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Face a Face…: Da equipa de futebol dos Ginetes às lutas com terroristas em Angola e aos peditórios rua a rua para manter a banda Minerva

São poucos os que hoje conhecem Alberto Leça, de 82 anos, na sua verdadeira dimensão. Quando se pede uma definição sobre ele, todos falam da sua passagem pela Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ponta Delgada e da sua luta por um novo quartel. Consideram-no um cidadão pacato e tranquilo, mas estão longe de imaginar que as suas lutas e convicções começaram a manifestar-se muito novo. Convidamo-lo para a rubrica ‘Face a Face’ do Correio dos Açores e estamos a ir de surpresa em surpresa sobre a sua acção nas frentes em que se foi colocando na vida. Com 17 anos fundou o primeiro clube de futebol nos Ginetes, sem quaisquer meios financeiros. Com 20 anos inicia um percurso no exército que o leva, em Angola, a lutas ‘frente a frente’ com terroristas. Viveu momentos na frente da guerra, em que a vida foi-lhe salva quase por milagre. E, depois de duas missões na tropa, quando chegou aos Ginetes, foi convidado para a Direcção da banda filarmónica Minerva que se encontrava numa situação financeira extremamente difícil. Foi então necessário fazer a ‘Festa da Banda’ com Cortejo de Oferendas e chegou-se a fazer peditórios rua em rua para que se continuasse a ouvir os sons da filarmónica. De tudo isso fala o nosso entrevistado evidenciando um Alberto Leça de lutas travadas na convicção de que só se perde na vida quando se desiste.

Correio dos Açores – Descreva dados que o identificam perante os leitores. Embora residindo nos Ginetes, teve aulas até à quarta classe na Candelária. Como eram os transportes? Que recordações tem deste tempo?
Alberto Leça – Ora bem, falar de mim não é nada que faça sem grande dificuldade. No entanto, sobre o meu percurso de vida, vou tentar. Nasci na freguesia de Ginetes, no ano de 1942, localizada no extremo Oeste da Ilha de São Miguel, no Grupo Oriental do Arquipélago dos Açores.
Não poderia ter nascido em “Terra Melhor”; Ginetes sempre foi, é, e será uma freguesia de referência, com um passado de que se pode orgulhar, um presente promissor e um futuro áureo, que decerto continuará a ser, agarrado com firmeza e determinação, como é timbre e está na génese dos seus habitantes, respeitando e homenageando a memória dos seus antepassados que com o seu trabalho esforçado, engenho, dedicação e audácia, nos legaram esta “Linda Terra”.
No Ginetes passei a minha infância e juventude, fui baptizado, recebi os restantes sacramentos e era jovem atento às iniciativas que iam surgindo, em muitas das quais participava, sempre que entendia serem desafiantes e relevantes para a freguesia. Mais adiante pormenorizarei algumas delas.
Os primeiros três anos de ensino primário foram também no Ginetes, mas a quarta classe teve de ser na vizinha freguesia de Candelária (confinante a Sul) por não haver na nossa terra o número de alunos suficientes.
Os transportes eram muito escassos, uma única camioneta da empresa Melo & Martins que passava muito cedo, com saída dos Mosteiros (freguesia confinante a Norte) para Ponta Delgada e só regressava no final do dia. Outros meios de transporte eram raros, incluindo os de tracção animal.
As dificuldades eram muitas, mas recordo o bom acolhimento que sempre encontrei na freguesia vizinha e, no meu caso, os bons amigos que mantenho deste tempo e que muito prezo.
Da escola primária caminhei para a Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, um estabelecimento de ensino que recordo com muita saudade. Bons programas e óptimos professores que nos preparavam extraordinariamente para as nossas profissões futuras.
Ainda hoje considero ter sido uma má decisão a extinção de um estabelecimento de ensino marcante no nosso meio, a Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada.
Considero-me ainda hoje, um felizardo, por ter sido o segundo rapaz da minha terra a prosseguir os estudos e o primeiro a concluir o curso, numa época dificílima e com enormes constrangimentos. Raparigas, já três estudavam em Ponta Delgada, se não estou a errar, todas para professoras.

