“Na sequência das alterações climáticas, a biodiversidade dos Açores será afectada pela proliferação de espécies invasoras e pragas, pela erosão de praias, perda de húmus do solo e perda dos mais variados habitats. As inundações já causaram danos materiais no Pico, o que motivou o reforço de taludes costeiros. Os ventos alísios afectarão a floresta Laurissilva, relíquia que faz parte do património mundial. No que diz respeito às aves, ocorrerá destruição temporária de abrigos por redução de recursos alimentares e consequentemente diminuição da sobrevivência de espécies. Poderá haver salinização das fontes de água subterrânea e alterações nos correntes oceânicas. A biodiversidade marinha será afectada, designadamente as espécies animais alterarão os seus padrões migratórios, com graves consequências para a pesca”. Quem o diz é Fátima Melo, docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores, a propósito do Dia Internacional da Vida Selvagem que se assinala hoje.
Que importância atribui ao Dia Internacional da Vida Selvagem?
A ONU proclamou o dia 3 de Março como o Dia Mundial da Vida Selvagem, há 11 anos, dado que mais de um milhão de espécies estão ameaçadas de extinção no planeta. Este dia coincide com a adopção da Convenção para o Comércio Internacional de Espécies Selvagens Ameaçadas de Fauna e Flora (CITES). O mesmo centra-se na necessidade de se encontrarem e implementarem medidas que possam ajudar na conservação das espécies mais ameaçadas. Desde que o homem interveio pela primeira vez no meio natural do planeta, até aos nossos dias, tem vindo a alterá-lo profundamente e a causar níveis altos de ameaças globais. O exemplo mais recente e mais conhecido é o COVID-19, que resultou da perturbação continuada do meio natural e do uso abusivo de produtos de animais selvagens. O Dia Internacional da Vida Selvagem tem, assim, grande importância para começarmos a reflectir sobre as causas antrópicas das ameaças e acções invasivas ao meio natural, bem como acerca da necessidade de parar e de tomar novos rumos. A nossa genialidade deverá ser empregue em conciliar o bem-estar do Homem com o do meio natural.
O que representa este dia para a conservação da biodiversidade?
O objectivo da proclamação do dia 3 de Março como o Dia Mundial da Vida Selvagem foi alertar e contribuir para conservação da biodiversidade. E o que é a biodiversidade? É a variedade de espécies de todas as formas de vida, bem como as interrelações complexas entre a vida e o meio do planeta como um todo. A elevada variabilidade ocorre no interior de cada espécie (genética, morfológica e fisiológica, bioquímica, etc.), entre as espécies, bem como quando os seres vivos interagem entre si e com o meio abiótico de uma determinada região. Como consequência formam-se comunidades auto-suficientes peculiares de cada região, as quais se designam por ecossistemas (por exemplo: os ecossistemas terrrestres dos Açores ou os marinhos também peculiares deste arquipélago). Um ecossistema pode incluir vários habitats. Um habitat corresponde a qualquer porção da Terra ocupada por organismos de uma ou mais espécies, englobando os recursos e as condições utilizadas para a sua sobrevivência, o seu crescimento e a sua reprodução. Não faz sentido analisar o estado de conservação de espécies silvestres sem analisar o estado dos habitats respetivos. Assim, este dia tem grande relevância pois pode funcionar como alerta para o cidadão comum passar a ter um papel mais interventivo e positivo quando usa e usufrui os recursos naturais disponíveis nos diferentes habitats, quer sejam os seres vivos, as lagoas, o mar, etc.. Todos os recursos naturais pertencem-nos, têm elevados valores (económico, por exemplo), sendo geralmente gratuitos. No entanto, e incrivelmente, estes são muitas vezes ignorados e negligenciados. O Dia Mundial da Vida Selvagem lembra que devemos cuidar dos recursos naturais como cuidamos das nossas casas e dos nossos entes queridos.
Quais são os principais desafios que enfrenta a vida selvagem nos Açores?
