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José Cruz defende que se deve “olhar para o impacte que o turismo pode ter sobre os recursos hídricos na Região, ao nível quantitativo e qualitativo”

José Virgílio Cruz, professor catedrático na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores e especialista em Hidrogeologia e Geologia Ambiental, aponta como áreas prioritárias, para garantir uma gestão sustentável da água no arquipélago, a prossecução de estudos sobre Hidrogeologia e Hidrogeoquímica de aquíferos vulcânicos, tendo em conta a importância que a água subterrânea tem nos Açores, bem como a quantificação dos fluxos elementares e de gases dissolvidos em massas de água subterrânea e de superfície. Além disso, realça a importância de se desenvolver estudos sobre a recuperação de massas de água eutrofizadas, para que se possa dar um salto na gestão e valorização das lagoas.

Correio dos Açores – Que relevância atribui ao Dia Mundial da Água?
José Virgílio Cruz (Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UAc e investigador do Centro de Vulcanologia e Avaliação de Riscos Geológicos) – O Dia Mundial da Água, comemorado desde 1993 sobre a égide da Organização das Nações Unidas, é sempre uma oportunidade para recordar, mesmo aos mais distraídos, que a água é um recurso essencial à vida, que urge proteger e valorizar, no contexto mais abrangente do caminho que é preciso percorrer para alcançar a sustentabilidade. Só por este facto, é relevante celebrarmos o dia 22 de Março.
Em 2024, o tema seleccionado pela ONU é “Água para a paz”, que lembra como o acesso a este recurso é motivo de conflitos entre países, ou mesmo a outras escalas, que se perspectiva que possa agravar-se nas próximas décadas, por exemplo, entre outras causas, em virtude do aumento da procura ou dos efeitos negativos das alterações climáticas.
Pessoalmente, para quem faz investigação e ensina sobre esta temática desde há várias décadas, o Dia Mundial da Água é, igualmente, uma chamada de atenção para a necessidade de continuamente e assertivamente continuar empenhado no trabalho, até porque é muito gratificante verificar que os nossos resultados podem ter um profundo impacto na sociedade.

Como é que a sua pesquisa na área da Hidrogeologia contribui para a gestão sustentável dos recursos hídricos nos Açores?
Nos Açores, a água subterrânea constitui um recurso natural estratégico, cuja importância para o abastecimento das populações tem raízes ancestrais, como demonstrado pelas múltiplas utilizações levadas a cabo desde o povoamento das ilhas, pelo que a sua valorização e protecção se torna crucial para evitar a respectiva degradação a médio e longo prazos. No arquipélago, a captação de água subterrânea responde por cerca de 98% do abastecimento de água e, na maioria das ilhas, o abastecimento de água é feito exclusivamente a partir de origens subterrâneas.
A Hidrogeologia é o campo das Ciências da Terra que estuda a água subterrânea e tem um elevado número de aplicações práticas no quotidiano. A minha investigação centra-se na aplicação de metodologias e ferramentas de diversas áreas das Ciências da Terra, assim como de outros campos de saber, no desenvolvimento de estudos hidrogeológicos e hidrogeoquímicos em aquíferos vulcânicos. Mais recentemente, tenho investido esforço também na quantificação e modelação dos fluxos elementares e de CO2 em massas de água, na caracterização isotópica dos processos de intrusão de água do mar em aquíferos costeiros e na identificação dos ecossistemas dependentes da água subterrânea.
Por outro lado, na última década, o grupo de investigação que lidero tem vindo a alargar o foco da investigação realizada no sentido de considerar a natureza holística do ciclo da água, numa perspectiva mais integradora dos processos hidrológicos, principalmente através da realização de estudos de caracterização hidrológica e hidrogeoquímica de massas de água de superfície, como rios e lagos, e de gestão e planeamento de recursos hídricos.
Neste contexto, a informação científica que produzimos tem sido alvo de reconhecimento nacional e internacional, assim como é integrada, mesmo que de forma indirecta, nas políticas públicas sectoriais, o que obviamente é muito gratificante.

Quais são os principais desafios na preservação e gestão da água, considerando a sua interligação com fenómenos vulcânicos e sismológicos?
O nosso grupo de investigação integra-se no Instituto de Investigação em Vulcanologia e Riscos Geológicos da Universidade dos Açores e, naturalmente, a interacção entre as massas de água e o meio vulcânico activo é um foco primordial dos trabalhos em curso, que desenvolvemos em todas as ilhas do arquipélago e até no exterior. Por exemplo, levamos a cabo estudos de ciência fundamental para a caracterização das águas minerais que ocorrem em diversas ilhas dos Açores, para o que aliás desenvolvemos uma extensa base de dados analíticos, e a nível mais aplicado desenvolvemos metodologias e ferramentas para a monitorização hidrogeoquímica aplicado à vigilância de vulcões.
Desde há cerca de uma década, iniciámos um estudo visando a quantificação das emissões de CO2 em lagos nos Açores, ao qual, face à relevância dos resultados produzidos, temos dado continuidade. Por exemplo, presentemente, estamos a trabalhar no âmbito de um projecto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia que visa a medição e quantificação das emissões de metano, outro gás de efeito de estufa, em colaboração com investigadores de outras nacionalidades.

