Querido amigo Pepe Dámaso,
Há uma palavra portuguesa cuja tradução nem sempre corresponde ao sentimento que se sente: a SAUDADE. Aquela saudade que na partida é tristeza e na chegada é alegria. A saudade que, naturalmente acompanhou os grandes poetas, Pessoa, Camões, Natália, Florbela Espanca, entre outros. A saudade que a deusa Amália Rodrigues levou, com a sua voz inconfundível, única, pelo mundo. Foi a alegria da saudade da chegada que senti quando, quinta-feira última, te abracei na tua casa, na cidade de Las Palmas, onde sempre vou para matar as saudades dos meus amigos. Uma alegria que extravasou as nossas almas e que não coube nas palavras, mas que se refletiu nos nossos olhos, porque os olhos não escondem nunca a alma.
Cheguei à Madeira e envolto numa paisagem cuja beleza embebeda-nos e faz-nos poetas do silêncio, decidi escrever esta carta de amigo que te ama e muito te admira:
«Te busque por los sueños
Por los sueños, tú me estabas esperando» (Pino Ojeda)
Num tempo em que já não se escrevem as cartas que traziam noticias de outras terras e de gentes que amávamos e as suas ausências alimentavam saudades, eu continuo a escrever. Eram cartas aguardadas com ansiedade e davam-nos tanta alegria.
As cartas que amor, com as suas ingenuidades, tranquilizavam-nos. Sim, Caro Pepe, compreendo as novas estradas da comunicação, mas recuso-as.
Os e-mails não são o mesmo que as cartas que guardavam mistérios e segredos e nelas tocávamos com carinho. Há anos quando o Alberto Trujillo me levou a ti, disse-me: Vás conhecer o mais universal de todos os canarinos. Um amigo fantástico – Pepe Dámasco.
De repente estava em frente a um dos grandes pintores de Espanha. A tua voz correndo apressadamente nas palavras; a tua dinâmica vulcânica, logo me enfeitiçaram. Nesse momento, estabelecemos um pacto de amizade assente numa admiração mútua. Recordo as palavras que então, com tanta musicalidade, pronunciaste, as mesmas que na passada quinta-feira, com tanta ênfase repetiste:
“Hombre somos isleños.
Claro,somos isleños”
Ser ilhéus, para nós dois, é muito mais do que os limites geográficos que possuímos; é sermos capazes, como todos os outros povos, fazer da imaginação a viagem da criatividade, que tu, tão genialmente, elevas nas cores e nas formas; é voar, todos os dias, num pensamento livre; é tornarmos realidades os nossos sonhos; é termos fé que o céu das nossas ilhas cobrir-nos-ão todos os dias e as sombras dos nossos passos conduzir-nos-ão, sempre, aos destinos desejados. E o mar é o caminho da nossa universalidade…
Este meu reencontro contigo, fez-me viajar no tempo às diferentes fases da tua vida:
Tu tens a arte de traduzir o mundo do espírito, este mundo invisível em formas inteligentes em que tu és mestre. Porque os “artistas são mestres”. De certo que não há maneira dos professores da lógica ou da matemática tornarem compreensíveis os tesouros do mundo à inteligência. Os artistas acessíveis a este mundo espiritual, mas conservando-lhe o seu carácter inegável, o seu lado de mistério e, torna a insistir; é-lhes preciso atingir esse mundo!!!
“Hombre somos isleños.
Claro, somos isleños”
Por isso, sonhamos sempre e a linha do horizonte é desafio constante à nossa imaginação; é tatuarmos nos olhos as velas dos barcos sopradas pelos ventos que nos fazem desenhar palavras de amor e solidariedade. Este meu recordar leva-me ao teu longo percurso de vida de artista; ao teu peregrinar por um mundo mais vasto, as tuas exposições que marcaram tantas cidades com essa tua linguagem de cores de formas deslumbrantes vistas por gentes desconhecidas, conquistando-as, não pelas palavras, mas por essa tua arte, que sendo criatividade, tem inteligência e poesia, por isso toca nos corações daqueles que têm o privilégio de visitar as tuas exposições.
Jean Guitton disse que “a arte é uma iniciação na beleza, por via da harmonia”. Cada teu espectador, perante os teus quadros, de grandes dimensões ou os teus maravilhosos murais, descobre beleza e harmonia e viaja neles até encontrar e compreender a loucura criativa de um artista fenomenal.
“Hombre somos isleños.
Claro, somos isleños”
Caro Pepe,
A beleza dos teus quadros é um dom da tua própria vida. Curiosamente, como referiu Fiódor Dostoiévski, “a beleza salva o mundo”.
Foi enamorado pela beleza que esse “monstro” do cinema italiano, Luchino Visconti, comprou na Bienal de Veneza dois dos teus quadros, enriquecendo com eles a sua vasta coleção.
Vou-te falar de amor, a importância que esse tem nas nossas vidas. Um psiquiatra americano, Karl Menninger, a propósito do amor:“O amor cura quem dá e quem recebe”.
