Correio dos Açores – Como foi o seu percurso de vida até aos dias de hoje?
Maria Suzete Carreiro (modista) – Eu, em pequenina, tive uma vida muito boa. Fui a primeira neta e fui criada com muitos mimos, especialmente da parte dos meus avós que moravam ao pé de mim. Fui uma menina especial.
Quando fui crescendo, depois, fui para a escola e quando não estava nas aulas a minha mãe gostava que eu estivesse em casa para ajudar nas lidas da casa. A minha mãe era costureira e o meu pai era pedreiro.
Eu ajudava na casa e fazia a comida. Naquele tempo era tudo com lenha, não havia fogão.
Lembro-me de um dia em que cheguei mais tarde da escola, porque tinha ficado a brincar com as minhas amigas, e a minha mãe castigou-me. Chorei tanto que os meus avós, que moravam perto de nós, vieram em meu socorro.
Comecei a dormir em casa dos meus avós e da minha madrinha que vivia com eles aos 18 anos, e só sai quando a minha madrinha se casou.
A minha mãe não me deixava ir para a costura, para não lhe tirar o lugar. Ela tinha sete empregadas na costura.
Tive 7 irmãos e infelizmente sou a única que estou viva. Depois, fui crescendo e comecei a namorar o meu marido. Os meus pais não queriam que eu namorasse com ele. Minha mãe dizia que tinha sido tão bem criada, com uma vida tão boa e com tão bons pretendentes para não ter de andar a ir levar a comida às terras ao meu namorado. Os meus pais chegaram, inclusive, a bater-me por causa disso.
Ajudei o meu namorado, na altura, que depois viria a ser o meu marido, a tirar a terceira classe porque ele sempre disse que não me ia tirar da casa dos meus pais para me dar uma vida pior. Na altura, até chegamos a pensar em ir para o Brasil, porque tinha lá uma prima, mas não chegamos a ir. Em vez disso, ele foi para o Canadá, para um lugar muito longe. Foi trabalhar para as rochas e esteve lá durante seis anos.
Neste tempo, ele queria casar-se por procuração, algo que eu nunca quis. Sempre disse a ele que ia-me casar com um homem não era com um papel. O meu marido, João, foi para o Canadá para conseguir ganhar mais dinheiro. No dia antes do nosso casamento fizemos a escritura da nossa casa e também conseguimos comprar um negócio que ficava mais abaixo, era uma mercearia/taberna com o dinheiro na mão. Ele conseguiu-me dar uma vida bonita.
Depois de casarmos, ele emigrou durante mais dois anos.
Podemos dizer que o seu marido foi um homem de palavra…
Sim, ele sempre fez tudo para me dar a vida que ele achava que eu merecia.
Enquanto ele esteve emigrado, eu aluguei a casa que tínhamos comprado e fui comprando as coisas que precisava. Também fui ajudando a minha mãe, uma vez que meu pai faleceu aos 48 anos de idade e deixou seis filhos na altura. Na mesma noite perdi o meu pai e o meu avô. Eu ajudava a minha mãe e os meus irmãos que estudavam à noite e faziam voltas de mercearia durante o dia.
Tudo o que eu trabalhei foi sempre para a minha mãe. Quando me casei, sempre lhe fui dando algum dinheiro porque sabia que ela precisava. Nosso Senhor nunca me faltou com nada porque fiz sempre tudo pela minha mãe. Casei-me, tive filhos, agora tenho netos e um bisneto. Eu sou muito rica. Agora pinto mandalas como passatempo. Pinto os livros de mandalas e depois ofereço aos meus filhos e netos para ficarem com uma recordação.
Como é que chegou a ser modista?
A minha mãe não queria que eu costurasse, mas como tinha uma madrinha que vivia em Vila Franca do Campo e veio uma senhora do continente ensinar a dar cursos de corte e costura eu pedi à minha mãe se podia ir viver para Vila Franca, para a casa da minha madrinha, para aprender. Estive no curso durante um mês, na casa de uma grande modista que se chamava Maria José. Como fiquei amiga desta senhora, pedi-lhe se podia ficar depois a trabalhar com ela uma vez que a minha mãe não queria que eu trabalhasse para ela e a senhora Maria José aceitou. Aprendi muito com essa costureira.
