A convite do Festival Tremor, o rapper Sam The Kid orientou em São Miguel uma residência artística com a Escola de Música de Rabo de Peixe e 11 rappers e cantores açorianos. Nesta entrevista, uma das maiores referências do hip-hop nacional, destaca que “não é tão habitual encontrar rappers e cantores num grupo em que quase todos tocam instrumentos e têm aptidão para serem instrumentistas”, tal como encontrou nos Açores.
Samuel Mira (Sam The Kid, rapper e produtor musical) – Como recebeu e reagiu ao convite para orientar esta residência artística?
O convite foi uma surpresa e achei muito interessante, porque é um papel no qual eu me revejo cada vez mais no futuro, que não envolva propriamente uma actuação da minha parte, mas uma direcção, um conselho, uma partilha.
Achei interessante também por ser nos Açores, porque, para ser sincero, é donde, infelizmente não conheço assim tantos artistas e gosto muito de conhecer talento novo. Este foi um excelente pretexto e fiquei muito surpreendido, principalmente agora nos ensaios.
Além disso, acresce o lado musical, o encontro com a Escola de Música de Rabo de Peixe, a linguagem de rap e a linguagem de músicos que estão mais habituados a outro género musical. À partida pode parecer que são distantes, mas não é bem assim. E isso entusiasma-me, porque gosto deste processo em que os músicos falam linguagens diferentes, mas às vezes é só o termo que é diferente.
No rap dizemos uma certa palavra, uma certa situação, mas alguém de uma Escola de Música usa outra palavra, mas queremos dizer o mesmo. Há uma linguagem universal que nos une, que dá para ser comunicada e eu também estou aqui um pouco a fazer esse papel da direcção dos rappers e dos artistas, que é dar um conselho e uma aprendizagem mútua.
A parte musical da banda é dirigida pelo professor Carlos Mendes, da Escola de Música de Rabo de Peixe, mas eu também tenho de estar atento para perceber se a transposição está correcta nos instrumentistas. Alguns elementos, por vezes, não são tão fáceis de captar, como o groove ou o balanço, por exemplo, que é algo que o rap tem. Para mim, foi uma honra aceitar um projecto destes.
Como vê o impacto deste projecto na visibilidade e no reconhecimento do hip hop açoriano?
Acho que é um projecto que poderá dar alguma visibilidade. Mas mais do que isso, a motivação é muito importante, que é o que nos faz continuar. Para isso, também é muito importante que o espectáculo corra bem, tanto a nível colectivo, quanto da prestação individual de cada um. Mesmo quando não corra bem, não é motivo para desmoralizar, dá uma força para continuar a fazer mais e evoluir.
A divulgação dos próprios nomes individuais dos artistas também seria muito importante. Penso que ainda iremos a tempo, nem que seja a posteriori. Depois de o concerto acontecer, é importante ter alguém que faça uma revisão e diga os artistas que estiveram presentes.
Qual foi a principal mensagem que tentou passar a estes jovens artistas durante a oficina?
A principal mensagem é sempre de que não há problema falhar. As convicções são a coisa mais importante. Se eu der uma opinião e tu não a respeitares, a tua convicção é o mais importante. Não me ponhas numa situação superior à tua convicção. E não há problema em falhar, mas também é preciso muita prática. Tens de querer isto, de estar obcecado por isto. Tem que ser uma paixão. E, na realidade, sinto todos motivados e isso já é muito bom.
Depois, é a parte da identidade. De forma subtil, às vezes valorizo a identidade de alguns artistas e como é que se pode chegar lá numa performance. A meu ver, infelizmente, alguns jovens desta nova geração estão mal-habituados e, por vezes, não sabem bem o que é uma performance. Eles vêm os ídolos a fazer isso lá fora, copiam e no fundo não sabem bem o que estão a fazer. Estou a referir-me ao facto de cantarem por cima das suas vozes. No rap, o instrumental já é playback, é uma coisa pré-gravada, mas há uma nova geração que aceita como normal estar a cantar por cima da música toda porque é assim que viram os ídolos a fazer no estrangeiro.
Como este é um assunto que mexe comigo, tento mostrar-lhes o meu ponto de vista. Não estou a dizer que estou certo, é a minha opinião e aquilo que eu procuro, porque quero ver talento. Quero ter a hipótese de dar os parabéns, de dizer ‘adorei a tua performance’. Não consigo dar os parabéns a alguém que não esteja a mostrar talento. (…)
Houve algum momento desta residência que o marcou particularmente?
Sinceramente, o que me tem marcado é mesmo o talento. Tenho sentido nos Açores, em comparação com outros grupos, que não é tão habitual encontrar rappers e cantores num grupo em que quase todos tocam instrumentos e têm aptidão para serem instrumentistas. Posso destacar esta questão em específico nos Açores, ou então este grupo é mágico, não sei.
