Ao longo dos seus 10 anos de existência, o projecto RARA (Residência de Artesanato da Região Açores) tem investido no artesanato regional através da troca de conhecimentos entre artesãos locais e designers internacionais e do uso sustentável de matérias-primas endógenas, como a criptoméria e o vime. O seu compromisso é o de que continuar a trabalhar para afirmar a “prática artesanal como uma profissão de futuro”. Neste momento, estão a organizar a 10ª edição da residência, que irá acontecer em Ponta Delgada, de 15 a 27 de Julho. “Desta vez contaremos com um colectivo de designers espanhóis e uma designer franco-mexicana, que irão colaborar com os artesãos residentes Alcídio Andrade e Horácio Raposo, e ainda com um projecto recente, MUSA Azores, que tem com objectivo potenciar o uso sustentável e socialmente inclusivo de um recurso importante dos Açores – a bananeira regional”.
Correio dos Açores – Pode falar um pouco sobre o percurso que levou à criação da Residência de Artesanato da Região dos Açores e como é que esta se transformou numa marca própria?
Mariana Lopes (Coordenadora do projecto RARA) – A RARA – Residência de Artesanato da Região dos Açores, é um projecto de produção contínua da Anda&Fala – Associação Cultural, iniciado em 2014 no contexto do seu Walk&Talk – Festival de Artes. Engloba duas vertentes complementares: residências artísticas anuais e comercialização dos produtos resultantes desse momento sob uma marca própria.
As residências propõem a intersecção entre designers de diferentes geografias e artesãos açorianos, cruzando técnicas tradicionais e matérias-primas endógenas com diferentes modelos conceptuais, possibilitando assim a transição para novos suportes e produtos. Partiu de um desafio feito pela Direcção do festival ao designer, director criativo e fotógrafo Miguel Flor em 2014, que desde então tem assumido a curadoria das residências. Ao longo das suas nove edições, oito em São Miguel e uma em Santa Maria, a residência contou com a participação de 26 criativos/colectivos de 7 nacionalidades, 17 artesãos/entidades de produção artesanal açorianas, utilizando materiais como a madeira de criptoméria, as fibras vegetais (vime e espadana), cerâmica, barro, escama de peixe e técnicas como a tecelagem e o bordado.
O carácter da primeira edição, em 2014, foi bastante experimental e circunscrito. Na segunda e terceira edições, a escolha dos participantes passou a ser mais ambiciosa, introduzindo também mais técnicas artesanais. As edições de 2017 e 2018 tiveram o apoio da Embaixada dos Estados Unidos da América, o que possibilitou a vinda de artistas criativos deste território, resultando num momento de expansão máxima da residência, assim como de experimentação e envolvimento de um maior número de áreas criativas. A partir de 2019, a escolha dos participantes afunilou para formas mais atentas de pensar os objectos. Nesse sentido, passaram a ser convidadas apenas duas pessoas criativas/dois colectivos e exploradas apenas duas técnicas artesanais.
Desde 2020 houve uma grande mudança na estrutura e plano de actividades da Anda&Fala – Associação Cultural, que conta agora com um programa continuado e um espaço sede: a vaga-espaço de arte e conhecimento, em Ponta Delgada.
A Residência de Artesanato da Região Açores ganhou autonomia enquanto projecto desenvolvido no contexto do Programa de Residências Artísticas da associação e pretende-se que as próximas edições de residências tenham um período de trabalho estendido, de forma a potenciar a investigação, conceptualização e execução dos projectos. Concretizou-se também a vontade de estender o projecto a outras ilhas, com a extensão da Residência de Artesanato a Santa Maria, no ano que passou. Cada residência culmina num programa público que contempla uma exposição/apresentação dos resultados finais, sendo também uma oportunidade para promover conversas sobre design, economia, colaboração e ecologia.
Embora a vertente de comercialização dos produtos estivesse presente como intenção desde a primeira edição da residência, tal nunca foi possível devido à falta de recursos para dar esse passo. Foi devido à reformulação da estrutura da Anda&Fala – Associação Cultural e ao acesso a mais recursos humanos e financeiros possibilitado pelo Apoio Sustentado quadrianual da DGArtes que este passo foi finalmente concretizado em 2023. Procedeu-se à inventariação, documentação e análise da viabilidade de produção e comercialização dos quase 200 protótipos produzidos ao longo de 9 edições. O catálogo inicial de comercialização da marca apresenta cerca de 50 peças, cuja receita permitirá promover a actividade dos artesãos e validar a continuidade anual da residência.