A primeira roupa que eu fiz foi a farda dos músicos de Vila Franca do Campo. De seguida fiz as primeiras fardas da SATA, trabalhei muito na SATA e até fui convidada para ficar a trabalhar para eles. Eu é que não quis porque já estava cansada de ver casaquinhos e blusas e saias. Ainda fiz as primeiras fardas dos dispensários, quer das enfermeiras quer dos médicos. Eu queria evoluir e assim comecei a trabalhar a partir de casa.
Que tipos de vestido fazia?
Fazia todo o tipo de vestido, até vestidos de noiva. Cheguei a fazer um vestido de noiva no hospital quando a minha filha esteve internada com uma meningite. Eu pedi ao doutor, que era o doutor Homem de Gouveia, para levar a máquina para lá para ir fazendo o vestido.
Há algum vestido que lhe tenha marcado?
Tenho três vestidos que me marcaram. Um deles foi para a Paula Canto que tinha a loja Cogumbreiro. O vestido foi todo bordado à mão e levou 5000 pérolas, tudo feito por mim. A roda do vestido tinha cinco metros de largura e o rolinho era todo feito à mão. Depois de se casar, ela trouxe-me a blusa e eu transformei-a numa blusa de noite e a saia ela guardou para recordação.
Depois, fiz um vestido de noiva para a Luísa Dâmaso, que me marcou muito. O corpo foi todo feito pela barra de vestido. Foi tudo feito por mim, à mão. Como ela morava perto de mim, estava todos os dias aqui. Ninguém acreditava que tinha sido feito tudo à mão. Só no casamento é que souberam que tinha sido eu, pensavam que tinha sido encomendado de fora.
O último vestido que me marcou foi para uma professora que vivia em Santa Clara. Ela era forte mas o vestido ficava-lhe muito bem.
Fiz muitos vestidos de noiva e dava-lhes sempre o mesmo conselho: o casamento é a coisa mais linda que há, mas é preciso haver cuidado nele. A mentira gera desconfiança e ciúme.
O seu trabalho era feito maioritaria-mente à mão?
Tinha a máquina mas o resto era tudo feito à mão. Os pormenores, os rolinhos, tudo. Nunca quis ter comigo mais do que duas ou três raparigas. Tinha que ter a certeza de que o que saía da minha mão estava bem feito e quem quer ter essa certeza, não pode ter muita gente a trabalhar para si.
Os vestidos só saiam cá de casa quando as noivas saiam da cabeleireira. Nunca demorei a entregar um vestido.
Com que idade deixou de fazer vestidos de noiva?
Fiz o último vestido de noiva quando tinha 80 anos. Já o fiz a muito custo. Estive muito doente, chegando a estar inclusivamente em coma. Gostava de continuar a fazer, mas já não posso. Aos 89 anos já não consigo. Ainda hoje fui fazer uma pequena cirurgia a um pé.
Quantas costureiras ensinou?
Acho que fiz umas cinco ou seis costureiras. Tenho pena que não tenham continuado. Elas eram maioritariamente dos Arrifes, depois aceitavam pedidos que não eram pagos e foram trabalhar para outros lados. Sei de uma que foi trabalhar para o Euromotas como costureira, mas é diferente de ser modista. Outra foi para o Canadá e quando voltou foi trabalhar para a casa de um grupo conhecido. Uma delas foi trabalhar para Lisboa com um alfaiate para fazer casacos de pele. Fui eu que arranjei este trabalho para ela.
Nunca quis passar os ensinamentos para as suas filhas?
Eu tenho uma que tem muito jeito, até sabe fazer. Mas estudaram, têm empregos bons e seguiram a sua vida. Hoje em dia, infelizmente, já não há costureiras. Compra-se um vestido, nos dias de hoje, por uma bagatela e uma costureira não pode pedir o mesmo preço que as grandes empresas.
Que conselho deixa às novas gerações?
Já não da para viver apenas da costura. O meu conselho é para que estudem, tirem um curso e sejam verdadeiros. É quase o mesmo conselho que dava às minhas noivas.
Frederico Figueiredo