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Cesto da Gávea: Crepúsculos e auroras

Na sucessão dos dias e das noites, existem fases de transição que se convencionou designar por crepúsculo, se do dia para a noite, ou aurora, se da noite para o dia. Na literatura, estas fases foram utilizadas por autores de renome para obras notáveis, de que “O crepúsculo dos deuses/Gotterdammerung”, a ópera de Richard Wagner, ou “Antes do amanhecer/The hour before the dawn”, um livro de Sommerset Maugham que li há muitos anos, são exemplos significativos. Na ópera wagneriana, o crepúsculo conduz ao apocalipse, num trágico final; no livro de Maugham, pelo contrário, a mensagem é de esperança, expressa na frase final “haverá sempre uma Inglaterra”.Se na célebre ópera de Wagner tudo termina nas chamas do apocalipse, no menos conhecido livro de Maugham (publicado em 1942 e que versa a desgraça da I Guerra Mundial) ainda há lugar para a luz. Talvez porque na Europa se repetem os erros que originaram as duas guerras mundiais – 1914-18 e 1939-45 – ou porque as experiências dos anos passados no Parlamento Europeu me permitiram uma visão mais nítida da realidade europeia, temo que estejamos a aproximar-nos da altura em que é preciso reconsiderar os caminhos até agora trilhados.
Caminhos que Portugal não percorreu totalmente como deviam, esperando que a “árvore das patacas” da solidariedade comunitária fosse inesgotável. Nos últimos anos esbanjaram-se e continuam a esbanjar-se milhões de euros “ad hoc”, em vez de se investir segundo uma planificação a médio e longo prazo, daquelas que nos permitissem descortinar onde iremos estar lá para 2035. Certamente não será com sucessivos actos eleitorais, por mais democráticos que sejam, que uma verdadeira Democracia conseguirá consolidar-se, num mundo onde as prioridades económicas ditam as regras do jogo. Mais ainda quando tivemos, a partir do início do corrente século, umas governações que nos deram exemplos daquilo que se não deve fazer. Os consulados dos Primeiros-Ministros José Sócrates e António Costa são mostra evidente desse navegar à vista, cujas consequências ainda estamos longe de vislumbrar. O que sabemos, é que nem as maiorias absolutas lhes serviram de respaldo, apesar dos manás europeus. Portanto, quando ouvimos e vemos nas televisões, rádios, jornais e redes sociais o que se diz sobre as eleições nacionais, logo após o que se disse sobre as regionais açorianas, só devemos surpreender-nos com a dimensão da incompetência que grassa nos partidos políticos e não só neles. O que aconteceu com os votos oriundos da Europa e de fora dela, com relevo para os vindos do Brasil onde parece terem sido anulados mais de 1 milhão por razões perfeitamente evitáveis, demonstra uma inqualificável inadaptação aos novos tempos e novas tecnologias.
Por estas e outras razões semelhantes, o mundo vai paulatinamente caminhando para um crepúsculo democrático, potenciador de mais desigualdades, mais corrupção, mais violência e maior perda de valores referenciais. Nos nossos dias, o aumento do número de países submetidos a ditaduras e regimes autocráticos é significativo e em 2022, o ano de que se conhecem os dados mais recentes e fiáveis, 88 países, representando 70% da população mundial, eram autocracias. Sendo que o conceito de regime autocrático varia muito, indo desde a ditadura pura (caso da Coreia do Norte) às autocracias ditas “electivas”, onde o poder mais ou menos ditatorial se esconde por detrás de eleições controladas (caso da Rússia de Putin). Pelo meio, existem formas mais subtis, inclusive dentro dos Estados Membros da União Europeia, como se conhece na Hungria de Viktor Orban. Várias organizações internacionais, com relevo para o Pew Research Center, a Varieties of Democracy ou a Economist Intelligence Unit, vêm estudando a crescente ameaça que pesa sobre as democracias liberais, chegando à conclusão que existem actualmente 40 países em risco de deslizamento para regime autocrático. Num estudo de 2021, o Pew Center mostrou o grau de insatisfação dos cidadãos de 17 países democráticos, onde a Espanha encabeçou a lista, com 86% da população a exigir uma reforma total (54%) ou parcial (32%) do sistema político, seguida da Coreia do Sul e da Itália e os Estados Unidos em 3º lugar, com 42% pedindo alteração total do sistema e 43% exigindo grandes mudanças. A campeã da satisfação com o seu sistema político é a Nova Zelândia, com apenas 24% a pedir mudanças (só 3% favoráveis a uma reforma total). Considerando que a Nova Zelândia está nos antípodas dos Açores e é um importante produtor mundial de leite e lacticínios, talvez fosse o momento para uma visita de estudo de alguns dos nossos parlamentares, sobretudo daqueles que se julgam senhores de toda a verdade.
Seria bom aprender com outros, onde as políticas e os políticos servem as populações e não os grupos partidários, evitando a triste figura que agora fazem, aterrorizados com o facto da democracia que construíram ao longo de 50 anos, originar agora opositores que qualificam de fascistas e xenófobos. Quem semeia ventos, colhe tempestades, diz o ditado popular; e depois da noite, virá sempre uma aurora luminosa.

Vasco Garcia

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