A amizade é amor sem asas, tu que és um exemplo, no percurso da tua vida fizeste grandes amizades. Aos 21 anos encontras em Madrid, um nome incontornável do panorama artístico espanhol; César Manrique, que salvou Lanzarote da invasão selvática daqueles que, na base do desenvolvimento, destroem e desrespeitam o ambiente.Uma amizade que agigantava as vossas almas. Duas personalidades que um dia deixaram um continente mais vasto e decidiram regressar às suas ilhas.
“Somos nós que devemos impor as nossas ilhas ao mundo através da arte”. Assim aconteceu: César Manrique a Lanzarote e Pepe Dámaso a Gran Canaria (Las Palmas). A amizade entre os dois durou quarenta anos. Só termina quando César Manrique morre num desastre de viação. Mas como afirmou Platão: “os mortos não morrem porque vivem na memória dos vivos”. Sempre que encontrei o César Manrique logo me falava, com grande admiração, do Pepe Dámaso, do seu talento extraordinário, da sua cultura; “um verdadeiro vulcão humano, inteligente, que não parava nunca”.
“Hombre somos isleños.
Claro, somos isleños”
Pepe tens noventa anos! Como o tempo passou, Meu Deus! Sonhas e tens projetos como se tivesses vinte anos, o que é extraordinário e deve constituir um exemplo. Nascentes em Agaeta, terra de gente nobre e de pescadores, corre-te nas veias o sangue daqueles que com coragem enfrentam temporais e dos que fizeram das rochas, jardins e ruas.
Enfrentaste graves problemas de saúde, aí ganhaste fé, aproximaste-te de Deus. Quando te disse que tinha encontrado Santo Padre Pio em San Giovanni Rotondo, e com ele falei, os teus olhos brilharam e mostraste-me um rosário de contas que trazes sempre na algibeira, com a imagem do dito Santo, isso teve um significado muito especial para mim.
Caro amigo, tenho um anomenos do que tu, mas como tu, também sonho e faço projetos, como se tivesse vinte anos. Como tu, acredito ferozmente na amizade, porque esta prolonga-me a vida. Sem amigos não poderia viver. E continuo a amar e a apaixonar-me. Balzac dizia: “até mesmo amar sem esperança é felicidade”.
Tu Pepe e o César Manrique são maiores que as vossas ilhas, porque os vossos pensamentos fizeram-nas universos sem limites…. É muito simples: só se vê bem com o coração. Assim, o que é invisível aos teus olhos, completas com o coração.
Nos anos quarenta, descobres a tua vocação artística. Na pensão que os teus pais dirigiam chegou o pintor García Panadero, acompanhando-o aos locais com melhores vistas, tu transportavas as caixas das tintas e pincéis, aí começa o teu interesse pela pintura.
Há um aspeto que me encanta, é a tua relação com a literatura; a tua paixão por Pessoa; a ligação da tua obra gráfica a Antonio e OtavioZaya, Domingo Rivero, Lazaro Santana, André Sanches, Robayna, Lydia Cabrera e RainerMaria Rilke.
E as tuas excelentes cenografias para Arthur Miller (que tive o prazer de encontrar no Canadá), Fernando Arrabal e Alberto Omar, etc. E a forma como trabalhaste o texto de Beckett e a Balada do Menino Arquero, de Tomas Morales. Trabalhos que demonstram não só da tua grande capacidade multidisciplinar, mas também da tua cultura versátil.
A tua experiência no audiovisual, coroada de muito êxito pela produção e rodagem de La Umbria, obra do escritor canário Alonso Quesada.
Caro Pepe Dámaso, esta carta já vai longa, gostaria de recordar as centenas de exposições feitas em dezenas de cidades, de diversos países; o sucesso de cada uma delas e quanto foram importantes, como descoberta da beleza, como revelação da tua forma de captar o mundo na sua diversidade, nos seus múltiplos problemas; da tua vastíssima obra pictórica, estou apaixonado pela série dos Heróis do Atlântico; pela série dos Balos; o Elevador da Morte; Heterónimos (retratos de Fernando Pessoa) e Crucificação – Auto-retrato.
A tua longa biografia tem a forma e encanto de uma obra de um artista, cujo nome sai fora das Canárias e torna-se um dos artistas mais reputados da Espanha, da Europa. Um ser humano cuja personalidade apaixonante, com um discurso inteligente que deixa transparecer a sua grande sensibilidade e riqueza de uma cultura versátil. A tua voz tem musicalidade e os teus olhos estão coloridos de cores arquivadas na memoria do tempo, cores que atraem e que contam tantas histórias.
Vou terminar, agradecendo a tua hospitalidade tão generosa e a tua amizade querida. Aproveito para te destacar o que disse Garcia Marques quando soube que tinha um cancro:
Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida não deixaria passar um só instante sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor.
Pepe te quiero mucho e com amor termino e abraço-te.
Teu, João Carlos
João Carlos Abreu