“A Páscoa é o centro da História porque é a derrota definitiva do poder da morte. É o centro da liturgia porque para ela converge toda a celebração da vida cristã e é o centro da espiritualidade. É à luz da Páscoa de Jesus que entendemos e superamos as limitações e derrotas da vida, e serenamos porque percebemos que a última palavra na vida – tanto pessoal como colectiva – será de Deus e será sempre de acolhimento.” Estas são as palavras do Padre Manuel Carlos Alves, Reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, no Domingo de Páscoa, dia em que se celebra a ressurreição de Jesus Cristo.
Correio dos Açores – Enquanto sacerdote, que importância atribui à Páscoa?
Cónego Manuel Carlos Alves (Reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres) – A Páscoa é o centro da História porque é a derrota definitiva do poder da morte. É o centro da liturgia porque para ela converge toda a celebração da vida cristã e é o centro da espiritualidade. É à luz da Páscoa de Jesus que entendemos e superamos as limitações e derrotas da vida, e serenamos porque percebemos que a última palavra na vida – tanto pessoal como colectiva – será de Deus e será sempre de acolhimento. Às vezes, podemos correr o risco de sermos demasiado simplistas, isto é, recordamos a paixão e a morte de Jesus, o sepulcro vazio e depois, ao passar para a sua ressurreição, podemos esquecer-nos facilmente da Cruz, não a cruz enquanto ícone do sofrimento como se fosse algo masoquista, mas a cruz como salvação.
A vida nova que nos vem da ressurreição de Jesus e do baptismo terá de ser sempre uma nova forma de estar na vida. São Paulo fala do “homem velho” que entrou no túmulo com Cristo para daí ressurgir com Ele um “homem novo”. A Páscoa é isto: uma transformação pessoal criativa para que essa vida nova possa efectivamente surgir.
Que alterações se têm registado nos cristãos relativamente à Páscoa?
Nós aprendemos muito mais com os olhos do que com os ouvidos, e as cerimónias do tríduo pascal privilegiaram muito a imagem e o sentimento. Hoje, a Palavra de Deus ocupa lugar central na liturgia e ilumina os gestos e as imagens. Há mais equilíbrio e foco no essencial.
A Quaresma prepara a festa da Páscoa, porque deve ser um tempo de interiorização, de purificação do nosso olhar sobre Deus, sobre os irmãos e sobre nós próprios.
Reconciliados e renascidos, renovamos as promessas do baptismo.
O que importa é que sintamos alegria pela ressurreição de Jesus porque é garantia da nossa própria ressurreição.
A Páscoa é também Sexta-feira Santa…
Em cada semana temos Sextas-feiras, há traições, violências, sofrimentos, angústias, mortes, mas também encontramos cireneus e uma Mãe que cuida de quem a ela recorre.
Há quem prefira viver no torpor da anestesia ou na bolha narcisista, em vez de encontrar razões de viver e deixar pegada na história. A esses só podemos dar testemunho da nossa fé e anunciar a presença do Ressuscitado entre nós, que Se coloca ao nosso serviço.
O sentido da Páscoa perde-se nos jovens que vivem a sociedade digital e de consumo? Como trazer estes jovens para a fé e para a convivência cristã?
A juventude é uma etapa da vida, de descoberta de horizontes e questionamento de valores e escolhas de caminhos. Muitos jovens são de elevadíssima qualidade humana, cultural e religiosa, que invejo. Outros nem tanto. Quer uns, quer outros não são frutos do acaso, mas consequência das acções e omissões da família, da Igreja e da sociedade.
O importante é que sejam genuinamente livres, verdadeiramente humanos e empenhados na construção de um mundo melhor. Deus passa por aí!
Não há que “trazê-los para a fé”, porque Deus não quer que ninguém O siga condicionado. É nosso dever partilhar o nosso entendimento dos mistérios da humanidade e propor a palavra de Deus como luz e sabedoria, evitando caricaturas. A fé brota da procura e do encontro. A fé é a resposta humana a um Deus que se entrega para salvar e iluminar.
Domingo de Páscoa é o Dia da Ressurreição de Jesus, tempo de um novo sentido de esperança, tempo de recomeço. Que mensagem deve ser espalhada neste dia?
A mensagem de sempre: Jesus vive, depois de ter sido morto por inveja, por desconfiança pela novidade do seu amor que desconcertou e abalou os pilares da cultura e da religião certinha, nos ritos e na forma.
É a vitória do amor; é o pórtico de uma vida nova que nos cabe viver e anunciar.
A Igreja tem tido dificuldade em lidar com a nova realidade da sociedade?
Igreja somos todos. Todos temos dificuldades em lidar com novas realidades da sociedade porque se apresentam como mais ou menos distantes da nossa matriz cultural ou religiosa, em que nos formamos. Sempre assim foi e será. O viés que a Sociologia detecta não acontece apenas entre culturas, pois todos ficamos datados e temos a tentação de apresentar a nossa visão das coisas como a ideal, a melhor.
