber o mercado, pois acabas por ser uma espécie de empresário a recibos-verdes (risos).
Pode partilhar uma história particularmente marcante na sua carreira até ao momento?
Acho que foi um bocadinho depois de estar no Tokyo, na altura em que o Pity já não tocava nos Imposibly Funk, o baterista João Freitas, meu ‘irmão’, indicou-me à banda da Mimicat. Entrar para banda deu-me muita experiência e mostrou às pessoas, que já trabalhavam com os grandes, que eu era capaz. Então, depois da Mimicat recebi convites para tocar com a Mia Rose, com a Bárbara Bandeira, com a Barbara Tinoco. Depois gravei uma das músicas do disco da Sara Carreira e, aos poucos, a coisa foi-se desenrolando desta forma.
Há alguma colaboração e artista que o tenha marcado mais?
Houve duas situações que foram muito especiais, uma delas foi quando fui a África, com o Nelson Freitas. Tive concertos em Angola e em Moçambique, e foi muito gratificante ver uma realidade tão diferente através da minha arte. A outra, foi nos oito dias em que estive no Alentejo com a Marisa Liz e o Moullinex para gravar umas músicas do disco ‘Girassóis e Tempestade’. Foi incrível ver como é que artistas daquele calibre funcionam.
Qual foi o palco que o marcou mais até hoje?
Provavelmente foi o Coliseu de Lisboa com os D.A.M.A. Em Junho do ano passado, fizemos um especial. Foi incrível ver o Coliseu esgotado com toda a gente a cantar as músicas. É arrepiante porque sente-se as vozes a vibrar no corpo. É uma sensação para a qual não há explicação.
Ainda fica muito nervoso em concertos com a dimensão do Coliseu ou do Rock in Rio?
Eu fico nervoso se os meus pais estiverem a ver. Se eles não estiverem, é-me completamente indiferente porque já pisei tantos palcos que parece que me habituei à ansiedade de tocar para muita gente. Quer dizer, existe sempre, mas já a controlo bem.
Como é a experiência de estar na banda residente de um programa televisivo como o ‘5 para a Meia-Noite’?
O programa é muito giro porque a maior parte da malta que organiza aquilo é comediante. Então, estão sempre na galhofa e a dizer piadas. O ambiente é mesmo muito descontraído. Se há uns anos me dissessem que eu ia fazer parte disto, acho que me passava. Hoje em dia parece tudo muito natural e é um prazer ter a oportunidade de tocar e conhecer grandes artistas da música portuguesa que lá passam. Já toquei com os Anjos e com a Ágata e penso que isso são coisas que aconteceriam de outra forma.
The Redbeds é a sua primeira banda de originais…
Somos uma banda de rock que tenta juntar o rock clássico com o actual. Ou seja, tentamos criar uma espécie de ponte entre clássicos, como Led Zeplin ou Queen, fazemos uma mistura disso tudo, juntamos com a estética actual e com aquilo que vemos actualmente no palco.
Como é que tem sido a experiência de estar nos The Redbeds?
Tem sido incrível. O nosso primeiro concerto foi no Rock in Rio, algo completamente aleatório pois não estávamos nada à espera do convite. Depois, tocámos no Capitólio em Lisboa, a convite da youtuber Mariana Bossy, e fizemos um lançamento no Tokyo.
No ano passado, actuámos nos Açores, na Maré de Agosto, e foi incrível porque é um palco gigante e tocamos na hora de ponta do festival. Então, estava cheio de gente e foi a primeira vez que nós vimos imensa gente a curtir a nossa música ao mesmo tempo. Obviamente que por nos Açores deixou-me muito nostálgico.
Quais são as suas bandas de referência?
Sempre adorei Beatles, Red Hot Chilli Pappers, Rush,Van Hallen… É um pouco por aí.
Qual foi o melhor conselho que recebeu ao longo da sua carreira?
O melhor conselho que recebi não veio de uma pessoa, mas sim de um colectivo. Disseram-me para ter calma porque as coisas acontecem a seu tempo para quem trabalha por elas. Sempre depositei muita pressão em cima de mim e sofria por antecipação com a instabilidade que é a vida de um músico. E, nas alturas em que estava mais aflito, as pessoas à minha volta, os meus amigos, que são irmãos, disseram-me ‘respira, as coisas vão a seu tempo. Tu estudas muito e estás constantemente com o instrumento na mão, obviamente que vais evoluir assim e a seu tempo vais conseguir estabilidade’. Acho que segui o conselho.
Qual é o seu conselho para os jovens açorianos que querem seguir um percurso como o seu?
É o de seguirem o coração. É o que tenho feito e tem resultado. Independentemente da vossa arte, e mesmo que sejam de uma área que o governo açoriano não apoia muito, insistam mesmo assim, não tenham medo de seguir os sonhos. Sejam boas pessoas umas para as outras porque, mesmo que sejas o melhor guitarrista do mundo, se és má pessoa, ninguém vai querer tocar contigo.
Hoje em dia é mais fácil ser músico nos Açores?
Por aquilo que vejo, existem os dois lados da moeda. Por um lado, é mais fácil aprender um instrumento porque tens muito acesso através da internet. No meu tempo já havia isso, mas não estava tão desenvolvido. Nesse aspecto é um bocadinho mais fácil, mas, por outro, as bandas não têm onde tocar. Há cada vez menos bares de música ao vivo e as pessoas estão a perder o hábito de ir ver concertos e, quando vão, é para os sítios grandes. Acho que ainda é difícil ser-se músico nos Açores.
O que é podemos esperar do concerto dos D.A.M.A no Teatro Micaelense?
Muita nostalgia da minha parte. Se calhar algumas lágrimas (risos). Mas acima de tudo, muita energia, boa música, óptimos músicos. Os D.A.M.A são uns bacanos. Vai ser uma boa noite!
Daniela Canha