O que distingue a Residência de Artesanato da Região Açores no mercado de artesanato e design contemporâneo da Região?
Os processos de transformação da matéria-prima em objectos que servem necessidades específicas, sejam elas utilitárias ou estéticas, estão sempre em constante transformação. No caso particular dos processos e produtos artesanais importa questionar a validade da sua preservação e de que maneira ela poderá ser feita. De certa forma, a razão pela qual estes processos foram criados e desenvolvidos, e a sua consequente materialização em objectos, deixou de ter um lugar de destaque na sociedade contemporânea. Um dos objectivos da Residência de Artesanato da Região Açores é perceber como podemos reenquadrar tanto o processo como os objectos, de modo a que haja um sentido de continuidade e, ao mesmo tempo, de evolução. Como preservar o conhecimento destas técnicas e evitar que desapareçam ou simplesmente se tornem estagnadas e associadas a uma certa folclorização e romantização dos saberes e modos de vida tradicionais. Estes saberes foram determinantes na vivência do território açoriano e na forma como se desenvolveu, sendo que são bastante complexos e envolvem não só uma dimensão prática, mas também dimensões comunitárias, sociais, culturais e artísticas.
O que distingue a RARA é o questionamento dos modelos existentes e a reflexão sobre o que poderá ser o artesanato na sociedade contemporânea, através de um modelo de pesquisa prática que se materializa nas residências, onde os criativos/designers podem compreender o território, os materiais a as técnicas e os artesãos possam ter contacto com processos criativos que lhes permitam inovar na sua prática, perceberem a potencialidade do seu trabalho e encontrarem reconhecimento e valorização dos seus saberes, afirmando que o que fazia parte da vida de outrora tem lugar no quotidiano de hoje. Uma das dificuldades que encontramos reside no facto destes ofícios não estarem a ser transmitidos às gerações seguintes. Por um lado, a economia dos jovens não depende destes meios de subsistência e, por outro, há o facto de muitos descendentes não sentirem vocação/razão para continuar com estes ofícios. Mas, para além do trabalho importantíssimo desenvolvido pelo CADA – Centro de Artesanato e Design dos Açores, com quem a RARA mantém uma relação próxima, têm-se formado pequenos grupos e associações por pessoas interessadas em manter vivos estes saberes,
Um dos objectivos que também distinguem a Residência de Artesanato dos Açores é a tentativa de afirmação do artesanato como uma profissão de futuro.
Como é que a relação entre artesãos açorianos e designers/criativos internacionais evoluiu dentro do projecto, e de que forma é que estas colaboração se reflectem nas peças finais?
Ao longo das nove edições da residência trabalhámos com diversos artesãos e técnicas. Os primeiros anos foram pautados por uma componente mais experimental, em que se tentou perceber quais seriam as colaborações que resultariam melhor e, dentro do universo disponível em termos de técnicas e materiais, quais deles se poderiam alinhar mais com os objectivos do projecto.
Por um lado, os artesãos apresentavam uma resistência à inovação, por outro os designers/criativos desconheciam as técnicas e os materiais. Com o passar dos anos e devido ao fato de mantermos colaborações com os mesmos artesãos, o processo foi-se tornando mais fluído. A sexta edição da residência, em 2019, marcou um ponto de viragem na escala e no critério de escolha dos participantes – passamos a trabalhar apenas com vime e criptoméria e com designers de equipamento/produto -, o que permitiu mais tempo para desenvolver as peças e um foco na materialização dos objectos, o que resultou num processo mais atento e cuidadoso, que se reflectiu na qualidade das peças finais.
Qual o papel do uso de matérias-primas locais, como o vime e a criptoméria, na identidade e sustentabilidade das criações da RARA?
