(Excertos de uma palestra proferida em Vila Franca do Campo em 1995 e publicada na revista Açoreana, 1995, 8 (1), aqui actualizada e adaptada)
A essência do espírito humano espelha-se na magia dos olhos, projecta-se na profundidade da visão e esconde no seu âmago a dinâmica da dialética e a insensatez do paradoxo. Tão infinito como os horizontes que alcança, é ao mesmo tempo tão delicado que a mínima poeira o incomoda, tão dependente que a imponderável névoa o limita, tão vulnerável que o negro da escuridão o assusta. E, no entanto, é tão rebelde que, quando os olhos falham a engenhosidade da invenção socorre os sentidos, e onde a visão sucumbe a interiorização da mente constrói o significado. Novidade misteriosa da Evolução, por si mesmo se colocou no topo de uma pirâmide de perfeição, proclamando o seu domínio incontestável sobre os animais da terra, os peixes do mar e as aves do céu. No seu narcisismo de rebento serôdio, arrogou-se igualmente o privilégio de centro da criação, fazendo girar à sua mercê o princípio das coisas, a disponibilização do presente e a justificação do futuro. Semi-alheio aos gemidos de uma Natureza por ele ferida, prossegue em sua marcha triunfal através da Vida, com os olhos postos num destino de gloriosa fluidez e os pés assentes no ôco da autodestruição.
O milagre da Vida apareceu quase no início da conturbada existência do nosso planeta. E se o acontecimento da vida se esconde sob o véu da acção de forças extremas, o caminho por ela trilhado até aos nossos dias não foi menos pacífico. Por cinco vezes a destruição generalizada e a morte reinaram sobre a terra, levando a vida às portas da extinção. Os fósseis contam-nos a história. Juntando a tais catástrofes globais, causadas pela queda de meteoritos ou por descomunais erupções vulcânicas, outras mais localizadas e o desaparecimento relativamente lento das espécies devido precisamente à evolução que as criou, hoje vivem na terra apenas 5% de todas as espécies que já existiram.
Os nossos dias têm vindo a ser alarmados com o aviso de outra catástrofe iminente. Desta vez não é causada por vulcões ou por meteoritos que alteram dramaticamente o clima, mas pelo próprio homem.Uma ameaça múltipla,sub-reptícia,causada pela aparente insignificância de uma árvore a cair, de uma gota de petróleo a se estender no mar, de uma baforada de CFC lançada a caminho do ozono. E porque a morte da árvore é necessária, a gota de petróleo imprescindível e o desodorizante conveniente, parece-nos inevitável a rota que a civilização nos traçou. E porque a árvore cai no Brasil, o petróleo se espalha no Golfo Pérsico e o desodorizante não passa de uma insignificância, o perigo dissipa-se na inconsciência da distância e a solução dilui-se nairresponsabilidade da multidão.A luta pela sobrevivência de uma Humanidade que cresce exponencialmente, a busca contínua de melhoria de nível de vida, ou simplesmente a rotina adormecedora do quotidiano, raptaram-nos da biosfera que nos envolve e sustenta e embotaram-nos os sentidos para o que se passa à nossa volta. Olhamos para a Natureza como “o outro lado”, donde apenas é necessário tirar mais e melhor. E, se alguém se atreve a fazer qualquer reparo, apontam-se-nos os olhos de fome de mundos de terceira ordem, ou os rostos de miséria das esquinas de ruas e praças. Nem que fossem estes os causadores da destruição ou os beneficiários dela!
A vida do homem, como toda a vida na terra, nutre-se da morte e cresce da destruição. A violência parece ser o estigma da Natureza. É necessário destruir para se sobreviver ou, em linguagem mais paliativa, importa “transformar” a Natureza para assegurar um sustento continuado. Foi assim, também entre nós, desde que os nossos antepassados povoadores cá chegaram. O sábio Açoriano Gaspar Frutuoso lamenta nas Saudades da Terra, apenas um século depois de cá chegados: “Vestida estava esta ilha [São Miguel] de diversas árvores de várias cores e cheiros, a cuja sombra se criavam as galinhas, e em cujos ramos pousavam muitas aves; e a cobiça dos homens foi tanta que o que Deus, mediante a natureza, lhe deu em tantos anos, em um dia de roça, ou em uma hora de fogo, tudo brevemente lhe despiram, esbulharam e desfizeram…” E nem o mar escapou: “O pescado de toda a sorte, chernes, peixe escolar, peixe galo, crongos, gatas, gorazes, pargos, garoupas, abróteas, sargos, salmonetes e outras sortes, lagostas, lagostins e cavacos, muito dele era tanto nesta terra, que do porto de Santa Eiria levavam seves (sic) cheias em carros carregados dele à vila da Ribeira Grande. E agora tudo é miséria, parece que até o mar, e não tão somente a terra, se fez estéril e nega o que soía a dar de si com grande abundância.”
Desde o século XX que se assiste a um ritmo de extinção alucinante; este efeito de “bola de neve”, que cresce à medida que avança e mais avança quanto mais cresce, assume proporções catastróficas. O exemplo mais gritante provém do declínio das florestas tropicais, verdadeiros tesouros de biodiversidade. Mais de dois terços das espécies que hoje existem, vivem nas florestas tropicais. Estas “selvas impenetráveis”, onde a ficção do século passado buscava “paraísos perdidos”, diminuíram em área para menos de metade do que eram em tempos pré-históricos, e continuam a desaparecer numa área equivalente à de um campo de futebol por segundo. E, com elas, todo um riquíssimo e complexo ecossistema, de tal modo que estimativas apontam para que em cada ano se extingam 27.000 espécies de seres vivos, ou seja, 74 em cada dia, 3 por cada hora. O que antes levava milhões de anos a acontecer, foi agora acelerado pela actividade humana para um ritmo entre 1.000 a 10.000 vezes superior, ombreando assim com qualquer das grandes crises de extinção da história da Vida.
Na perspectiva lúgubre da co-extinção, a consciência humana começou a reagir. Os estudiosos da Natureza viram o seu clamor atendido e os governantes mexeram-se em suas secretárias dando indício de se preocupar com o mundo não humano. A nível planetário movem-se influências, integram-se projectos, planeiam-se estratégias de acção. Os meios de comunicação falam de baleias e golfinhos, da ameaça do efeito de estufa e do buraco do ozono, da destruição pela chuva ácida e pela poluição radioactiva, do sufoco do “smog” citadino e da acumulação de lixos. No entanto, enganadoramente, a mediatez do perigo esbate a sua acuidade, a distância do acontecimento distrai-nos de agir e a magnitude do problema esvazia-nos de responsabilidade.
Os Açores não possuem florestas tropicais nem em suas montanhas caem chuvas ácidas; já não se caçam cachalotes e os golfinhos saltam livres no oceano azul; a terra é verde e o priolo lá vai resistindo; temos Natureza para dar e vender nos desfiladeiros da Tronqueira e nas alturas do Pico. No entanto, lagoas saturam de nutrientes e caminham para a morte, o manto unicolor da pastagem resseca o Arquipélago, a Natureza original descaracteriza-se e definha, afogada por um rôr de invasores. […]. O enganador verde tenro das pastagens generalizadas, algumas em lugares afrontosos para a sensatez de uma exploração rentável, lentamente suga a terra da água vivificante. Quem viaje de Santa Cruz para Ponta Delgada, na maravilhosa ilha das Flores, pode experimentar a verdade do que aqui se afirma. O verde lacrimoso do esfagno – o musgão – aprisiona a água das chuvas e fá-la descer a conta gotas para o solo; a água abunda e a Natureza é pródiga. Por outro lado, o emaranhado de raízes da pastagem favorece a escorrência imediata, perdendo-se para o oceano a maior parte da água das chuvas. E, lentamente, o ecossistema se modifica.
O mundo vivo dos Açores guarda ainda muitas surpresas científicas, que o interesse dos especialistas a pouco e pouco desvenda; o Arquipélago é bem um laboratório vivo, um paraíso para os cientistas. Mas a realidade mais premente impõe que ele seja, antes de mais, um lugar de vida feliz para pouco mais de 200 mil Açorianos. E essa felicidade não poderá acontecer à custa da destruição sistemática ou descaracterização daquilo que nos individualiza e que muitos invejam. Será a familiaridade com o mundo que nos rodeia e o conhecimento profundo das potencialidades que nos oferece que nos levarão a preservá-lo. É preciso continuar a ensiná-lo nas escolas e dizê-lo em público; importa convencer governantes e informar as populações. Como afirmou um conservacionista Senegalês: “No fim, conservaremos só o que amarmos, amaremos só o que compreendermos, compreenderemos só o que nos ensinarem”.
Pode parecer notícia chocante, mas esta é a verdade que não se deve escamotear com propaganda simpatética para com o planeta, como se dele fôssemos os salvadores: Não é o planeta que está doente, somos NÓS que corremos o risco de extinção! As vicissitudes por que a Vida tem passado atestam claramente a sua tenacidade e testemunham a força interna que a caracteriza. A Vida, de facto, veio para ficar. Suspirar de alívio perante esta certeza e minimizar o problema de destruição global que a humanidade enfrenta, mostra falta de visão e confrangedora superficialidade. A Vida ressurgiu das cinzas das cinco grandes crises que a ameaçaram desde que conseguimos ler a sua história nos fósseis, e os meros 5% de espécies que hoje sobrevivem estão tão gloriosos como sempre. Mas foram necessários muitos milhões de anos para que recuperasse de cada crise. No caso de extinção global, as baratas e os ratos terão muitíssimas mais hipóteses de sobrevivência do que a espécie humana. Pode muito bem acontecer que, se ignorarmos o grito dos seres minúsculos que desaparecem e o aviso que do mundo da ciência nos chega, os seres que sobreviverem e evoluírem para, de novo, conquistar uma terra vazia, daqui a muitos milhões de anos – tal como hoje fazemos com os imponentes dinossáurios –se maravilhem perante os fósseis de estranhos seres bípedes de enorme capacidade craniana. E neles jazerão, aprisionados e cristalizados, o infinito dos sonhos e a profundidade do pensamento de uma espécie que em sua imaginação conquistou as estrelas e em sua mente dominou o universo, mas que, na realidade, não conseguiu encontrar a fórmula para a sua própria sobrevivência.
António M. de Frias Martins
Biólogo