Inaugurou ontem a exposição “Mau Feitio”, da artista plástica Nina Medeiros, que ficará em exibição até 17 de Maio, no Convento de Santo António, na Lagoa. Nesta mostra, a artista micaelense apresenta 11 peças de pintura inspiradas no tema da natureza. Da escultora Sofia de Medeiros, artista convidada, constam quatro peças volumétricas executadas em ferro e têxteis. Nesta entrevista, as duas artistas falam sobre o tema e a produção desta exposição e refletem sobre o panorama artístico dos Açores, onde consideram que os apoios são unilaterais e não abrangem os artistas com carreira firmada. Nas palavras de Nina Medeiros, “a arte não começa com o jovem daqui para a frente. Há uma História da arte contemporânea nos Açores e parece que esta nova geração a quer esquecer. Posso estar errada com o meu ‘mau feitio’, mas é essa a minha percepção.”
Correio dos Açores – Qual o tema da exposição?
Nina Medeiros – O tema é a natureza, a essência do ser tanto animal como vegetal. Ultimamente, tenho-me centrado muito na paisagem natural, mas de uma perspectiva mais lírica e poética, mais intuitiva e sensorial. O observador vê, de imediato, uma cor e um movimento que remete à natureza e, de certa forma, desafiei a Sofia a ir ao encontro dessa representação.
As peças têm referência a naturezas diferentes na minha passagem no mundo ou neste tempo. Gosto imenso de viajar e, neste sentido, “Mau Feitio” também remete para outras paisagens e visões da natureza. Algumas peças estão intituladas com nomes destes lugares, como o Cairo e Viana, no Brasil.
Não é um conceito muito complicado, é o nosso tempo, o meu e o da Sofia, num espaço e, no meu caso, num lugar específico. Os nossos trabalhos são diferentes, mas complementam-se plasticamente. Há um confronto entre escultura e pintura, mas, ao mesmo tempo, há um entendimento plástico.
Sofia de Medeiros – Ao contrário das peças da Nina, que convocam um tempo e um lugar específico, as minhas convocam à intemporalidade. Neste caso, optei praticamente só pelo ferro, mas ferro oxidado que, por si só, tem que ver com a questão do efémero, porque um dia ele há-de voltar à natureza. Gosto de assumir o ferro como ele é, como matéria. E numa das peças há um apontamento têxtil que equilibra muito bem com o material da Nina.
Porquê a escolha do nome “Mau Feitio”?
Nina – Estávamos a tomar café e num dos pacotes de açúcar estava a frase “Mau Feitio”, o que de certa forma se enquadra na nossa inquietação: o artista tem sempre uma inquietação para produzir e criar, sempre associado a um certo mau feito. Há também a relação com o crítico pois há sempre um ‘não nos agrada’ e o nosso mau feitio é contrapor!
Quais são as técnicas predominantes nesta exposição?
Nina – Voltei à pintura com acrílico e óleo sobre tela, aguarela e óleo sobre papel tela. Por vezes, divago para o vídeo e para a fotografia, mas aqui decidi-me pelo desenho. O meu trabalho centra-se muito na composição, no seu sentido mais tradicional, que é desafiar a bidimensionalidade. Aqui, quis voltar à essência da pintura, mas aquilo que é apresentado é completamente moderno. Ou seja, recorre ao passado e há uma renovação através da minha composição e linguagem.
Sofia – Quis também voltar ao ferro cru e assumidamente oxidado com uma técnica que ainda não tinha explorado: subverter o material que são os entrançados no ferro, ou seja, fazer do ferro uma parte têxtil.
As colaborações entre artistas tem sido uma constante nas vossas apresentações…
Nina – Estas colaborações surgiram da necessidade de voltar a apresentar. Depois da pandemia, criamos ‘Relink’ e, como o próprio nome indica, significa reconectar. Fizemos duas exposições, uma no Teatro Micaelense e outra no Museu de Angra do Heroísmo, que contaram com duas convidadas. Na primeira exposição, tivemos o repertório fotográfico e em vídeo da responsabilidade de Milagres Paz e, na segunda, um texto da Leonor Sampaio da Silva que falava do feminino e convidava o expectador a reagir às nossas peças.
Actualmente, temos colaborado em workshops com crianças e idosos. Somos professoras e há uma certa cumplicidade na nossa forma de ensinar.
