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“A cidade que temos hoje vai-se radicalizando”

Peço de empréstimo ao bispo de Angra, mais do que a frase a ideia que ela sugere e que foi partilhada no inicio da Semana Santa, em Domingo de Ramos, quando celebramos a entrada triunfal de Jesus na Cidade Santa, Jerusalém, sentado no jumento, vindo de Betânia, lugar onde viviam Lázaro, por Ele ressuscitado e as duas irmãs Maria e Marta, figuras que tanto aprecio e com as quais tanto me identifico.
Jesus entrou em Jerusalém aclamado pela multidão, como todos os líderes o são. Mas Jesus não dizia o que todos os líderes costumam dizer só para impressionar e ganhar mais apoios. O que ele dizia e continuava a dizer era incómodo para os que tinham poder – os sacerdotes e os escribas-, perturbador para os fariseus, porque não percebiam e sedutor para os que o seguiam, porventura todos aqueles que nada tinham, mas também os mais vulneráveis e que mais facilmente se deixam entusiasmar, ora por uns ora por outros e quando chegam ao momento difícil desistem, ainda que cheios de vergonha, como fez Pedro.
A numerosa multidão estendeu os seus mantos no caminho, enquanto outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam no caminho.
As multidões na frente e atrás dele clamavam: “Hosana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!”
Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou alvoroçada, e diziam: Quem é este?
E as multidões respondiam: Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia.
E, diziam-no porque o anuncio dele era diferente: era uma mensagem de fraternidade e de amor (mesmo aos inimigos) e, por causa deste amor e das criticas mais ou menos explicitas aos poderes político e religioso da época foi preso, sumariamente julgado e condenado à morte por crucifixão.
Hoje, infelizmente os anúncios que se fazem nas cidades e que merecem o aplauso e a aprovação das grandes massas, cada vez mais em maior número, são os que anunciam não novidades mas aquilo que é o senso comum da política, que nos tem mostrado ao longo da história que quanto mais em linha com o designado “mainstream”, vulgo conversa que agrada a todos mas não serve a ninguém, tanto melhor. Geralmente, prometem o melhor de todos os mundos possíveis, num exercício de facilitismo irresponsável que contenta as massas mas resolve pouco.
A Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), órgão dependente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), alertou no dia 15 de março para as desigualdades que aumentam na sociedade, “fazendo com que cada vez menos pessoas tenham mais, e mais pessoas tenham menos”.
Na nota para a Quaresma, intitulada “Pensar e agir com liberdade e esperança”, o órgão liderado pelo juiz Pedro Vaz Patto sublinha que se está a viver este período que antecede a Páscoa “no meio de muitas inquietações”.
“A Humanidade conseguiu alcançar níveis de progresso que deveriam possibilitar uma vida mais justa e mais fraterna para todos e, no entanto, vemos como essa vida não é uma realidade para um número cada vez maior de pessoas. As desigualdades não só persistem como aumentam, fazendo com que cada vez menos pessoas tenham mais, e mais pessoas tenham menos”.
Um novo governo vai ser indigitado e tomará posse nos dias que se seguirão levando ao parlamento um programa para governar nos próximos quatro anos, tempo de duração de uma legislatura para a qual escolhemos, há pouco mais de duas semanas, os nossos eleitos.
O tempo que vivemos exige grandes e importantes decisões que, para não hipotecarem o futuro, sejam respostas responsáveis, claras e que respondam não às exigências de todos, mas áquilo que é razoável para responder com equilíbrio às reivindicações de justiça, de igualdade de tratamento, com critérios sérios e claros, sem deixar ninguém para trás. Esse deve ser , aliás, o grande e principal sentido de qualquer opção política que se venha a fazer.