A perda de biodiversidade nos Açores tem vindo a aumentar desde que o homem colonizou estas ilhas devido, essencialmente, à fragmentação de habitats provocados pela desflorestação, à introdução de espécies exóticas, à plantação de monoculturas, à urbanização e à agricultura. Estes fenómenos levaram à extinção de inúmeras espécies endémicas (exclusivas e naturais do Arquipélago) vegetais e animais. Estas extinções têm sido documentadas por vários investigadores da Universidade dos Açores em conjunto com outros investigadores de Universidades de todo o mundo. As mesmas causaram impactos irreversíveis em todos os níveis tróficos e ecológicos. A consequente descaracterização dos habitats respectivos tornou o meio natural dos Açores mais pobre e menos único.
É necessário assegurarmos que o comércio de plantas e animais não põe em risco a sobrevivência de muitas espécies selvagens. A fiscalização regular e rigorosa de descargas e bagagens de passageiros, pelas entidades competentes dos aeroportos e portos dos Açores, é primordial para o conseguir.
A constituição de parques e reservas para a vida selvagem felizmente tem ocorrido nas últimas décadas nos Açores. No entanto, a fiscalização regular dos mesmos espaços é crucial, com vista ao cumprimento da legislação inerente, bem como à aquisição de boas práticas por parte dos cidadãos usuários. A reabilitação de paisagens naturais degradadas tem fornecido habitats mais adequados para a vida selvagem, como é o caso do aumento das áreas de Laurissilva no Nordeste da ilha de São Miguel. O restauro deste ecossistema natural. tem permitido o aumento do número de indivíduos pertencentes à única espécie de ave endémica terrestre actual dos Açores – o Priolo. A extinção de várias espécies de aves endémicas dos Açores, devido à acção humana, está cientificamente comprovada. O envolvimento da população humana local em actividades sustentáveis tem ajudado a aumentar o apoio à conservação, mas também deverá garantir o uso a longo prazo dos recursos naturais. A sensibilização do cidadão comum e dos agentes económicos, no sentido de estes contribuírem para as acções de conservação da biodiversidade dos Açores de modo sustentável deve, assim, ser contínua.
Que iniciativas e projectos de conservação têm sido desenvolvidos na Universidade dos Açores para proteger a vida selvagem na Região?
São inúmeros os projectos de conservação implementados pela Universidade dos Açores em conjunto com as mais variadas instituições deste arquipélago (Departamentos Governamentais, ONGS, Câmaras Municipais, Expolab e muitas entidades privadas, etc.), e com centros investigação nacionais e estrangeiros. Muitos daqueles projectos e iniciativas constam da publicação quinzenal da Universidade dos Açores – UAciência. Aqueles projectos e iniciativas incluem investigadores de áreas e subáreas tão diversas como: a Biologia, a Geografia, a Geologia, a Física, a Química, a Matemática, entre outras. A conservação da vida selvagem será potencialmente tanto mais eficiente quanto mais interdisciplinar e interinstitucional, uma vez que poderá responder de modo mais eficiente às diferentes ameaças e riscos que as espécies mais vulneráveis enfrentam.
Como é que a comunidade açoriana pode contribuir para a conservação da vida selvagem nas ilhas? Que papel têm os jovens na sensibilização para a conservação da vida selvagem e na promoção de práticas sustentáveis?
Cuidar do meio natural e demonstrar às crianças como fazê-lo. Não recolher ou capturar plantas e animais na natureza, não os transportar para outras paragens, quer sejam ilhas vizinhas, quer sejam continentes. É necessário não trazer mais seres vivos exóticos para os Açores e evitar comprar animais em lojas (se escaparem podem ser prejudiciais). Também há que contribuir para proteger as plantas e os animais nativos de outras regiões e a saúde humana, de um modo global, ao viajar: não comprar medicamentos tradicionais chineses, não comprar peles de animais selvagens (só de domésticos /cativeiro), não comprar marfim, coral, carapaças de tartaruga, etc..
Os cidadãos devem conhecer as espécies nativas dos Açores (incluindo as mais ameaçadas), participar voluntariamente em associações que protegem a natureza, em acções comunitárias de conservação e votarem em partidos que tem preocupações ecológicas. A comunidade deve plantar plantas nativas da região para atrair animais selvagens, não usar ou evitar produtos químicos e controlar as pragas com ajuda de predadores naturais (joaninhas, por exemplo).