Embora tenhamos trabalhado com outros materiais e técnicas, ao longo dos últimos anos percebemos que, para estarmos alinhados com questões de sustentabilidade e economia circular, só nos interessaria continuar a residência com materiais produzidos nos Açores e com uma cadeia de produção/transformação local. Nesse sentido, o vime e a criptoméria são materiais de excelência. Para além de estarem muito presentes nas técnicas artesanais e fazerem parte do património cultural e identidade açoriana, no caso específico do vime ele é maioritariamente plantado, colhido, cozido e trabalhado pela mesma pessoa. Na ilha de São Miguel, a cozedura dos vimes é feita principalmente nas caldeiras geotérmicas das Furnas, um processo único e preservado ainda pelos produtores locais, como é o caso dos artesãos João e Alcídio Andrade, que colaboram com a RARA desde a primeira edição.
Até onde chegaram as vossas peças e qual a vossa projecção a nível dos mercados nacionais e internacionais?
O plano de produção e comercialização da Residência de Artesanato da Região Açores prevê um modelo a ser desenvolvido durante o quadriénio 2023-2026, sendo que o primeiro ano foi focado no teste de calendários e quantidades de produção, na criação da identidade da marca e sua comunicação (imagem visual e criação de storytelling, criação de uma página web dedicada, presença nas redes sociais, parcerias com canais de comunicação especializados), na criação de parcerias com lojas e projectos e na divulgação do projecto em diferentes plataformas, incluindo três apresentações da marca em Ponta Delgada, em Lisboa e no Porto.
A recepção tem sido muito positiva e, neste momento, temos as peças à venda em Ponta Delgada (na loja Azores in a Box), em Lisboa (na DEPOZITO); no Porto (na Cardo Objectos e na Flórida). Para além destas lojas físicas, temos algumas peças disponíveis no nosso site: www.raraazores.com.
A nível internacional, este ano há a possibilidade da criar uma parceria com um espaço em Fall River, levando a RARA até às comunidades açorianas da costa Este dos EUA, assim como a possibilidade da RARA participar numa das mais importantes feiras internacionais de decoração e design, em França.
Como tem sido a interacção com o público, tanto local como internacional, e que feedback têm recebido acerca das peças e do impacto cultural do projecto?
Hoje em dia há um interesse renovado no artesanato e no seu cruzamento com outras disciplinas, nomeadamente o design. Tanto a nível nacional como internacional, há muitas identidades que se dedicam ao estudo, ao mapeamento, à divulgação à preservação do artesanato na sociedade contemporânea. Quando a Residência de Artesanato da Região Açores começou, este interesse ainda estava num estado embrionário e sem dúvida que o projecto tem ganho outra dimensão também pela circunstância de interesse geral no artesanato. A nível local, o projecto foi sempre muito bem recebido pelo público. E, no final de 2022, fomos, pela primeira vez, convidados a levar a RARA para ‘fora de portas’ com a participação no projecto de residências inversas RARA-ARAR, parte do Lava Circular – Circuito Cultural Interdisciplinar, na ilha de El Hierro, nas Canárias. O que nos levou também a reconhecer a importância da comunicação e da troca de saberes entre territórios ultraperiféricos, que partilham certos constrangimentos que foram parte essencial do seu desenvolvimento territorial, social e comunitário. No final de 2024 está prevista a segunda edição da RARA-ARAR.
Existem algumas peças que tiveram especial destaque?
As peças mais queridas da Residência de Artesanato da Região Açores são, sem dúvida, as baleias em madeira de criptoméria desenvolvidas na residência de 2016, resultado da colaboração entre o artesão Horácio Andrade e os Pedrita, um estúdio de design baseado em Lisboa. Destaca-se também a peça ‘Laranja Pendular’ que resultou da colaboração entre o artesão Horácio Raposo, o artesão Alcídio Andrade e o colectivo baseado em Lisboa MACHEIA. A peça em questão é uma fruteira em madeira de criptoméria com uma pega em vime, que faz alusão ao ciclo da laranja nos Açores, razão pela qual se diz que a criptoméria foi introduzida no arquipélago, para servir de matéria-prima para as caixas de transporte da fruta.
Quem são os artesãos residentes da RARA?
Ao longo das 9 edições, a RARA contou com a participação de 17 artesãos/entidades de produção artesanal açorianas. Neste momento, trabalhamos em São Miguel com o artesão Alcídio Andrade no vime, e o artesão Horácio Raposo na madeira de criptoméria. Ambos colaboraram com a Residência de Artesanato desde 2015.