Qual é a importância da água subterrânea nos ecossistemas dos Açores?
Os ecossistemas cuja composição, estrutura e/ou funcionamento dependam do suprimento de água subterrânea podem ser considerados como ecossistemas dependentes da água subterrânea. Face à sua relevância, a sua protecção encontra-se plenamente justificada, o que tem vindo a ser reconhecido em vários fora, processo dinamizado pela União Europeia através da Directiva-Quadro da Água, que veio estabelecer um quadro de acção conjunta no domínio da política da água neste espaço geográfico em que nos inserimos. Requer-se que as acções antropogénicas sejam controladas ou revertidas por forma a que não ocorram danos sobre os ecossistemas terrestres ou não sejam afectadas as massas de água de superfície associadas, o que obriga a que os ecossistemas dependentes sejam devidamente identificados e caracterizados.
Neste contexto, na sequência de um desafio das autoridades regionais, desenvolvemos recentemente um estudo específico sobre esta matéria que levou à identificação de ecossistemas dependentes nas ilhas de São Miguel e das Flores, assim como aponta para a necessidade de implementação de medidas de preservação das massas de água subterrâneas que suportam aqueles ecossistemas dependentes, apesar de actualmente essas unidades serem consideradas como estando em bom estado.

Do conhecimento que tem, a quantidade de água disponível nos Açores vai evoluir com as alterações climáticas?
A nível planetário, as múltiplas utilizações da água subterrânea esbatem contra o carácter de recurso comum, e assim vulnerável à exploração irrestrita por indivíduos sem consideração dos interesses comunitários mais amplos. Com efeito, o desenvolvimento das águas subterrâneas pode levar a diversos impactos ambientais e socioeconómicos, a desigualdade social no acesso à água, a sobre-exploração, a subsidência, a intrusão salina e outros problemas de qualidade, e a degradação de ecossistemas dependentes da água ou de massas de água de superfície dependentes.
Nos Açores, a generalidade das massas de água subterrânea encontra-se em bom estado quantitativo, enquanto relativamente ao estado químico subsistem massas de água em estado designado como medíocre, devido à mistura com sais marinhos nas zonas costeiras e à intrusão salina, em particular nas ilhas Graciosa e do Pico. Assim, a emergência das alterações climáticas pode, desde logo, acarretar consequências negativas como o agravamento da intrusão salina devido à subida do nível médio da água do mar, com eventuais constrangimentos no acesso ao recurso. Por outro lado, é expectável a redução da recarga dos aquíferos, com a diminuição das disponibilidades hídricas.

Como é que a sua equipa opera para monitorizar e prever eventos hidrogeológicos e geológicos que possam afectar a disponibilidade e qualidade da água nos Açores?
A nossa investigação, que tem abrangido todas as ilhas dos Açores, é realizada com recurso a uma grande diversidade de abordagens e ferramentas. Realizamos levantamentos de campo, para a recolha de amostras de água para análise química ou a medição de outros parâmetros hidrológicos e hidrogeológicos com instrumentação específica, a que geralmente se sucedem trabalhos laboratoriais, sempre no intuito de podermos testar as várias hipóteses colocadas, como decorre da abordagem científica que sempre guia os nossos passos. No laboratório, geralmente analisamos os elementos dissolvidos na água, que podem ocorrer em concentrações elevadas ou, ao invés, ínfimas, o que exige a mobilização de equipamentos avançados, e muitas vezes colaboramos com outras entidades para a realização de análises isotópicas. É frequente usarmos métodos quantitativos para a interpretação dos resultados obtidos, com recurso, igualmente, à modelação em computador do fluxo da água subterrânea ou geoquímica. É sempre uma actividade que obriga a grande rigor e formação constante, e que mobiliza necessariamente uma equipa de trabalho para que se possa alcançar sucesso. Ao longo dos anos, tenho tido o privilégio de contar com colaboradores muito competentes e dedicados.

Que áreas considera cruciais para a gestão sustentável dos recursos hídricos nos Açores num futuro próximo?
Necessariamente, a prossecução dos estudos sobre hidrogeologia e hidrogeoquímica de aquíferos vulcânicos, o que se justifica desde logo pela importância que a água subterrânea tem nos Açores. A quantificação dos fluxos elementares e de gases dissolvidos em massas de água subterrânea e de superfície é também prioritária, também pela relação com a emissão de gases de efeito de estufa.
Relativamente às lagoas, será importante desenvolver estudos sobre a recuperação de massas de água eutrofizadas, para que se possa dar um salto na gestão e valorização das mesmas.
Finalmente, julgo ser importante olhar para o impacte que o turismo pode ter sobre os recursos hídricos, quer ao nível quantitativo, quer qualitativo, o que até ao presente não tem sido abordado.

