tinha comigo o poema ainda
por escrever
e ouvia-o zurzindo-mepelo
tempo perdido
enquanto viajava por outras épocas
nas vozes
de velhos poetas que se agigantavam
nos lugares
por onde o meu olhar se detinha
e logo desfalecia.
(José António Gonçalves)
Eu estava na India, caminhava por dentro de uma multidão colorida que se arrastava, para um daqueles lugares onde a beleza se explica no olhar que se fixa para que se prolongue a emoção que se vive.
Taj-Mahal. Foi aqui neste lugar tão emblemático que o Rui Sá me deu a notícia da morte do poeta José António Gonçalves. Eu não queria acreditar, tanto mais que entre nós, os dois, unia-nos uma amizade, desde os tempos em que, ambos, trabalhávamos na redação do “Jornal da Madeira”. No tempo, em que os nossos textos eram submetidos aos lápis azuis da censura e nós, às vezes, fintávamos os censores. Já então achávamos não só falta de liberdade, mas também um ato de submissão a censores que, em cada linha, descobriam, segundo as suas interpretações, o que lá não estava. Este ambiente que se vivia na força de uma juventude frustrava-nos e revoltava-nos.
O José António Gonçalves quando entrava na redação trazia alegria aquela sala enorme, na Rua do Seminário, onde o soalho rangia, quando os nossos pés calcavam as tabuas. Sempre à espera que a formiga branca as fizessem cair …. aliás, ele tinha o dom de tornar alegre o que era triste e de colorir a escuridão. Escrevia com uma facilidade tremenda e sempre que se lhe pedia um texto, ele produzia-o em minutos.
Realmente a sua prosa tinha poesia, por isso, as suas reportagens tinham a honestidade da informação e a força da sua sensibilidade; o seu sentir, o seu pensar.
Com a sua forma irreverente de ser, que lhe dava a liberdade de pensar e de ser frontal, conquistava os Jornalistas mais velhos, com os quais confraternizava. O meu saudoso pai, então “redator principal”, tinha-lhe admiração e achava-lhe imensa graça, quando ele se ponha na redação a contar anedotas picantes. É preciso não esquecer que era um Jornal católico. Os anos corriam velozmente. Os anos enchíamo-los de vida, porque nos em tertúlias, nas mesas dos cafés, reuníamo-nos para falarmos de livros e de escritores. À noite embebedávamo-nos na alegria das canções (que ele poeta cantava) ou então, os poemas que a Maria Aurora dizia na força daquela sua voz que entrava em todos nós ou ainda no gargalhar que se diluía no fumo dos cigarros de gente que nos ouviam. Éramos então personagens das noites da zona velha e, assim fortalecíamos as nossas amizades. Tornávamos as noites mais divertidas e divulgávamos os poetas e as suas poesias, a uma população que não tendo títulos académicos, ouvia-nos atentamente e, curiosamente pedia-nos que disséssemos os poemas.
O José António escreveu muitos livros de poesia, participou em inúmeras coletâneas, enriquecendo-ascom os seus poemas. Tem o seu nome ligado a uma grande diversidade de iniciativas literárias.
Colaborou em vários programas na rádio, na televisão.
José António Gonçalves é um nome incontornável do panorama cultural do país e da Madeira.
Considero-o um dos grandes poetas, pela qualidade ebeleza da sua poesia; pela forma brilhante como juntava as palavras e delas fazia mensagens verdadeiramente mágicas. Os seus poemas são de uma força arrebatadora.
A título póstumo, a Câmara Municipal do Funchal, homenageando-o lançou, durante a Feira do Livro, alguns dos seus poemas, reunidos num livro intitulado: À Luz dos Olhos das Borboletas, uma organização de seu filho Marco Gonçalves, que é também o autor da capa do livro: uma bonita homenagem a sua mãe, Gilda.
O título do livro é já em si de uma beleza poética que nos desperta, logo de imediato, para o conteúdo. Aí encontramos o poeta no seu versejar apaixonante inconfundível, na grandeza da sua alma. Alguém que amou a vida e dela fez um percurso poético, cheio de tantas amizades.
Manuel Frias Martins, autor do Dicionário da poesia portuguesa, uma voz autorizada da cultura do nosso país, disse:“ O que hoje sei é que José António Gonçalves é indiscutivelmente um poeta do mundo, da cultura e do futuro de uma língua portuguesa que só os verdadeiros poetas sabem amar e devolver em amor. E isso me basta para sabê-lo vivo sempre que houver alguém disposto a admirar alguma da melhor poesia escrita em português.”
o Incêndio
a força
da chama
Inaugurou o incêndio
do teu olhar
houve
um instante
de água
parecendo apagar
o lume
era
uma
lágrima
essa lágrima
porém
reacendeu de repente
a devastação
de um incêndio
ainda maior
eis assim
o fogo do ciúme
a consumir toda a planície
onde semeou
um dia verde
de primavera
o amor
Obrigado, Marco, por trazeres ao público esta maravilha de poemas arrancados do silêncio das gavetas. Espero que reúnas outros poemas “do teu pai” para que possamos, à luz dos Olhos de outras Borboletas desfrutarmos do poeta que não morreu, por que vive na memória daqueles que tanto o admiram, pela sua invulgar personalidade, pela sua alegria, por aquele seu olhar vivo sempre atento, onde nasciam e navegavam os seus poemas. Aquele olhar que trazia em si o amor por ele tão proclamado.
João Carlos Abreu