André Ponte, psiquiatra no Hospital CUF Açores, no HDES e no SALUS Centro Clínico, afirma, nesta entrevista, que aperturbação bipolar “é uma doença complexa que afecta, principalmente, o cérebro de uma pessoa”, que se caracteriza como a “doença do humor e da energia, com episódios de dois pólos.” Surge em média pelos 20 anos de idade e, segundo o médico, a história familiar “é talvez o mais importante, contribuindo com cerca de 85% do risco de desenvolvimento da doença.” O psiquiatra refere que ainda existe muito estigma “relativamente à doença bipolar”, o que se reflecte até na linguagem, “com a utilização deste diagnóstico de forma pejorativa”. Para André Ponte, “só falando mais sobre o assunto e desmistificando mitos comuns é que poderemos, enquanto sociedade, tornar um pouco mais fácil a vida para pessoas que já a têm suficientemente dificultada pela doença.”
Correio dos Açores – Que relevância atribui ao Dia Mundial da Doença Bipolar?
André Ponte (Psiquiatra) – O Dia Mundial da Doença Bipolar é uma oportunidade importante para educar e unir a comunidade em torno desta questão. Existe ainda muito estigma em volta da doença mental, o que é expectável, visto que há muito desconhecimento sobre o que é e como se manifesta. Momentos como este aumentam a consciencialização sobre o tema e dessa forma esperamos que ajudem também a reduzir o estigma.
O que caracteriza adoença bipolar?
De forma simples, a doença bipolar é uma doença do humor e da energia, com episódios de dois pólos, daí o nome bipolar. As pessoas podem ter episódios depressivos em que passam por períodos em que se sentem mais tristes, com menos energia, pensamento mais lento, com menos interesse em actividades que antes gostavam de fazer. Podem também ter episódios do pólo oposto, episódios maníacos ou maniformes, em que passam períodos com uma alegria desproporcional – às vezes chamada de euforia –, muita energia, aumento da velocidade do pensamento, diminuição da necessidade de dormir, distractibilidade aumentada e envolvimento em demasiadas actividades. Às vezes, existem estados mistos, com características de ambos os pólos. É importante explicar que estas oscilações não acontecem “de um momento para o outro”. Um episódio de mania dura pelo menos uma semana, podendo-se estender até um a três meses se não for tratado; um episódio depressivo na doença bipolar pode durar sensivelmente o dobro.
Quantas pessoas são afectadas peladoença bipolarna Região?
Do meu conhecimento, não existem dados sobre as estatísticas específicas da Região para esta doença. Estima-se que mais de 1% da população mundial sofra de doença bipolar. Se considerarmos critérios alargados para o diagnóstico, este número pode chegar até aos 2.4% da população. Claro que nem todos têm doença grave. Muitos têm quadros de gravidade intermédia ou ligeira. Se olharmos para os últimos censos, estamos a falar entre 2400 e 5700 pessoas nos Açores.
Qual é a causa dadoença bipolar?
A doença bipolar é uma doença complexa que afecta, principalmente, o cérebro de uma pessoa. É uma condição real – tão real quanto a diabetes ou a asma – e não resulta de uma falha de carácter ou uma fraqueza pessoal. Surge em média pelos 20 anos de idade e existem vários factores de risco para o seu desenvolvimento. A história familiar é talvez o mais importante, contribuindo com cerca de 85% do risco de desenvolvimento da doença. No entanto, não explica tudo. Se um de dois gémeos idênticos, com exactamente a mesma genética, tiver uma doença bipolar, não é obrigatório que o outro também a tenha. Existem, portanto, vários outros factores a contribuir para o desenvolvimento da doença. Lesões do sistema nervoso central, problemas na gravidez ou no parto, traumatismos cranioencefálicos, eventos stressores, principalmente em fases precoces da vida, são todos factores de risco. É importante relembrar que o consumo de canabinóides ou outras drogas na adolescência, uma altura em que o cérebro está especialmente vulnerável, aumenta muito o risco de desenvolvimento de doenças mentais de forma transversal. Todos estes factores poderão, posteriormente, em conjunto, gerar alterações permanentes a nível neuronal, alterar o funcionamento de vários circuitos cerebrais e gerar doença. Fica, obviamente, muito por dizer, visto que, como disse, este é um assunto complexo e há muito que ainda vamos descobrir.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é clínico e deve ser realizado por um psiquiatra. Alguns exames complementares de diagnóstico podem ser utilizados, mas têm normalmente a função de despistar outras doenças que possam explicar o quadro clínico do doente. O diagnóstico deve ser feito com base numa colheita de história clínica cuidada que permita perceber a evolução dos sintomas do doente. De qualquer das formas, muitas vezes só o seguimento ao longo de vários anos permite chegar ao diagnóstico. Segundo a literatura, o tempo médio entre a primeira manifestação da doença e o diagnóstico é de cinco anos. Outras doenças em concomitância ou um episódio depressivo como primeira manifestação da doença estão normalmente associados a um diagnóstico mais tardio.
Qual é o tratamento para a doença bipo-lar?
A doença bipolar é uma doença com alterações claras a nível cerebral e de evolução crónica, por isso, regra geral, o doente só estabilizará com tratamento farmacológico. A medicação que se utiliza será dependente da fase em que o doente se encontra, mas classicamente são utilizados estabilizadores de humor (o lítio talvez seja o mais conhecido) e também antipsicóticos (outras combinações permitem antidepressivos, mas tendencialmente não são usados). Assim como em outras doenças da medicina, como a asma ou a diabetes, o tratamento deve ser crónico e contínuo. A paragem da medicação aumenta muito o risco de episódio depressivo ou maniforme, sendo que muitas vezes pode agravar o prognóstico da doença. Independentemente disso, é importante reforçar que a medicação é eficaz e permite uma vida com o mínimo de descompensações possível.
Além da medicação, que outras terapias e actividades podem ajudar no controlo da doença?
O tratamento poderá ser iniciado com prescrição farmacológica, mas dever-se-á garantir que a intervenção é holística e há planeamento de intervenções psicossociais. Assim, a base do tratamento, para além da farmacologia, deverá assentar na adopção de estilos de vida saudável e psicoeducação. Esta psicoeducação tem o objectivo de dar informação sobre a doença ao doente e à sua família e, dessa forma, reduzir o estigma em relação à doença. Psicoterapias específicas como a cognitivo-comportamental, a terapia familiar ou mesmo a terapia interpessoal podem ter um papel importante para o doente consoante as situações. Permitem o desenvolvimento de estratégias que ajudem a prevenir ou reconhecer precocemente recaídas, ou, por outro lado, uma convivência com menos conflitos no seio familiar.
Qual a importância da adesão ao tratamento?
A adesão é um assunto de enorme importância e muitas vezes é ignorado pelos doentes ou familiares. Infelizmente, o estigma que a doença carrega faz com que o abandono terapêutico seja demasiado frequente e os doentes acabem por sofrer agudizações evitáveis. Isto é especialmente importante, não só pelos efeitos imediatos de cada episódio, mas também porque, a cada crise, o regresso ao grau de funcionamento (nível cognitivo) anterior fica mais difícil e a probabilidade de novos episódios torna-se mais alta.
De que forma a vida do paciente e da sua família são afectadas?
Episódios depressivos ou maniformes, especialmente estes últimos, podem causar danos profundos na vida de uma pessoa. São muitas as histórias de endividamentos, relações desgastadas ou problemas no trabalho que ouvimos, fruto de fases de descompensação da doença. Depois desses episódios, é comum a pessoa sentir um misto de culpa e arrependimento difícil de gerir. Não é fácil explicar que os actos realizados num determinado momento da vida não foram realizados de forma verdadeiramente livre. Estavam sob o espartilho da doença. E mesmo retornando ao seu estado habitual, é preciso lidar com as consequências dos actos no período descompensado, o que representa um desafio adicional.
Por outro lado, a doença bipolar é também responsável por alterações relevantes a nível da dinâmica familiar, gerando desgaste emocional e sobrecarga normalmente sobre os elementos mais próximos do doente. Os familiares e amigos podem sentir-se impotentes, frustrados ou mesmo ressentidos face ao comportamento do doente. Ainda assim, é importante distinguir a doença da pessoa e perceber que esta doença afecta muitas vezes a atitude e crenças do indivíduo. É crucial o apoio e compreensão dos mais próximos, no entanto, sem descurar o seu próprio bem-estar emocional.
Afirmou que ainda existe preconceito sobre esta doença psiquiátrica por parte da sociedade…
Existe muito estigma relativamente à doença bipolar e isso reflecte-se até na linguagem. Já todos nos deparamos com a utilização deste diagnóstico de forma pejorativa. Desde “orçamentos bipolares” a insultos entre pessoas, já ouvimos de tudo. No entanto, não passaria pela cabeça de ninguém chamar asmático ou hipertenso a alguém em sentido depreciativo. Expressões como estas deixam lastro mais profundo do que seria de esperar à primeira vista e denotam algo óbvio: há muito desconhecimento sobre as doenças mentais. Só falando mais sobre o assunto e desmistificando mitos comuns é que poderemos, enquanto sociedade, tornar um pouco mais fácil a vida para pessoas que já a têm suficientemente dificultada pela doença.
O suicídio é um pensamento constante nas fases de depressão?
Cada pessoa vivencia a sua doença de maneira diferente. Não é obrigatório que ideias de morte ou suicidárias surjam no decorrer de uma fase depressiva, no entanto, é importante ter presente o grande peso do suicídio nesta doença. A taxa de suicídio em pessoas com doença bipolar é 20 vezes superior à da população geral. Entre um terço a metade dos doentes tenta o suicídio pelo menos uma vez na vida, com 15-20% das tentativas a serem letais.Outro ponto importante é que o suicídio é muito mais frequente nos doentes não tratados, o que reforça a importância do tratamento.
Que mensagem quer deixar neste dia?
Para quem sofre com a doença, relembrava que ninguém escolhe ter a doença bipolar. Ela acontece independentemente da vontade do próprio e não é algo que alguém consiga controlar sozinho. Por isso, seja compassivo consigo próprio e procure ajuda quando for preciso. Para os restantes, sejam empáticos e estejam abertos a aprender sobre o que desconhecem.
Carlota Pimentel