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“Mais de metade das nossas paróquiasnão têm a pastoral social organizada”,afirma Eugénio da Fonseca

O Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado é o palestrante do Encontro Diocesano da Pastoral Social, que se realiza no dia 20 de Abril, em Ponta Delgada. Nesta entrevista, ao Sítio Igreja Açores e ao Jornal A Crença, adianta o que ainda está por cumprir no Estado Social, dos constrangimentos que os mais pobres enfrentam para ultrapassar a pobreza, da resposta da Igreja, que ainda é insuficiente e dos perigos que a Democracia enfrenta com as derivas populistas de “receitas e soluções” fáceis, para um problema cuja natureza é “poliédrica” exigindo um empenho e uma “estratégia diferente”. Eugénio da Fonseca é licenciado em Ciências Religiosas pela Faculdade de Teologia da UCP. Foi membro do Conselho Económico e Social. Integra o Conselho Social da Faculdade de Ciência de Economia e Empresas da Universidade Lusíada. Foi Presidente da Cáritas Portuguesa e é Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado. Integra o Conselho das Ordens de Mérito Civil da Presidência da República.

Há muito que falamos em dificuldades. Elas são cada vez maiores e diferentes. No contexto de várias guerras e ainda na sequência da pandemia, há mais famílias em dificuldades. Quem são os pobres de hoje?
Eugénio da Fonseca (Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado) – Face às medidas económicas impostas, devido à contracção da economia, como sempre acontece, são algumas das pessoas que se encontravam na classe média baixa, ou até mais acima, que, facilmente, ficam no limiar da pobreza. Tem vindo a aumentar também o número de migrantes pobres, sobretudo os que foram vítimas de embustes, praticados por máfias organizadas, que lhes garantiram trabalho. Existem também mais jovens adultos com menos autonomia financeira, mesmo tendo qualificações académicas superiores. Na causa deste tipo de pobreza está uma política de baixos salários praticada nos últimos anos e a inflação de bens essenciais como seja o do acesso à habitação. Os jovens com menos sucesso escolar e que vão ficando para trás. Os desempregados de longa duração que representam 46,7% dos 17% da população portuguesa que se encontra no limiar da pobreza. Acrescentaria ainda as famílias monoparentais, alguns dos cuidadores, ditos, informais, a pobreza infantil e os trabalhadores pobres.

Há um notório empobrecimento das pessoas. Como podemos actuar sobre isto?
Sem dúvida que numa melhor distribuição da riqueza produzida, efectuada através do pagamento de salários dignos, da eliminação da precariedade no trabalho, que assegurem, sempre que necessário, reconversões profissionais e na diminuição do consumismo gerado por determinados tipos de publicidade que colocam o bem-estar das pessoas no ter, gerando estilos de vida hedonistas.
Têm falhado as políticas públicas…
São necessárias medidas de política públicas que actuem no sistema tributário, que garantam trabalho ou outras formas de rendimento quando este não chega a todos. Foi aprovado, em 29 de Dezembro de 2021, uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza para, durante os 10 anos, reduzir, significativamente, este flagelo nacional.
Já foram tomadas algumas medidas valorativas, mas ainda não se conseguiu a indispensável articulação, que a Estratégia prevê, entre os diferentes sectores governamentais.
É que, a pobreza é uma realidade poliédrica.
Ainda continuamos a lidar com a pobreza actuando sobre ela ou já conseguimos encontrar caminhos que capacitem as pessoas para saírem do ciclo em que muitas vezes estão Ou caem na sequência de contextos mais difíceis?
Esse é um drama na base do qual, entre outras causas, está a vergonha de uma alta taxa de pobreza estrutural que faz com que famílias vivam a condição da pobreza gerações seguidas. Na verdade, temos tido um sistema de protecção social, a nível público e privado, desproporcionado entre a aplicação de medidas de assistência e as de superação das causas geradoras da condição em que as pessoas pobres se encontram. Quando esta desproporção tende mais para intervenções assistenciais, facilmente, se cai no assistencialismo espelhado nas subsidio-dependências criadas.
A implementação do Rendimento Social de Inserção, na sua génese, tem explícita esta preocupação, obrigando os beneficiários, salvo algumas excepções, ao cumprimento de um compromisso que passe pela eliminação das causas, mas, infelizmente, não tem sido muito eficaz neste requisito e a culpa não é só dos beneficiários.

