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“Via sempre os meus alunos como adultos que iriam ser no futuro e não eram alunos para lhes despejar conteúdos”

Maria Cristina Silva Borges é “açoriana que nasceu em Angola”, como faz questão de frisar. Chegou aos Açores em Janeiro de 1977 e foi professora de trabalhos manuais.

Teve o seu estúdio particular “O Quadradinho”, de artes decorativas e tem lindíssimos trabalhos de pasta de argila ou barro que aplica em azulejos. Um artesanato digno de registo, de quem foi distinguida com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico.
Maria Cristina Silva Borges, de 70 anos de idade, escolheu os Açores para viver refugiada da guerra civil pós-25 de Abril. A nossa entrevistada assistiu à guerra colonial, a 4 de Fevereiro de 1961, quando era miúda. “Era uma guerra feita à catanada, que era uma coisa horrível e ainda hoje tenho traumas por causa disso”.
Posteriormente, a família mudou-se para Luanda. “Em Luanda sentia-se paz e não havia guerra. Quem esteve a fazer guerra no norte e leste de Angola esteve mesmo numa guerra. No centro e sul, as coisas iam-se disfarçando, digamos assim. Depois, fui tirar o meu curso nas escolas industriais e comerciais, foi a minha primeira formação de base e com 18 anos comecei a dar aulas, porque entretanto, além das disciplinas do meu curso tive outras quantas disciplinas, que me davam a possibilidade de poder leccionar”.

O sonho tornou-se realidade…

Com quatro anos idade aprendeu a fazer tricô e croché, e desde modo sempre esteve ligada a trabalhos manuais, à criatividade e a executar coisas. Assim, enquanto criança, a nossa entrevistada já tinha este sonho, de um dia poder vir a ser professora.
“Eu queria ser professora, exactamente, do curso que estava a tirar, que era proporcionar aos outros, as minhas aprendizagens e continuar a fazer as coisas, que de facto gostava muito. E assim foi. Com 18 anos comecei a dar aulas, mas na altura não podia ir para o ensino secundário, porque era menor de idade e só poderia dar aulas a partir dos 21 anos. O meu pai, aos 19 anos, teve que me dar a emancipação plena, para poder concorrer ao ensino secundário, então passei a ser mestre de formação feminina e aí senti-me altamente realizada, porque estava a fazer as coisas que gostava de fazer, que era criar, realizar e transformar as matérias em outras coisas”.
Com o 25 de Abril surge a guerra civil, que segundo a nossa interlocutora “é a tal guerra que não tem rosto e mata-se por matar e é uma coisa horrível. Hoje vê-se a guerra na televisão, mas vi muita gente a morrer e a fugir sem levar nada consigo. O que assistimos hoje é o reviver daquilo que aconteceu pós-25 de Abril. Eu e quantas pessoas, que viviam em Angola, na altura. Durante algum tempo pensei que aquilo acalmasse e nunca pensei em fugir de Angola, só que a determinada altura as coisas começaram a ficar complicadas para o meu lado, apareceu um pelotão para me fuzilar e então aí decidi, que tinha de ir mesmo embora e ainda estou para saber como é que não fui morta na altura, mas não tinha de ser”.

Infância feliz e tempos conturbados

Maria Cristina Silva Borges teve uma infância muito feliz em Angola, “mas quando cheguei a Portugal estavam a ser difíceis as colocações para professores, porque vieram milhares de funcionários públicos de lá para cá e no Ministério da Educação aconselharam-se a concorrer para as regiões autónomas. Tinha aqui, em São Miguel, alguns amigos que conheciam Benguela, escolhi na ilha Terceira, na comissão de instalação de colocação de professores São Miguel, porque a pessoa que me atendeu disse que havia uma vaga para a minha especialidade na Escola Roberto Ivens. Vim para cá, em Janeiro de 1977, na altura vivia-se uma situação muito conturbada, onde quem vinha de fora não era muito bem acolhido e eu, ainda por cima, com a diferença da raça, pior foi. Contudo, como sou muito teimosa decidi ficar, contra a vontade de muita gente, mas fiquei e hoje não estou nada arrependida, porque quando estava com os meus alunos dentro da sala de aula estava no meu mundo. Claro, que não vou dizer que foi fácil não ser aceite e não é fácil ser-se segregada, porque as pessoas são como são, mas valeu a pena ter sido teimosa e ter ficado e constituído família”.
Maria Cristina Silva Borges é mãe de três filhos, dois dos quais do marido e criou-os exactamente como seus filhos fossem, tanto que a tratam por mãe e têm a sua mãe.

Aposentada sem ter despido ainda a bata

Maria Cristina Silva Borges começou por ser professora de trabalhos manuais na Escola Roberto Ivens, no ano seguinte foi para a Escola Antero de Quental, onde esteve cerca de 12 anos, mas a sua última escola foi a Escola das Laranjeiras e foi aqui, neste estabelecimento de ensino, que se aposentou, em 2003.
Apesar de aposentada ainda não despiu a bata, porque é formadora na área do artesanato e trabalhou também numa instituição de saúde mental, onde tirou formação na área psico-social, trabalhando com pessoas deficientes e outras, com problema aditivos. “Foi uma experiência muito enriquecedora e de muito sofrimento, porque sou uma pessoa extremamente emotiva e às vezes desvincular-me de alguns problemas é um bocado complicado”.
Entretanto, no concelho da Ribeira Grande trabalhou, de igual modo, na área da reabilitação psico-social com famílias desfavorecidas e com famílias disfuncionais, “onde transmitia o que é ser família, como gerir uma casa e conflitos familiares, trabalhando também com adolescentes com problemas de adição com comportamentos desviantes”.
Foi mentora da instituição “Sentinela dos Sonhos”, em Rabo de Peixe, que ajudava pessoas carenciadas. Não fazia parte dos órgãos sociais dessa instituição, porque já fazia parte de outras instituições. “Ensinava-lhes a fazer a gestão doméstica, como lidar com os filhos ou com o marido, a tratar de assuntos como a violência doméstica, por exemplo, mãe e famílias que sofriam com os problemas da toxicodependência dos filhos”.

“O verdadeiro professor ensina
e modela as pessoas”

“Sempre vi os meus alunos como pessoas que estava a ajudar a formar e defendo que o professor é o verdadeiro político. O verdadeiro professor ensina e modela as pessoas, e um professor é um fazedor de pessoas e o modelador de personalidades. Via sempre os meus alunos como adultos que iriam ser no futuro e não eram alunos para despejar os conteúdos que o ministério mandava, porque muitos eu nem sequer aplicava. Cheguei a fazer visitas de estudo e dava aulas na rua. Os meus alunos não gostavam de desenho geométrico, mas fazia-lhes ver que o desenho geométrico iria ajudar-lhes na matemática. “Os vossos olhos são a melhor máquina fotográfica, observem a calçada, o desenho geométrico que lá está e a geometria faz parte da nossa vida e vocês aprendendo bem o desenho geométrico têm meio caminho andado para absorverem melhor os ensinamentos da matemática. Entretanto, esta atitude que tinha para com os meus alunos era mal vista, pelos meus colegas de profissão, porque achavam que não regulava bem da cabeça, quando achava que isto era complemento às aulas e era uma maneira de cativar também o interesse pelo aluno. Nunca deixei que nenhum aluno passasse fome, nunca marquei uma falta de material por um aluno não ter dinheiro para comprar material.
Os tempos passaram, ensinei muita gente, já tive alunos filhos de alunos meus e costumo dizer, que os meus alunos são os meus amigos e tenho mensagens que me emocionam, e às vezes pergunto: o que é que andaste a fazer, Cristina? Eu digo, deitei sementes à terra e nasceram flores. Tanto que, a minha determinação valeu mesmo a pena, por ter constituído família e por ter ganho muitos amigos e tudo isto culminou o ano passado, por ter sido homenageada com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico, distinção que nunca pensei na minha vida que acontecesse. Por isso, olhando para trás, tudo o que chorei e sofri, quando cá cheguei, a má aceitação que tive por parte de algumas pessoas e a minha teimosia valeram muito a pena e costumo dizer, que sou uma açoriana que nasceu em Angola”.

Marco Sousa

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