Qual é a percepção dos artistas açorianos no exterior?
Nina – No caso do continente, os artistas estão sempre dispostos a vir cá. E da nossa parte, há sempre muita aceitação daquilo que é de fora. Mas, quando somos nós a tentar mediar uma exposição de um açoriano lá fora, há sempre o preconceito de que a arte da Região não está tão desenvolvida. E isso não é verdade, tanto que os açorianos estudam nas mesmas universidades que os outros artistas. Dito isto, é mais fácil apresentar nos Estados Unidos, ou na diáspora, de modo geral, do que entrar no meio lisboeta, em específico.
Fui convidada para fazer residência no Brasil, mas não foi através da indicação de uma entidade local. O convite partiu de fora porque, com as redes sociais, os artistas acabam por ter mais visibilidade… Eu invisto na minha carreira e acredito que a Sofia também investe na sua, mas fazemo-lo a nível individual. Somos os nossos próprios mediadores e curadores. Neste sentido, acredito que o artista não precisa sempre de um galerista e pode ser independente.
Sofia – Precisamos de mais galerias, mas é muito difícil ter um espaço comercial pois a arte é muito difícil de vender, em especial num meio ultraperiférico.
Como tem corrido a venda das vossas obras?
Nina – Durante alguns anos foi muito difícil, mas ultimamente tem corrido muito bem. Os compradores são maioritariamente coleccionadores do continente e estrangeiros. Antigamente tínhamos muitos coleccionadores açorianos, mas hoje os locais investem menos.
Com as residências e o foco na performance, as pessoas habituaram-se a esse novo conceito de arte em que tudo se resume àquele momento. Por um lado, é muito útil e importante e esse tipo de artista também precisa de apoios, mas, por outro lado, a arte passou a ser muito efémera.
Que visão têm acerca do meio artístico em São Miguel, nomeadamente das políticas de apoio à cultura?
Nina – Estou um pouco insatisfeita com os apoios à minha geração. Não vejo a arte como algo exclusivo da juventude, meia-idade ou terceira idade. É possível criar uma obra significativa em qualquer uma destas fases. Não estou à espera de convites pois o artista também tem de gerir a sua carreira, mas há falta de apoios na divulgação e no que toca a criar os meios para que as coisas aconteçam.
Sofia – O início de carreira é sempre muito importante, mas o Governo nunca pode descurar tudo o resto. Não é só no início que o artista precisa de apoios.
“A história da arte contemporânea
da Região está a ser esquecida… “
Nina – Numa altura em que, praticamente, só existia o trabalho de Tomaz Borba Vieira, nos anos 80/90 surgiu uma geração de artistas muito significativa pois foi quem dinamizou e divulgou a arte contemporânea na Região. Faria sentido apresentar uma colectiva, ou qualquer coisa que evoque estes artistas que começaram a nova era, pois eles são completamente esquecidos, quer pelo Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, quer pelas outras entidades do meio.
Sofia – Estamos a falar de serviços públicos. Entidades privadas podem escolher este tipo de abordagem, mas sendo o único centro de arte contemporânea da Região, tem a obrigação de abranger todo o cenário artístico. Quem está à frente destas instituições tem de ter essa preocupação e visão, porque há uma História.
Nina – Estão a tentar advogar que o paradigma começa aqui, que há um despertar para a arte contemporânea, e não é bem assim! Há uma história, e artistas como Tomás Borba Vieira e José Nuno da Câmara Pereira são grandes referências da arte açoriana que estão a ser completamente esquecidos. A arte não começa com o jovem daqui para a frente, mas parece que esta geração quer esquecer a História da arte contemporânea nos Açores. Posso estar errada com o meu “mau feitio”, mas é essa a minha perceção.
O artista também deve refletir e expor aquilo que acontece. Mas confesso que esta não é uma preocupação que me leve a deixar de produzir. Insisto em apresentar o que faço e não estou limitada ou à espera de convites.
Que projectos têm para os próximos tempos?
Sofia – Temos um projecto ‘Sem Espartilho’, uma parceria com o Museu Nacional do Traje, em Lisboa. O foco estará na escultura, mas também haverá uma conjugação com vídeo e um ciclo de conversas. Não podemos adiantar muito, mas levantando um pouco o véu, há uma sinergia no feminino.
Daniela Canha