Como descreve o impacto que este projecto tem tido na comunidade de artesanato dos Açores, em especial no que diz respeito ao reconhecimento e valorização do artesanato tradicional?
O projecto tem vindo a reforçar a sua vocação enquanto espaço de investigação em design e artesanato, agora com um maior foco na sustentabilidade do projecto e nos processos de produção, distribuição, comercialização e marketing. É um processo complexo que envolve muitas etapas e investimento, que só poderá ser feito em colaboração com todos os intervenientes – Anda&Fala – Associação Cultural, designers, artesãos, mercado retalhista – e ainda criando parcerias com entidades que desenvolvem o seu trabalho na mesma área. Neste sentido, a RARA conta com o apoio e a consultadoria do CADA – Centro Artesanato e Design dos Açores, organização governamental cujo âmbito de acção compreende a certificação dos produtos artesanais partindo da criação de uma rede de artesãos certificados, o apoio financeiro aos artesãos, a aposta na formação profissional, e a promoção do artesanato açoriano. A RARA procura expandir o campo de acção do CADA, com o objectivo de criar um projecto de inovação e economia circular que beneficie todos os intervenientes, produzindo conhecimento e valor acrescentado a todo o artesanato açoriano e aos seus artesãos e afirmando a prática artesanal como uma profissão de futuro. Neste sentido, o impacto surge a partir da visão contemporânea de práticas tradicionais, e do entendimento que não se encontram estagnadas, ao mesmo tempo que a promoção nacional e internacional da RARA contribui para que haja um maior interesse na produção artesanal açoriana por parte de outros mercados.
Quem são os responsáveis pela curadoria das edições e como funciona o processo de selecção dos participantes?
Desde a primeira edição que o responsável pela curadoria das residências é o designer, director criativo e fotógrafo Miguel Flor, que convidou todos os anos designers diferentes. Nos primeiros anos, o processo de selecção passou por perceber quais as técnicas e artesãos que se encontravam disponíveis na ilha de São Miguel e a partir dessa informação convidar criativos/designers que se pudessem adequar a uma colaboração. Nos últimos anos, a escolha afunilou para apenas dois artesãos e para dois designers de produto, de forma a criar um tipo de dinâmica mais cuidada e desenvolvida com mais tempo.
Quais foram as parcerias e os momentos mais marcantes do vosso percurso? Têm alguma história que os tenha marcado particularmente?
Um dos momentos mais marcantes — para além do cruzamento emotivo da primeira edição — foi a 9ª edição da Residência de Artesanato dos Açores, em 2023. Pela primeira vez conseguimos realizar a residência fora de São Miguel e fomos incrivelmente bem recebidos em Santa Maria. A residência juntou as artesãs marienses Aida Bairos e Marina Mendonça aos designers continentais Ivo Oliveira Rodrigues e Margarida Lopes Pereira sob a mentoria do curador Miguel Flor, e contou com o apoio do município de Vila do Porto. Ao longo de duas semanas, os participantes puderam entrar em contacto com o trabalho das artesãs e conhecer as diferentes técnicas e materiais disponíveis, assim como o território de Santa Maria. As particularidades da ilha, os seus costumes e saberes, a simpatia e abertura das suas gentes foram ponto de partida para dias de trabalho intenso, onde ideias e esboços iniciais se foram adaptando às diferentes técnicas de preparação e maneiras de trabalhar o barro, a espadana e vime. O espaço de trabalho recebeu visitas de amigos, vizinhos e curiosos e também dos ATLs e CACI da Santa Casa de Misericórdia de Vila do Porto, acolhendo também uma apresentação pública e uma exposição dos resultados.
Quais são os próximos projectos que têm planeados?
Neste momento, estamos a organizar a 10ª edição da residência, que irá acontecer em Ponta Delgada, de 15 a 27 de Julho. Desta vez contaremos com um colectivo de designers espanhóis e uma designer franco-mexicana, que irão colaborar com os artesãos residentes Alcídio Andrade e Horácio Raposo, e ainda com um projecto recente, MUSA Azores, que tem com objectivo potenciar o uso sustentável e socialmente inclusivo de um recurso importante dos Açores – a bananeira regional.
Daniela Canha