A Igreja tem sido muito eficaz na ajuda imediata, de emergência, mas por vezes tem dificuldade em criar no terreno outro tipo de soluções. O que é que tem falhado?
É vulgar dizer-se que a Igreja fez a opção preferencial pelos pobres. Isto, infelizmente, ainda não é uma realidade na Igreja portuguesa. Não se sabe ao certo quantos grupos paroquiais de pastoral social existem. Calcula-se que mais de metade das nossas paróquias ou unidades pastorais não têm a pastoral social organizada. E não é por se ter um Centro Social Paroquial a funcionar que esta constatação deixa de ser verdadeira. É preciso que se dê igual importância à prática comunitária da caridade como se dá à catequética e litúrgica, carreando agentes pastorais competentes, por ser a pastoral mais exigente. Se queremos eliminar a pobreza, temos que deixar de nos ficarmos apenas pela gestão da pobreza dos pobres e investir, com eles em novos projectos de vida. Há que dinamizar o voluntariado cristão junto dos que se limitam a participar nas eucaristias dominicais. Nessas assembleias há gentes com competências técnicas que poderiam dar algum do seu tempo sem terem a obrigação de integrar qualquer organismo caritativo. Há que cuidar também da articulação entre as diferentes instâncias caritativas.

Com tantos cristãos no mundo, se seguíssemos o evangelho provavelmente não haveria tanta pobreza e o fosso entre os ricos e os pobres não seria tão grande. Falta-nos capacidade profética e de acção ou temos sido razoavelmente incompetentes?
A generalizações são sempre perigosas. Há que reconhecer que temos vivências de verdadeira caridade, por onde passa o testemunho do amor libertador de Deus, com experiências de promoção pessoal e social, bem como de intervenção sócio-política muito relevantes. Mas são oásis num vasto deserto. Também acredito que quem está a assegurar o testemunho da caridade das comunidades cristãs dá de si o melhor que tem. Mas há que repensar a organização da Pastoral Social. O Papa Bento XVI publicou um conjunto de determinações, em 11 de Novembro de 2012, na Carta Apostólica sob a forma de “Motu Proprio” sobre o serviço da caridade que nunca foi aplicado entre nós. É pena, porque ajudaria muito à reestruturação que se impõe. Por outro lado, uma prática autêntica da caridade será sempre profética.

A sociedade portuguesa dá sinais de algum extremismo, sobretudo na hora do voto. O que é que isto pode significar em termos de salvaguarda de um estado social que garanta a dignidade das pessoas?
Na verdade, não é um fenómeno existente apenas no nosso país, mas os sinais que se vão evidenciando são preocupantes. Entre nós, penso que resulta de não se ter conseguido alcançar, ainda, um verdadeiro Estado Social. As desigualdades sociais que se acentuam, cada vez mais, são uma das mais evidentes. Todavia, há que reconhecer, também, que algumas das medidas de políticas públicas não têm sido capazes de responder a necessidades básicas de uma parte da população, como há outras que se tornam inacessíveis pela carga burocrática que encerram. Mas, é importante reconhecer que se o nosso modelo de governança não fosse este, em vez dos 17% em risco de pobreza, esta passaria a atingir metade da população. Não haja dúvidas de que determinadas posições apontam para a eliminação de medidas basilares de um Estado Social e que tocam em aspectos ofensivos da dignidade humana. Uma das garantias de que não se perde o que de bom tem um estado social é fazer com que a ética esteja sempre presente nas acções da política activa.
Como é que avalia a adesão de tantos católicos, sobretudo jovens, a correntes mais radicais?
Fundamentalmente, segundo me parece, é a insegurança, o medo do futuro que os espera. Por outro lado, a desconfiança que têm em determinadas instituições pelos maus exemplos de quem as governa. A dificuldade que se tem em conciliar os ensinamentos evangélicos, bem como o Pensamento Social Cristão, com as realidades quotidianas. À Igreja, tem-lhe faltado a capacidade de ser impulsionadora da esperança. Reconhece isto, o Papa Francisco ao declarar 2025 o Ano Jubilar da Esperança. Esta virtude cristã é um dos eficazes antídotos para o desespero e o radicalismo. Aprender a prática do discernimento seria uma das tarefas a implementar nas instâncias eclesiais como forma de assegurar um dos dons divinos que é a liberdade pessoal e a do outro.