Como é que a sua equipa científica colabora com outras entidades regionais na gestão integrada da água?
Desde sempre que temos colaborado com as autoridades competentes do Governo Regional, ou com as autarquias, na realização de estudos de diversos tipos sobre os recursos hídricos dos Açores, e em particular sobre as águas subterrâneas, obviamente em colaboração com outros investigadores ou mesmo com empresas privadas. Temos marcado presença nos trabalhos de elaboração dos principais exercícios de planeamento desde o já ultrapassado Plano Regional da Água, datado de 2003, até mais recentemente aos sucessivos ciclos de planeamento da Região Hidrográfica dos Açores ou à gestão de riscos de cheias e inundações, o que tem permitido igualmente potenciar o nosso labor de investigação.

Quais são as suas recomendações para políticas públicas ou estratégias de gestão que possam melhorar a resiliência dos Açores em relação aos desafios que se colocam à maior ou menor disponibilidade de água?
A importância da água subterrânea nos Açores, quer ao nível da manutenção dos níveis de abastecimento de água para consumo humano, quer como suporte de ecossistemas, mostram a necessidade de promover uma gestão sustentável dos recursos existentes. Para prosseguir este caminho, entre outros aspectos, será determinante aumentar o conhecimento existente, por exemplo pela instalação de uma rede de monitorização do estado quantitativo, hoje inexistente, adaptar o quadro legal e regulatório à realidade arquipelágica dos Açores, de forma a melhorar a imposição e a conformidade com as normas vigentes e, inclusivamente, incrementar a consciencialização sobre a importância da água subterrânea.
Contudo, devemos obviamente olhar para o ciclo da água de um modo holístico e, para tal, o caminho está bem traçado, pois os Açores possuem instrumentos de planeamento actuais, quer de índole estratégico, como o Programa Regional da Água, quer o Plano de Gestão da Região Hidrográfica. Nestes instrumentos, com base num diagnóstico aturado e multidisciplinar, estão estabelecidos objectivos concretos, e estas metas são suportadas por um conjunto de medidas a serem desenvolvidas, a curto e médio prazo, pelas autoridades competentes, e em particular o Governo Regional. É um esforço exigente para que possam ser cumpridos os objectivos ambientais definidos na Directiva-Quadro da Água da União Europeia, transposta para o direito nacional pela Lei da Água que, no fundo, são corporizados pelo designado bom estado de todas as massas de água delimitadas na Região.
A implementação cumulativa do Plano de Riscos de Inundações dos Açores, e outra legislação ambiental com reflexo sobre os recursos hídricos, como os Planos de Bacia Hidrográfica das lagoas mais relevantes no arquipélago, são também desafios exigentes que se colocam no futuro próximo, aliás na continuidade de políticas públicas já iniciadas. Por fim, o uso eficiente da água, a redução das perdas nas redes de adução e distribuição e a universalização da gestão adequada das águas residuais continuam a ser linhas de acção a prosseguir.

Qual é o papel da comunidade académica e científica na promoção de práticas sustentáveis de utilização e gestão deste recurso?
Julgo que a comunidade científica não se pode alhear da sociedade, pelo que deve assumir um papel de charneira na sensibilização e informação dos cidadãos. Contudo, reconheço que ainda existe um longo caminho a percorrer, na certeza que só uma população informada pode contribuir decisivamente para a protecção e valorização dos recursos hídricos. No passado recente, temos desenvolvido alguns trabalhos académicos, sobre a forma de inquéritos, que demonstraram que, por um lado, os técnicos e responsáveis sectoriais concordam que a sensibilização é uma ferramenta essencial, embora por outro lado os estudantes à entrada da universidade ainda desconhecem algumas questões relativas à importância da água subterrânea.
Ao longo dos anos, eu e a minha equipa, temos contribuído activamente na medida das nossas possibilidades para a sensibilização e educação da população sobre a importância da água, e na promoção de práticas sustentáveis de utilização e gestão deste recurso estratégico, como por exemplo, entre outras vias, sobre a forma de artigos de divulgação em órgãos de comunicação social ou pela realização de palestras em estabelecimentos de ensino sempre que somos convidados. Aliás, aproveito para reafirmar a nossa disponibilidade para colaborar nestas actividades, e dar resposta positiva aos convites que nos queiram endereçar, tudo em nome da mensagem que no fundo o Dia Mundial da Água pretende transmitir e que desejamos que ecoe ao longo de todos 365 dias do ano.

Carlota Pimentel

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