Em 2007, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) designou o dia 2 de abril como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. A colocação deste dia nas agendas mundiais é a forma de procurar afirmar e promover a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para as pessoas com perturbação do espetro do autismo (PEA), em equidade com os demais.
A PEA é uma condição do neurodesenvolvimento, que se manifesta desde a primeira infância. Porém, em casos particulares podem não ser identificadas essas manifestações pelo meio envolvente logo desde o seu aparecimento. É importante sublinhar que a PEA não define a pessoa, é parte da forma como essa pessoa funciona e se relaciona com o ambiente em seu redor. Como forma de termos isso presente, considero que referirmo-nos a quem tem perturbação do espetro do autismo como pessoas neuroatípicas é menos estigmatizante.
Ainda nesta linha de pensamento, será que todas as pessoas neuroatípicas apresentam a mesma expressão sintomática? A resposta é não, e a maior divergência encontrada nos sintomas presentes parece estar associada ao género. De facto, a investigação clínica na área da PEA tem revelado a evidência de que existe um “efeito de camuflagem” nas raparigas com perturbação do espetro do autismo. Na prática, observa-se que o género feminino tem menor probabilidade de ser adequadamente diagnosticado dentro do espetro do autismo do que os indivíduos do género masculino e, quando o diagnóstico é efetivamente feito, tende a ser feito tardiamente.
Assim, ser mulher neuroatípica pode condicionar o acesso ao diagnóstico adequado, por um lado por terem expressão de sintomas diferente do esperado e como tal poder não ser detectado o diagnóstico na avaliação diagnóstica. Se considerarmos o funcionamento psicossocial global, as mulheres neuroatípicas podem estar em situações das quais saem prejudicadas, visto as dificuldades de funcionamento e adaptação não serem tidas em conta, seja em contexto escolar, familiar e/ou laboral.
Mas como funciona este efeito de camuflagem? Alguns estudos mostraram que, mesmo quando apresentam níveis comparáveis de défice na comunicação e nas competências sociais, as mulheres são mais propensas a não as evidenciar de forma tão marcada como os homens, sendo isto particularmente verdadeiro no caso de mulheres com boas capacidades cognitivas.
A investigação tem permitido perceber que não há diferenças significativas por género no grau de compromisso da comunicação social, mas que os comportamentos restritos/repetitivos são mais proeminentes nos homens. No entanto, foram identificadas diferenças importantes entre os géneros na forma como os défices sociocomunicativos se manifestam. As mulheres neuroatípicas, sem compromisso cognitivo, tendem a apresentar vocabulário e habilidades linguísticas básicas mais adequadas ao desenvolvimento do que os pares masculinos com PEA. Dado que os atrasos da linguagem são a primeira preocupação mais frequentemente relatada entre os pais de crianças com PEA, esta diferença pode ter implicações importantes para o tempo e a precisão do diagnóstico. Em paralelo, raparigas neuroatípicas têm maior probabilidade de ter intactas as competências de brincadeira e imitação. Na prática clínica observam-se ainda alguns “preconceitos clínicos”, isto é, que as raparigas se apresentarem interesses restritos em áreas de conteúdo consideradas socialmente “normativas”, estes não serão lidos como sintomas e sinais de PEA.
Sintetizando, é importante reter que raparigas têm menos probabilidade de serem diagnosticadas como neuroatípicas quando comparadas com rapazes com o mesmo diagnóstico e sempre que existam dificuldades relacionais persistentes e que interferem de forma transversal no funcionamento social de uma rapariga/mulher, este diagnóstico deve ser colocado como hipótese. Aproveito ainda para deixar a informação que se realizará um evento digital organizado pela ONU, sob o tema “Moving from Surviving to Thriving: Autistic individuals share regional perspectives”, hoje (requerendo inscrição online).
Maria Laureano
Pedopsiquiatra e Docente
convidada da Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra