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Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril

Carlos de Matos Gomes, escritor que usa o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz, autor do mais importante romance da literatura da guerra colonial, inverte as regras do jogo, nada de equidistâncias, vem-nos confidenciar o que naquela guerra colonial onde ele percorreu Angola, Moçambique e Guiné perdera todo e qualquer sentido, daí ter participado, desde a primeira hora, na formação do núcleo do MFA na Guiné, aquele que, na manhã do dia 26 de abril, com a representatividade de todos os ramos das Forças Armadas, depôs o então comandante-chefe, o primeiro sinal que foi dado no território para abertura de conversações com os insurgentes que já tinham declarado unilateralmente a independência; desvela a sua intimidade, interroga-se sobre as causas que o tinham conformado, aos 24 anos, no posto de capitão comandante de uma companhia de tropas especiais, a fazer aquela guerra, onde se sentia literalmente o intruso, e onde descobrira, que o colonialismo estava vivo e bem operante; combate ao lado de rodesianos, descobrirá depois do 25 de Abril que há um acordo secreto entre o Estado Novo e as forças do Apartheid…
É uma dobadoira de confidências de um combatente valoroso, condecorado com duas cruzes de guerra, que nos vai envolver com o mundo da sua infância, como chegará à academia militar, os sonhos que guarda. A Guiné é crucial, para ela se ofereceu voluntariamente, acabará como autoridade no Batalhão dos Comandos Africanos, assiste a uma etapa superior da africanização da guerra, considera que Spínola foi até onde a sua natureza lhe permitiu, um general destemido que descobriu que não havia nenhuma solução militar para um conflito onde os nacionalistas tinham um pé firme no território, eram beligerantes e ao nível do combate no terreno possuíam melhor armamento, isto até 1973, aí as coisas mudaram de figura. Matos Gomes acompanha de 1972 a 1974 a trepidação do conflito, recorda os acontecimentos subsequentes ao assassínio de Amílcar Cabral e ao conjunto de operações de maio de 1973, haverá um quartel totalmente cercado no Norte da Guiné, Guidage, pôs-se em movimento uma operação de nome Ametista Real para aliviar a pressão, que teve sucesso. “O Batalhão de Comandos Africanos sofreu 10 mortos, 22 feridos graves e 3 desaparecidos. Entre os feridos, o capitão Folques, que conseguimos trazer. E provocou 67 mortos, entre os quais, segundo refere uma informação obtida da República do Senegal, uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos.”
E há outros dados significativos: “Durante o mês de maio de 1973, as forças portuguesas sofreram 63 mortos, 269 feridos e um prisioneiro; o PAIGC realizou 166 ataques, ocupou uma base militar, sede de um comando operacional, Guileje, efetuou 36 emboscadas, 12 ataques contra aeronaves e um contra embarcações, implantando 105 minas, das quais 66 foram acionadas por militares portugueses.” O descontentamento militar está em fermentação. Costa Gomes e Spínola acordam em junho em trocar espaço por tempo, ninguém tem ilusões de que tudo se vai agravar, é preciso encolher o dispositivo militar. “A situação aconselhava ao retraimento do dispositivo militar português, que deveria ficar com todas as unidades aquém da linha geral rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego- Aldeia Formosa-Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. Esta solução de último recurso tem sido apresentada como prova de que, no seu regresso a Lisboa, Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlável e o território defensável; no entanto, ela é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem no reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal, militar e politicamente indefensável. O Governo português sujeitava as Forças Armadas a uma situação humilhante e o país a uma situação de vexame internacional.”
Dá-nos a sua versão do nascimento do MFA, descreve a Guiné nos primeiros meses de 1974, o que foi o 26 de abril em Bissau e em toda a Guiné, o memorialista desembarca em Lisboa em junho de 1974, tem o PREC à sua espera, tudo contado com algumas pitadas de humor, a relação forte que estabeleceu com Jaime Neves, o encaminhamento para o 25 de novembro, não é dúbio nem se mostra atarantado, aderiu à esquerda revolucionária, não guarda mágoas nem pôs em salmoura quaisquer traumas, desfia as suas considerações sobre o processo político, dizendo-se solista da sua própria orquestra. É chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, entra como réu, sai absolvido. “Existia um MFA ao qual eu já não pertencia, um país que seguia o seu novo rumo e eu via-me no rasto da espuma que ele deixava.” Deixa gravado que acreditou no poder popular e que numa hora de descaminho que ele se afastou.
A firmeza das suas ideias compagina-se com a firmeza de como escreve, não descura a aprendizagem do dever e da solidariedade. “A história da minha geração fez-se ao redor da fogueira da guerra. O dilema da minha geração incluía sempre a minha decisão sobre a guerra. A guerra surgia como um fenómeno que atingiu Portugal porque ocorrera uma tempestade no mundo. Como as invasões francesas, ou a peste bubónica. Portugal defendeu-se da intempérie. Neste caso, Salazar não conseguiu preservar Portugal das turbulências históricas, como conseguira na Segunda Guerra Mundial, e a sua costela de camponês levou-o a defender à sacholada o que entendia ser a sua propriedade. Esta era ainda, nos anos 90, a narrativa sobre a guerra. A dificuldade em a desmontar era tanta que essa guerra nem tinha designação, além da antiga “Guerra do Ultramar – um conceito, o do Ultramar, que tanto fora utilizado pelos liberais como pelo Estado Novo, que a partir de 1951 alterara a designação de colónias para províncias ultramarinas”.
É caloroso na amizade e despede-se de nós com um parágrafo esplendente:
“Num tempo de obediências e corrupções, num tempo de sombras e homens sombrios, num tempo de funcionários, de gente que não dá ponto sem nó, que nunca faz o que deve sem perguntar o que ganha com isso, eles, os meus, pertencem a uma casta de seres humanos que nos servem de matriz. Sementes raras, que por vezes dão frutos ásperos, mas apaixonantes.”
Tenho dúvidas que possa surgir um testemunho mais vigoroso sobre o arco histórico e o dilema de uma geração, a que também pertenço.

Mário Beja Santos

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