Tens um que toca guitarra, pessoas que tocam bateria, a Joana que toca tudo. Nessa comunicação de estarmos a ouvir os beats, a definir quais serão os acordes, se a Joana sentir que estamos em dificuldade, ajuda. Ela tem um grande talento e um grande ouvido. Isto não é uma coisa que se encontra em qualquer lado: pessoas que são rappers, que são cantores e que também dominam a parte dos instrumentos.
Como é que foi o processo de selecção ou preparação dos temas e como é que têm organizado nos ensaios?
Os temas foram previamente seleccionados, mas depois ocorreu uma mudança ou outra nos ensaios porque apareceu um tema melhor ou com o qual os artistas estavam mais confortáveis. Para mim, isso é uma das prioridades: usar sempre o tema em que o artista esteja mais confortável. Depois, a nível do alinhamento, vamos tentar fazer uma coisa equilibrada e dinâmica, no sentido em que metade das músicas irão ter participação da orquestra e a outra metade não.
Vamos intercalando. Depois, há músicas que sentimos que podiam ficar mais ricas, havendo colaboração entre eles. Por exemplo, há um rapaz que optou por cantar o refrão dele e eu disse-lhe que achava que nesta música estava um pouco desprotegido. E sugeri “no teu lugar, faria isto: está aqui a Joana, ela canta muito bem e vai dar-te uma segurança.” Este é um exemplo de situações que estão a acontecer nos ensaios, que fazem com que existam versões mais colaborativas e enriquecidas.
Há alguma surpresa ou estreia especial?
No final, vamos fazer uma espécie de jam session baseada no som “Eu não vou Chorar” do Sandro G. Há um arranjo específico da banda e os artistas todos vão participar nessa música. É o final em que todos colaboram.
Daquilo que viu qual é o panorama actual do rap nos Açores?
Em termos estéticos, temáticos e de talento, eu não consigo fazer uma distinção muito grande dos Açores com qualquer sítio de Portugal. A única coisa que iria diferenciar era a situação extra do talento musical para os instrumentos, pois isso não é normal. Foi a única coisa que senti diferente e que acaba por ser uma vantagem.
De resto, não senti as temáticas diferentes do que se faz actualmente, mas isso num bom sentido. Falarmos de onde somos, de onde viemos, de onde moramos, faz parte de todo o rap em Portugal e no mundo, e os Açores não é uma excepção.
Também não vejo diferença nos beats, no sentido em que alguns seguem tendências que nos são familiares e que nos dão algum conforto. Ou seja, há uma situação mais genérica, mas não no sentido negativo. Depois, temos alguns que têm uma identidade interessante e mais vincada, tal como o Valério.
Até nas expressões, onde eventualmente pode aparecer uma ou outra que seja mesmo de cá, sinto que estamos todos a falar a mesma linguagem. Não sinto distância nenhuma, estamos todos no mesmo barco e não consigo destacar nada. Isto no bom sentido. O rap nos Açores não é algo separado do que quer que seja, está igual a todo o Portugal e com muito talento.
Para si, como tem sido a experiência de estar nos Açores?
A experiência tem sido espectacular. Já não é a primeira vez que venho aos Açores e a São Miguel. Já vim com outros projectos, mas normalmente é dar um concerto e ficar um ou dois dias. No caso do grupo e das pessoas com quem estamos, poder estar aqui uma semana faz com que os elos vão crescendo e a união fique maior. É um prazer poder estar a conhecer um pouco melhor estas pessoas, porque normalmente não há esse tempo.
Há alguma expressão açoriana que o tenha chamado a atenção?
Curiosamente, não houve nada em termos de expressões, caso contrário eu iria memorizar. Por vezes há a parte do sotaque, em que se as pessoas falarem muito rápido, pode acontecer uma vez ou outra ter de pedir para repetir e depois acabo por perceber. Mas é só uma questão de atenção.
Tem alguma mensagem que queria deixar aos fãs açorianos?
Para mim, é uma honra poder estar a visitar os Açores e, mais especificamente, São Miguel. Não sou muito de viajar e, se tivesse outra profissão, não sei se teria vindo aos Açores. Sou uma pessoa muito de estar no meu canto e fico muito feliz que a minha arte e a minha carreira me permitam pisar este espaço. As pessoas são muito acolhedoras. Há uma hospitalidade especial que sentimos quando vimos cá e eu fico muito grato por isso. Às vezes, a andar aí pela rua, o pessoal também dá aquele amor de uma maneira muito civilizada, como deve ser. Sobretudo, o que quero expressar é muita gratidão por poder estar a viver este momento com este grupo e neste contexto.
Daniela Canha