A vida humana, que é sagrada e a sua dignidade inviolável, implica a paz, muitas vezes ameaçada pela guerra, pela violência e pelas constantes ameaças à liberdade que vêm dos mais diversos espectros sociais e políticos. O Homem é um ser social, com direitos e deveres. Dos primeiros contam-se o direito ao trabalho, à saúde e à educação, os mais básicos; dos deveres contam-se a responsabilidade que advém de cidadania ativa, expressa na participação e numa conduta que tenha sempre em conta o bem comum, sendo, para mim absolutamente claro que a economia está ao serviço das pessoas e não o contrário e todos os trabalhadores têm direito a um trabalho digno, seguro e bem remunerado. Aos poderes públicos compete, como lembra o número 26 da Constituição Conciliar GuadiumetSpes, desenvolver o bem comum que é “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”.Naturalmente que não é só do homem que falo. Deus colocou o homem à frente das realidades terrenas para as cuidar, através do respeito pelas outras criaturas, numa perspetiva de que ninguém é dono mas sim administrador. Não vou desenvolver mais aquilo que os documentos da Igreja revelam e que tantos de nós vamos lendo, á medida das nossas possibilidades, num exercício de conversão permanente.
Levantar a voz, gritar mais alto, através de slogans que encaixam bem na cultura dominante, da resposta rápida, que parece ir ao encontro de todas as reivindicações, não é o tom para as decisões que se impõem, que embora devam ser rápidas têm de ter em conta o bem comum e não apenas a satisfação de interesses de grupos particulares.
No dia Mundial dos Pobres, assinalado em 2022, o Papa Francisco exortou os fiéis a não se deixarem enganar pelo “populismo” ou pelos “falsos messias”, que “apregoam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos”.
“Não nos deixemos seduzir pelos cantos de sereia do populismo, que explora as necessidades do povo propondo soluções muito fáceis e precipitadas. Não sigamos os falsos ‘messias’ que, em nome do lucro, apregoam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos, condenando os pobres à marginalização”, disse ressalvando que a melhor resposta é “construir um mundo mais fraterno”, rompendo com “aquela surdez interior que nos impede de ouvir o grito abafado de dor dos mais fracos”.
E, concluía: “Vivemos em sociedades feridas e assistimos (…) a cenários de violência, injustiça e perseguição. Além disso, devemos enfrentar a crise gerada pelas alterações climáticas e pela pandemia, que deixou um rasto de desconforto não apenas físico, mas também psicológico, económico e social”, explicou Francisco recordando a “desgraça da guerra” na Ucrânia a que conseguimos juntar a guerra em Israel e na Palestina, em África e em tantos outros lugares martirizados pela ganância dos homens, alguns deles, até, a falar em nome de Deus.
Estamos a menos de um mês dessa data feliz que foi o 25 de abril de 1974. O “chamamento para a liberdade constitui um vigoroso apelo que não se pode reduzir a um mero acontecimento, mas que se constrói e amadurece ao longo do caminho”, lembrava a Comissão Nacional de Justiça e Paz no documento já referido.
Acompanhamos a pergunta: que país construímos e que país queremos construir daqui para a frente.
Gosto da ideia expressa por D. José Tolentino de Mendonça aquando das comemorações do 10 de junho de 2020 de que “Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele”.
O cardeal português fazia a analogia com a casa, lembrando que quando cada um constrói a sua casa está a contribuir (ou pelo menos deve pensar e fazer assim!) a construir a cidade. E “quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes”.
Na gritaria que vamos ouvindo, na radicalização da cidade, do país e do mundo, o que ouvimos é sobretudo a defesa do grupo. Infelizmente, hoje, o grupo é cada vez mais individual; pensa toda da mesma maneira e tem pouca capacidade para ouvir o outro grupo, para o compreender e aceitar. E, em vez de construirmos uma sociedade estamos a construir guetos, grupos de costas uns para os outros, em que o denominador comum é a satisfação do interesse do grupo, sem pensar na sociedade, sem pensar no país, sem pensar no mundo. Será sempre triunfante a lei do mais forte, mas não será certamente a lei do mais justo. Às vezes gostava que não existisse o algoritmo, nem redes sociais, nem especialistas, ainda que não sejam humanos, nessas redes sociais.
Se eu não gosto do progresso? É claro que gosto. O que não gosto é que ele seja pouco solidário, embora me vá satisfazendo nos meus pequenos consumos.
Lembro-me de São Francisco Marto e da sua Irmã Jacinta, que tendo aprendido na escola de Maria, queriam sempre consolar a Deus, fazendo a sua vontade. Não é que Deus precise exatamente desse consolo, mas há quem precise e de cada vez que o fazemos a algum dos pequeninos a ele fazemos também. E os pequeninos votam (às vezes) mas não fazem parte do grupo mas cada vez mais da maioria.
Feliz e santa Páscoa. Se não for Ele ninguém nos salvará, ainda que alguns tentem fazer a sua parte.

Carmo Rodeia

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