Isto não é relativizar. Trata-se de assumir com humildade as limitações próprias e abrirmo-nos aos impulsos do Espírito, sempre novo, que não se demite nem se cansa de nos guiar para a verdade.
O Evangelho é sempre o mesmo – mas até as respectivas traduções são passíveis de aperfeiçoamento -, e o importante é nele encontrar luz para os desafios que a humanidade hoje enfrenta.
As divisões são sempre humanas, são sempre erros, têm sempre consequências, dilaceram o coração de Cristo. E muitas, passados muitos séculos, ainda estão activas e são fontes que alimentam o escândalo. O projecto de Jesus é para todos. Ele veio ao mundo para salvar todos e não só alguns. Por isso, a Igreja é para todos.
Com o novo Bispo, nota-se que está a ocorrer uma coesão da Igreja nos Açores com uma maior interligação entre paróquias e entendimento entre padres?
Fico “nas nuvens” quando amigos do continente me dizem que nos coube em sorte o melhor Bispo do país. O próprio cardeal D. Manuel Clemente fez questão de dizer “ele é muito bom”. Pode não ser rigorosamente assim, mas sinto-me orgulhoso na mesma!
D. Armando está todo nos Açores. A sua proximidade, simplicidade e assertividade são uma bênção para esta Diocese. A sociedade açoriana já percebeu que este Bispo é diferente. E manifesta apreço.
Mas esta não é hora para sermos espectadores. É hora de nos desinstalarmos e fazermos aquilo que tem de ser feito.
Sinto – e penso que sentimos todos, – a responsabilidade de tudo fazer para colaborar sem reservas nos seus esforços de dinamização e renovação da Igreja que está nos Açores.
As respostas às crises na Igreja açoriana, após concílio Vaticano II e após 25 de Abril, empobreceram-nos, destrunfaram-nos. Não podemos continuar a atribuir responsabilidades apenas às estruturas. É um círculo vicioso, que nos pode entreter, mas nada produz.
Num passado recente, perdemos uma oportunidade rara de renovação e aggiornamento ao escolhermos mal o calendário do Congresso Diocesano de Leigos. Não podemos perder outra.
É preciso sacudir os dias de nevoeiro e pessimismo e abrirmo-nos ao sol que nasce diariamente. Caminhemos todos. Juntos! Mesmo que ostentando cicatrizes.
Paróquias, laicado, clero, religiosos, movimentos e serviços pastorais: temos todos de “nascer de novo”, porque o tempo é sempre novo. E o pastor está já à porta à nossa espera.
Em sua opinião, o que levou as pessoas a afastarem-se da Igreja?
O nosso Bispo, no dia da Missa Crismal, reflectiu sobre esse assunto. A par da crescente modificação da sociedade, que se tem secularizado, se calhar não temos sabido acolher; não temos sabido ser coerentes entre aquilo que anunciamos e professamos e aquilo que fazemos. Cada um de nós pode até fazer o melhor que pode e sabe, mas no todo, no computo geral da Igreja, se calhar não tem sido suficiente.
“Vede como eles se amam”. Este testemunho, olhando para tantos de nós, se calhar não tem sido suficientemente encorajador para aproximar e manter as pessoas dentro da Igreja.
Por outro lado, se calhar não temos sabido ser o rosto de Jesus: o rosto que todos acolhe, que a todos abraça, sem fazer grandes perguntas e muito menos censuras. Vemos isso ao longo de todo o evangelho…
É aceitável dizer-se: sou católico não-praticante?
Para mim é tão aceitável como dizer-se “açoriano não-praticante”, “ciclista não-praticante” ou “padeiro não-praticante”. Não faz sentido! Habitualmente, usa-se a expressão “católico praticante” para aquele que participa assiduamente na vida litúrgica da comunidade a que pertence, nomeadamente na missa dominical. E o não praticante é aquele que apesar de aceitar formalmente a fé católica, alheia-se da vida da comunidade, reduzindo a fé a uma mera adesão intelectual, sem a dimensão comunitária que é fundamental na vida de um cristão.
O culto e a vida não podem ser separados.
Percebo que muitos dos valores cristãos são assumidos pela cultura e fazem parte da nossa cosmovisão, e que para muitos isso baste. Mas um cristão tem sempre razões para agradecer a Deus, para interceder junto de Deus pelos seus, para sonhar e se empenhar na transformação de um mundo em que ninguém se sinta excluído – a não ser que “a semente tenha caído entre espinhos ou em terra sem profundidade”.
Percebo também que na nossa história muitas questões não foram bem resolvidas e o desencanto daí decorrente é compreensível. Mas também acredito que pessoas adultas sabem (e devem) dialogar e juntar esforços para construir juntos um presente e futuro mais justo para todos. É este o sonho de Jesus a respeito de cada um de nós.
Carlota Pimentel