Sente de alguma forma que, olhando para o que está a acontecer a nível nacional e a nível mundial, as democracias tal qual como as conhecemos podem estar ameaçadas?
Sem dúvida alguma. A insegurança financeira associada a conflitos bélicos a acontecerem em várias partes do mundo são muito propícios ao surgimento de “messianismos” que terminam em regimes autocráticos. Hoje, em regimes democráticos, até um dos seus valores mais supremos, como é a liberdade, está a ser posto em causa por desejo de medidas mais securitárias assentes em procedimentos repressivos, em vez dos preventivos. É que a implementação de regimes democráticos não são algo que sai da “cartola” de uma qualquer revolução, nem a sua permanência é possível sem o contributo co-responsável de todos os que dela beneficiam. É um processo sempre em construção, alicerçado na participação colaborativa de todos, cada um a seu nível, e em que o bem comum é a meta a atingir. Uma democracia robusta constrói-se a partir de um Estado forte, que não permite que o capital financeiro domine sobre a pólis, concentrando a riqueza nas mãos de uma pequeníssima parte dos cidadãos em detrimento da maioria. Requer um Estado forte, mas não omnipresente. Daí a importância do poder local e dos órgãos intermédios, orientados por gente que sabe conjugar poder com serviço. Por isso, é indispensável, em democracia, as práticas efectivas da subsidiariedade e da ética como pilares seguros de quaisquer decisões.

A igreja tem também aqui feito tudo o que está ao seu alcance?
No plano teórico, sim. Tem um património muito rico na linha das ideias. A democracia é tema recorrente do Pensamento Social Cristão. O problema é que os seus conteúdos são desconhecidos da maior parte dos católicos, nos quais incluo também muitos clérigos. Os responsáveis pela educação cristã não têm tido a suficiente preocupação por incluir na formação inicial e permanente, temáticas que são determinantes para que, concretamente os leigos, saibam bem quais as suas responsabilidades na construção de uma sociedade democrática em que têm de predominar valores como o respeito e a defesa da dignidade humana, do destino universal dos bens, da opção preferencial pelos pobres, da prática da justiça, da solidariedade, da subsidiariedade e do cuidado da Casa Comum, entre outros, ditados pelos Magistério da Igreja. Não compreendo que sejam tão poucos os planos de formação para o Crisma, que tratem de temas relacionados com o compromisso social dos cristãos católicos. Por outro lado, nem os leigos têm a possibilidade de experienciar este modelo de governo dentro da Igreja, pois o dela baseia-se em processos de participação muito restritos. Estou confiante que algo vai mudar, não a curto prazo, pois exige mudança de mentalidades e disponibilidade para ceder o poder, com o processo, em curso, da construção de uma Igreja sinodal.

A conferência que vem proferir insere-se no contexto de um encontro que tem como tema “Quem é o meu próximo?”. Diante da globalização o comunitarismo, a rede de vizinhança pode ser um novo paradigma de resposta social?
Vivemos numa civilização que apela à cultura do individualismo e contribui, em profundidade, para dois dos maiores flagelos sociais hodiernos que é a solidão e a indiferença. Sem dúvida que o modo de vencer estas questões é a criação de um novo modelo civilizacional que permita a consciência clara de que “estamos todos no mesmo barco” e que ninguém é feliz sozinho. Há que descobrir novas formas de relação entre as pessoas que passem por uma maior proximidade entre elas, não resolvidas, na sua essência, pela mera utilização de redes sociais.
Há que reinventar outras formas como as designadas “redes de vizinhança”, mesmo em ambientes super urbanos, transformando as relações de condomínio em espaços comunitários, oferecendo novas formas de lazer proporcionadas pelas nossas colectividades de cultura, recreio e desporto; envolvendo mais as pessoas nas prestações dos serviços socioculturais prestados nas outras instituições. A Igreja católica tem um papel importante a desempenhar que se percebe no apelo feito pelo Papa ao pedir que ela seja um espaço de escuta onde todos, sem discriminação alguma, possam ter lugar.
I.A.

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