Entretanto, com 17 anos, fundou um dos dois clubes de futebol dos Ginetes e é um dos jogadores. Jogava a extremo direito em campo de terra batida…
Sim, tinha eu 17 anos, final da década de 50, quando começou a despertar a vontade entre um grupo de amigos, para a criação de duas equipas de futebol com as primeiras tentativas no Largo-do-Tanque, defronte da igreja e após as missas de Domingo.
Os mais entusiastas envolvidos iam tomando posições e não demorou para que de um lado estivessem os que optaram pelos “Azuis” e de outro os que penderam para os “Vermelhos”, já com os responsáveis definidos e os possíveis praticantes da modalidade comprometidos. Os nomes verdadeiros das equipas eram o Futebol Clube Ideal e Clube Desportivo de São Sebastião.
Também não tardou a procura para implantar o campo de futebol, tendo sido disponibilizado de imediato a parcela de terreno da paróquia no lugar da Lombinha, seguindo-se a regularização do terreno (terra batida), a aquisição dos equipamentos, alguns treinos “por curiosos” e o jogo inaugural entre as duas equipas.
Foi um dia memorável. Na época foram duas boas equipas de futebol ao nível de freguesias rurais.
Entretanto, a população da freguesia já tinha a sua preferência e durante os jogos por vezes não conseguiam conter-se, cometendo alguns excessos…
Permitam agora referir-me à “Equipa dos Azuis”, era a minha equipa, fui um dos fundadores e onde sempre joguei, até que com vinte anos e uns meses fui chamado para cumprimento do Serviço Militar.
Mas antes, fazer face às despesas, que já tanto nos preocupavam e que em abono da verdade, não eram muitas, decidimos recorrer a quem tivesse registo de comédias antigas para nos facultar. Conseguimos, foram disponibilizadas com muito entusiasmo e os ensaios começaram de imediato e em simultâneo a criação de actos de variedades, por nós próprios.
As apresentações foram muito bem aceites, o salão ficava repleto e foi assim que conseguimos ter condições para satisfazer as despesas e garantir a estabilidade da “equipa”. As receitas dos jogos eram insignificantes….
Referi atrás que as despesas eram reduzidas, mais pudera, o nosso vestiário ficava ao lado da manjedoura na casa de arrumos dos apetrechos da lavoura e da agricultura, muito próxima do campo de futebol e gentilmente disponibilizada pelo saudoso amigo e companheiro desta e de outras iniciativas, Manuel José Veríssimo e os balneários e lavandaria nas nossas casas, no regresso dos jogos.
Recordo que tínhamos de recorrer ao aluguer ou empréstimo de geradores, candeeiros e aos indispensáveis ‘patromax’, por não existir energia eléctrica.
Ainda sobre os “Azuis”, não devo concluir sem realçar o gesto de aguardarem o meu regresso da guerra no Ultramar para me oferecer a taça que tínhamos conquistado, anos antes, num torneio entre as duas equipas da freguesia. Imaginem como fiquei reconhecido!... É pouco mais que um dedal, mas, com um valor inestimável para mim e, como não podia deixar de ser, exposta em lugar de destaque na nossa casa.
Eram outros tempos, outras realidades, desafios e obstáculos que tivemos de “Encarar, Vencer e Seguir em Frente”, imbuídos pelo grande apego que tínhamos à “Nossa Terra”.
Muito mais sobre a existência dos “Azuis” poderíamos recordar mas, ficamos por aqui.