A escolha de produtos de agricultura familiar ou orgânicos é muito importante para preservar todo o meio natural e a saúde humana: comprar a produtores da região e evitar alimentos de zonas longínquas, dar preferência a alimentos orgânicos livres de produtos tóxicos, plantar ervas aromáticas (usar vasos em apartamentos), utilizar os restos de alimentos como adubo na horta ou nas plantas ornamentais. Os jovens são interlocutores muito importantes na sensibilização dos adultos para a conservação da vida selvagem e na promoção de práticas sustentáveis porque, actualmente, os programas escolares incluem muitos ensinamentos e iniciativas nestes âmbitos, como experiências laboratoriais, limpeza de praias, realização de trilhos na natureza, etc..
Quais são as espécies emblemáticas da vida selvagem nos Açores?
Segundo o Portal da Biodiversidade dos Açores (PBA), há mais de 10 mil espécies silvestres nos Açores, sendo 573 espécies e subespécies endémicas terrestres e marinhas. Estas pertencem a vários grupos taxonómicos: desde bactérias, passando pelos fungos, plantas e animais invertebrados e vertebrados. O cidadão comum pode escolher o grupo ou as espécies que mais lhe interessam e consultar aquele Portal para as conhecer melhor e participar em acções conservação. Estas acções são levadas a cabo por vários organismos, como por exemplo o Centro de Ciência Viva Expolab, sediado na ilha de São Miguel.
Como é que a investigação científica pode ajudar na preservação da vida selvagem e na gestão sustentável dos recursos naturais das ilhas?
A conservação da vida selvagem inclui o desenvolvimento de projectos investigação em áreas tão variadas como a Biologia, a Geologia, Geografia, a Hidrologia, etc.. Estes projectos podem incluir, por exemplo, a identificação de ameaças a várias espécies (que podem ser microrganismos ou mamíferos, como os morcegos ou baleias). A análise de variações de abundâncias relativamente a diferentes factores ambientais, como o uso do solo e dos recursos naturais é outro exemplo. Os resultados dos projectos de investigação permitem aos cientistas propor às entidades governamentais as estratégias e as medidas mais adequadas para preservação da vida selvagem e para a gestão sustentável dos recursos naturais. Cabe às entidades governamentais a implementação das mesmas estratégias e medidas, bem como, o acompanhamento e vigilância de áreas protegidas, de modo que seja cumprida a legislação criada para o efeito.
De que forma as alterações climáticas podem ter impacto na vida selvagem dos Açores? Que medidas podem ser tomadas pelos cidadãos para mitigar estes efeitos?
A libertação de carbono dos combustíveis fósseis, leva à acumulação de CO2 na atmosfera que, por seu turno, aumenta o efeito estufa e a temperatura do planeta. Estas alterações climáticas globais aumentam as tempestades, as chuvas torrenciais, as derrocadas, as cheias, os períodos de seca e causam ventos fortes. As mesmas alterações climáticas levam à acidificação dos oceanos, alterações dos períodos de floração e produção de sementes de plantas. As últimas causam alterações na distribuição geográfica de animais (abelhas, por exemplo), diminuição da biodiversidade e redução dos alimentos de muitas populações humanas (aumentando da pobreza e a fome).
De acordo com as previsões, nos Açores a temperatura aumentará entre um a dois graus ºC no período de 2070 a 2100, a frequência de precipitação será superior e o nível do mar será mais elevado. Na sequência das alterações climáticas, a biodiversidade dos Açores será afectada pela proliferação de espécies invasoras e pragas, pela erosão de praias, perda de húmus do solo e perda dos mais variados habitats. As inundações já causaram danos materiais no Pico, o que motivou o reforço de taludes costeiros. Os ventos alísios afectarão a floresta Laurissilva, relíquia que faz parte do património mundial. No que diz respeito às aves, ocorrerá destruição temporária de abrigos por redução de recursos alimentares e consequentemente diminuição da sobrevivência de espécies. Poderá haver salinização das fontes de água subterrânea e alterações nos correntes oceânicas. A biodiversidade marinha será afectada, designadamente as espécies animais alterarão os seus padrões migratórios, com graves consequências para a pesca.
