“Alguns destes doentes passam décadas a mudar de médico, passando em média por seis a sete especialistas num processo que, por vezes, chega a demorar quase 30 anos até ao diagnóstico correcto. (…) Além das dificuldades diagnósticas que estas doenças acarretam e, consequentemente, o acesso a tratamentos para aqueles que as possuem, estamos a falar, na maioria dos casos, de patologias incapacitantes, condicionando diferentes níveis de dependência/perda de autonomia, em que a qualidade de vida do doente e da sua família (cuidadores) é muitas vezes comprometida.” Quem o diz é a médica Patrícia Aranha, Internista no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e membro do Secretariado do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
Correio dos Açores – Qual é a importância do Dia Mundial das Doenças Raras?
Patrícia Aranha (Internista no Hospital do Divino Espírito Santo) – O Dia Mundial das Doenças Raras foi criado pela EURORDIS – European Organisation for Rare Diseases e por mais de 65 Associações Nacionais de doentes, com o intuito de sensibilizar a população em geral para que doentes com doenças raras tenham uma equidade nas oportunidades sociais, nos cuidados de saúde e no acesso ao diagnóstico e às terapias disponíveis para estas doenças. O tema deste ano é “Unite for change! Unite for equity!” e mantém o foco em aumentar a consciencialização para estas doenças que atingem mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo.
Como define uma “doença rara”? Pode dar alguns exemplos que as pessoas devem conhecer?
O conceito de doença rara tem inerente à sua definição o conceito de prevalência. O que define uma doença rara é o número de indivíduos no mundo portadores dessa doença. Em Portugal, como na União Europeia, é considerada doença rara toda aquela que tem uma prevalência inferior a 50/100.000, ou seja, um individuo em cada 2.000 pessoas. Há doenças raras mais comuns do que outras, dado a sua prevalência ser superior.
As doenças de Cushing, o lúpus eritematoso sistémico e as hemofilias são doenças conhecidas da população em geral, no entanto pela sua incidência são também doenças raras. Existem outras doenças ainda mais raras, que também são conhecidas, não pela sua prevalência mas porque, de algum modo, o cinema as tornou mais visíveis. São exemplos a Neurofibromatose (O Homem Elefante), a Osteogenesis Imperfecta (O Protegido, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain), a Retinite Pigmentosa (Dancer in the Dark) ou a Fibrose Quística (A Distância entre Nós.)
Em que circunstâncias pode haver cura para as doenças raras?
Na realidade, apenas 5% das doenças raras têm algum tipo de tratamento conhecido e, quando falamos em tratamento, não nos referimos em exclusivo a cura. Cada vez mais, falamos de fármacos modificadores de doença que são medicamentos que, ainda que não sejam curativos, modificam a evolução da doença, prolongando a expectativa média de vida destas pessoas – são habitualmente fármacos que se incluem na categoria de medicamentos órfãos.
Quais são as doenças raras mais comuns na Região?
As doenças raras mais comuns em todo o mundo são também as doenças raras mais comuns nos Açores e são igualmente as mais conhecidas da população, por terem uma incidência superior. Estamos a falar das hemofilias, da esclerose múltiplas, das amiloidoses, da fibrose quística, entre outras. Existe depois alguma variabilidade territorial, dado que 80% destas doenças têm uma base genética, que faz com que por exemplo uma doença possa ser muito rara num determinado ponto (baixa incidência) mas mais “comum” noutro país ou região, como são exemplos a polineuropatia amiloidótica familiar (vulgarmente conhecida como doença dos pezinhos) no Norte de Portugal, ou a doença de Machado-Joseph nos Açores.
Quais são os maiores desafios que os pacientes com doenças raras enfrentam no seu dia-a-dia? E pela particularidade de viverem nos Açores?
O primeiro desafio que estes doentes enfrentam é não terem diagnóstico ou serem mal diagnosticados. Estas doenças partilham uma ampla diversidade de sinais e sintomas com outras doenças menos raras, que podem ser perfeitamente evidentes à nascença ou surgir apenas em fases mais tardias da vida e que variam não só de doença para doença, mas também de doente para doente dentro da mesma doença. Alguns destes doentes passam décadas a mudar de médico, passando em média por seis a sete especialistas num processo que, por vezes, chega a demorar quase 30 anos até ao diagnóstico correcto. Outras doenças têm um curso mais rápido, apresentando-se logo à nascença e com uma percentagem significativa dos doentes a morrer antes dos cinco anos de idade. Seja em que circunstância for, além das dificuldades diagnósticas que estas doenças acarretam e, consequentemente, o acesso a tratamentos para aqueles que as possuem, estamos a falar, na maioria dos casos, de patologias incapacitantes, condicionando diferentes níveis de dependência/perda de autonomia, em que a qualidade de vida do doente e da sua família (cuidadores) é muitas vezes comprometida.
Qual o contributo da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, através do Núcleo de Estudos de Doenças Raras (NEDR), para melhorar a vida dos pacientes com doenças raras?
A contribuição do Núcleo de Estudos de Doenças Raras faz-se, sobretudo, através da sensibilização e formação dos profissionais de saúde para estas doenças. A raridade das mesmas faz com que um médico, por muito especialista que seja numa área, tenha um contacto muito mais reduzido ao longo da sua carreira com estas doenças. Estamos a falar de mais de 10.000 doenças raras conhecidas. O Núcleo de Estudos de Doenças Raras aposta na sensibilização dos médicos para estas patologias, instigando-os para que, quando na presença de um doente que se apresenta mais complexo, ou quando “algo não bate certo” ou “sai fora da caixa”, coloque também em cima da mesa como hipótese diagnóstica alguma destas doenças. Para isso, realiza anualmente reuniões e cursos presenciais e online dirigidos aos médicos com o intuito de aumentar o “awereness” [consciência] para estas doenças, porque como é mote “Em Medicina só diagnosticamos aquilo que conhecemos.” Além disso, serve também de plataforma para intercâmbio de experiências, informações e contactos entre colegas, para se entreajudarem e apoiarem nestes processos de diagnósticos complexos, e na orientação de doentes para Centros de Referência.
Nos últimos anos, quais foram os avanços mais importantes no diagnóstico e tratamento de doenças raras?
A descoberta do RNA de interferência (RNAi) por Craig Mello e Andrew Fire. Esta descoberta, pela qual lhes foi concedido o Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2006, abriu uma porta de inovação na compreensão de como os genes são regulados pelas células. Têm sido desenvolvidos novos tratamentos com base no RNAi, com o objectivo de silenciar as proteínas indesejadas ou danificadas, sendo um processo celular natural com o potencial de “silenciar” os genes que estão na origem da doença. Num grupo de patologias em que mais de 80% tem uma origem genética, os próximos avanços nesta área aguardam-se com grande expectativa.
Que recursos existem para ajudar os pacientes afectados pelas doenças raras e os seus familiares?
Eu diria que as Associações de Doentes desempenham um papel fundamental em diversas áreas, nomeadamente nos apoios ao cuidador, no empoderamento do doente no processo da decisão clínico-terapêutica, na literacia sanitária da população, na colaboração do doente com a investigação clínica e farmacológica. O seu papel é fulcral para que se sintam apoiados em todo o processo. Em Portugal, aconselho a consulta do site ou o contacto com a RD-Portugal, União das Associações das Doenças Raras de Portugal, na forma de federação, que representa as mais de 30 associações nacionais, e que promove a defesa dos direitos e interesses das pessoas afectadas por Doença Rara e/ou com deficiência provocada por esta, e as suas famílias.
Carlota Pimentel