Com 20 anos foi chamado para o exército, vai para Santarém e, depois – contra a sua vontade – foi para a Escola Prática de Cavalaria. Que recordações tem deste tempo?
Não muito tempo depois fui alistado para o serviço militar e passado algum tempo incorporado e enviado para frequentar o primeiro ciclo do curso de sargentos milicianos, na EPC, Escola prática de Cavalaria, em Santarém.
Um quartel muito rigoroso e exigente, onde a pista de obstáculos era assustadora, mas tenho de admitir que, conscientemente, nos prepararam com uma eficiência que por vezes julgava ser desmedida, mas os instrutores sabiam o que nos esperava…
De Santarém, para Tavira, CISMI, para frequentar o segundo ciclo do curso de sargentos milicianos.
Concluído o curso participei na preparação de algumas companhias, primeiro ainda em Tavira e depois no BII18, nos Arrifes, de regresso temporário a casa.
Contudo, quando já alimentava a esperança de não ser mobilizado para a guerra no Ultramar, por no meu entender já ter tempo de tropa suficiente, surge a nomeação e lá vou eu, rumo a Estremoz, RC3, para ser incluído no “Batalhão de Cavalaria 745”, com destino a Angola.
Fazendo parte da CC744 (Companhia de Cavalaria 744) constituída por militares do continente, com duas excepções, dois micaelenses, o Capitão de Cavalaria, um dos mais novos oficiais do exército português, Jorge Manuel Bicudo Castro Valério, comandante da Companhia, infelizmente já falecido, e o Furriel Miliciano, comandante da secção que jamais esquecerá, Alberto Reis Bettencourt Leça.
Passamos juntos momentos muito difíceis. Salvamos as nossas vidas em locais e momentos que ainda me atormentam. Mas ficamos por aqui…
O momento de partida nos primeiros dias de Janeiro, foi terrivelmente penoso, imaginem a maioria dos militares com as suas famílias e amigos presentes na doca a despedirem-se e eu, a dizer adeus à multidão a tentar conter as lágrimas, enquanto o navio ‘Vera Cruz’, se fazia ao largo para nove dias de viagem.
De Angola vou somente referir que o primeiro ano, foi passado num acampamento em Zala, na região dos Dembos (junto fotografias e localizações), fica a norte de Nambuangongo a duas horas de picada (caminho estreito aberto no mato), em coluna de viaturas militares.
Referi Nambuangongo por ser um local muitas vezes referido entre nós, no início da guerra em Angola, onde uma Companhia que julgo ter sido constituída por micaelenses, integrou um Batalhão no continente, onde se destacou com valentia infligindo uma grande derrota aos terroristas. Era comandante o Tenente Coronel Maçanita.
Estive por algumas vezes no local e era ainda perceptível o que lá tinha acontecido.
A região dos “Dembos” era um dos locais mais activos e violentos da guerra.
O abastecimento, sempre muito difícil, era através de colunas mistas (viaturas militares e civis) mas com a nossa protecção, ocupando dias antes as elevações dominantes e, mesmo assim, não passavam incólumes em diversos locais do trajecto… Os alimentos também chegavam de paraquedas, lançados dos aviões com bojo (nord’atlas) e pelos voluntários que em avionetas, aterravam na pista de terra batida que é possível ver na fotografia anexa e que sempre nos levavam pequenas quantidades de produtos frescos.
E sobre o primeiro ano em Zala, muito mais haveria para dizer, mas ficamos também por aqui…
Regressei da “Região dos Dembos” – Zala para os arredores da cidade de Luanda, onde nas instalações militares do Campo Militar do Grafanil, local que já conhecia de passagem, a Companhia a que pertencia (CC744) foi integrada numa Força de Intervenção, tendo também como missão o patrulhamento na periferia de Luanda, mas só nos intervalos das nossas intervenções nos encontros inevitáveis com os terroristas. Permitam-me não os pormenorizar, atendendo a que a própria demonização (Força de Intervenção) é só por si elucidativa…
Foi mais um período num estado de inquietude permanente, que se ia acentuando com a aproximação do termo da comissão de serviço no Ultramar, mas sem, no entanto, fragilizar a minha conduta e acção e com a intuição de ter sido também a conduta dos restantes combatentes que comigo conviveram.

Quatro anos cumpridos de serviço militar, regressa aos Ginetes e não o deixam parado. É eleito Presidente da Banda Filarmónica Minerva numa altura em que a instituição passava por um momento financeiro difícil.
Passados vinte e cinco meses de tormento na Província Ultramarina de Angola (1965-1967), felizmente consegui regressar a Lisboa e alguns dias depois à “Nossa Terra”, onde finalmente avistei ainda a bordo os que me eram mais queridos e momentos depois aquele encontro único, que muitas vezes pensei não o concretizar, e que nunca mais chegava.
Por um lado uma enorme alegria, mas por outro surpreendido e profundamente perturbado com a fragilidade do estado de saúde do meu saudoso pai, que acredito ter aguardado o meu regresso, para se despedir, porque pouco tempo depois nos deixou.
Da nossa filarmónica muito, mas muito, poderia relatar, mas vou esforçar-me para resumir o mais que puder.
Acredito que o apego forte que sempre tive pela “Minerva” tem origem nos maus avós, o médico, Carlos Abel Bettencourt Leça, um dos fundadores e o autor do nome de “Filarmónica Minerva dos Ginetes” e o agricultor, Agostinho Furtado Reis, anos mais tarde, na presidência da Direcção, durante aproximadamente uma década.
Defendo a existência da filarmónica, por altura do hastear da bandeira da Autonomia em 1897, na “Casa do Monte”, na Lomba de Baixo desta freguesia (anexo fotografia). É bem possível que não, tivesse farda, poucos músicos, sede provisória, mas lá que tinham já músicos a tocar, lá isso tinham…
Foi de facto após o meu regresso da guerra em Angola que se lembraram de me convidar para a Direcçáo da Banda, tinha eu então 25 anos e, sem muitos subterfúgios aceitei o desafio, muito embora fosse um rapazinho no meio dos meus colegas de direcção. Pela fotografia que anexo nota-se a diferença das idades…
Ainda hoje me interrogo se não foi uma maneira hábil de me voltarem a inserir nas forças vivas da freguesia. Acredito que sim e estarei grato para sempre ao povo da terra onde nasci.
Assim comecei uma longa caminhada ao serviço da “Filarmónica Minerva dos Ginetes”.
Naquela época as dificuldades eram enormes, para além, do nosso trabalho e da colaboração da nossa população, os apoios eram inexistentes. Estávamos ainda no tempo da Junta Geral e de um só governo para o País…