A biodiversidade das ilhas são uma preocupação especial, principalmente as áreas marinhas próximas da costa que contêm ecossistemas únicos com espécies endémicas de algas, plantas e animais invertebrados/vertebrados, etc., sendo necessário desenvolver projectos de investigação para compreender melhor os limites biológicos das populações das espécies em causa. As espécies das ilhas evoluíram livres da competição de um grande número de outras espécies e são, portanto, mais susceptíveis a invasões de espécies exóticas. As populações da fauna e da flora insulares tendem a ser pequenas, e as espécies, muitas vezes, concentram-se em pequenas áreas específicas, onde estão sujeitas a diversas pressões naturais e antropogénicas que põem em perigo a sua sobrevivência. Além disso, estas podem ser são altamente especializadas. A biodiversidade é, assim, extremamente vulnerável em ilhas pequenas, oceânicas e remotas com os Açores.
As alterações climáticas também terão efeitos na agricultura (novas pragas), na pecuária (novas doenças), no turismo e noutras actividades económicas e sociais costeiras dos Açores. As povoações com maior dimensão a actividade económica e social concentram-se na costa: infra-estruturas relacionadas os meios de transporte, como aeroportos ou auto-estradas; abastecimento, tratamento e fornecimento de água; distribuição de energia; hotéis e restaurantes.
Pelo exposto, é pertinente que nós, como cidadãos conscientes das alterações climáticas globais e locais, adoptemos comportamentos que possam mitigar os efeitos citados antes que estes sejam mais evidentes nos Açores.
A energia do carbono está armazenada em tudo o que consumimos: nos alimentos, no vestuário, nos transportes, nas habitações, etc. De acordo com os cientistas é suficiente reduzir, a nível mundial, 5% do consumo das energias fósseis, por ano, para não ultrapassar os dois graus ºC – acordo de Paris. Se não fizermos nada até 2070, um terço da humanidade poderá viver em regiões quentes e inabitáveis como o Saara e haverá três mil milhões de pessoas deslocadas (um terço da humanidade). Assim, devemos economizar energia, consumindo o estritamente necessário. É urgente diminuir o consumo combustíveis fósseis: petróleo, carvão e gás. Devemos optar por viajar preferencialmente a pé ou usando bicicleta, transportes públicos e veículos eléctricos. É pertinente reduzir o consumo de água: lavar loiça preferencialmente na máquina e abrir a torneira quando for estritamente necessário ao tomar duche, lavar os dentes, etc.. Devemos ajustar a nossa alimentação: ingerir ingredientes regionais e da estação, usar ao máximo os alimentos para reduzir o lixo e o desperdício, evitar comer por impulso e planear as refeições. Há que diminuir o consumo de energia eléctrica nas nossas casas: evitar o uso de electrodomésticos nos horários pico; verificar se as borrachas do frigorífico vedam bem; ao lavar e secar roupa usar a quantidade máxima; substituir lâmpadas incandescentes pelas fluorescentes ou usar lâmpadas de LED ( gastam 75% menos e duram mais); evitar passar roupas a ferro; no caso de passar a ferro acumular uma quantidade razoável de peças, passar tudo uma única vez e desligar o ferro antes de passar a última peça. Não devemos comprar mais do que o necessário: roupas, sapatos, alimentos, etc.. Há que utilizar materiais escolares ou de escritório até o seu fim. Urge escolher produtos com menos embalagens, reutilizar reciclar e reduzir o lixo. Antes de reciclar, devemos reutilizar embalagens e outros materiais e preferir sacos reutilizáveis para fazer compras. Devemos pagar as contas online, usar canecas de vidro ou cerâmica, colocar máscaras descartáveis no lixo comum e lâmpadas, baterias, pilhas, óleo usado, pneus, medicamentos e equipamentos electrónicos em contentores de lixo adequados. Também é pertinente escolher marcas com consciência ambiental.
Carlota Pimentel