(Conclusão)

No entanto, as responsabilidades estavam assumidas e tínhamos de planear a maneira de as ultrapassar de imediato.
Confesso que nos vimos num “Mar-de-trabalhos”, a sede era um único quarto, instalação sanitária não havia (naquela época não tínhamos as moças), os instrumentos musicais a necessitar de reparações e praticamente obsoletos, fardamento num estado lastimável e entre muitas outras dificuldades a credibilidade não era das melhores.
O nosso gesto foi, sem perda de tempo, arregaçarmos as mangas e encontrar as soluções para as maiores e mais prementes carências. Recomeçar não só os ensaios da filarmónica aos sábados, reunindo os músicos, como também a instalação da escola de música e a garantia da presença do novo maestro.
Foi uma decisão acertada porque permitiu transmitir um novo alento a todos nós ao desejar as Boas Festas na freguesia. Estávamos então na época natalícia.
Maestros foram alguns, todos muito competentes e colaboradores, na maioria dos casos músicos da Banda Militar, que muito contribuíram para o nível artístico que desejávamos alcançar.
Gostava de falar um pouco de todos, mas não é possível, vou recordar o Maestro da nossa Terra, o meu amigo de infância e já saudoso, Manuel Viveiros Pimentel, recentemente falecido. Muito novo foi músico persistente da Minerva e depois prestigiado músico da Banda Militar. Esteve sempre ao nosso lado e o seu incondicional apoio foi muito importante no desenvolvimento das nossas atividades, mesmo nos momentos mais conturbados que também existiram.
Francisco do Rego Paquete, já falecido e mais tarde Duarte António da Silveira foram maestros que excediam sobremaneira as suas funções para nos ajudar.
Para reduzir as despesas ao mínimo, sendo os custos com a manutenção e reparação do instrumental a mais significativa, construímos um pequeno anexo à sede, instalamos uma bancada com as ferramentas indispensáveis (das nossas casas) enão tardou a que passasse a “Centro de recuperação de instrumentos”, onde se reparava quase tudo que era necessário, desde soldaduras, substituição de molas, agulhas, sapatilhas entre muitos outros trabalhos que por vezes duravam até ao amanhecer.
Mas, era mesmo necessário outras iniciativas, para garantir a sustentabilidade da Banda apesar de ser uma época desfavorável tínhamos de avançar e decidimos criar no ano seguinte a “Festa da Banda” que constava de um “cortejo de oferendas” onde todos participavam, com pequenas “comissões” que por rua se encarregavam de fazer o peditório e da ornamentação dos carros alegóricos, esmerando-se ao máximo. Em simultâneo, não faltava a barraquinha de comes e bebes, o bazar, as arrematações e o arraial, sempre muito participado.
No final da noite os responsáveis chegavam à sede da Banda com o dinheirinho que tinham conseguido nas arrematações, bazar e barraca, expondo-o com grande satisfação, na mesa, e depois de apurado o total, era sempre arredondado com uns centavos dos presentes até o número nos “soar” um pouco melhor, terminando sempre com um sumo de cevada retirado do bidão de gelo ali à nossa beira. O último a sair apagava o patromax…
Não tenho dúvidas que todo o nosso esforço tinha sido insuficiente, não fosse a Generosidade e Confiança que o Povo dos Ginetes depositava em nós, uns emprestando-nos as suas economias a juros muito contidos e acreditem que não eram poucos e muitos outros criando bezerros nas suas lavouras que tanto nos ajudavam a satisfazer todas as necessidades referidas anteriormente e “Seguir em Frente” na consolidação e progresso da “Filarmónica Minerva dos Ginetes”, mesmo com o constante tormento da emigração que nos levava uma boa parte dos músicos, incluindo as moças que refiro a seguir.
No entanto, momentos relevantes e compensadores foram muitos, recordo, ainda hoje muito reconhecido, a oferta da parcela de terreno onde se encontra implantada a sede da Banda, pela família Tomás Ivens. Também não esqueço o momento de ingresso e apresentação das executantes femininas na nossa Banda, que tanto a dignificaram e enalteceram. Julgo não errar, referir que fomos os primeiros a fazê-lo na “Nossa Ilha”.
Vou ficar por aqui, penitenciando-me, passado todos estes anos, pelo que não conseguimos fazer e tentando controlar a comoção sempre que ouço ou vejo a Banda Minerva, felicitando os actuais dirigentes, músicos e familiares e augurando-lhes os maiores êxitos.
                                                 (continua)
João Paz
                             
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