Com mais de 50 anos de prática da modalidade de judo, Jorge Batista recorda ao Correio dos Açores os tempos em que começou, as dificuldades de desenvolvimento e revela quais os planos que se antevêem para o futuro do judo.
Correio dos Açores – O Judo Clube de Ponta Delgada fez 50 anos. Tem algum momento que seja mais marcante para si?
Jorge Batista (Presidente Judo Clube Ponta Delgada) – O judo tem vários momentos marcantes. Foi a primeira modalidade em todo o desporto açoriano a ter campeões nacionais, em 1974, que coincidiu com o início do clube.
O judo começa um pouco antes. A primeira experiência que os Açores têm com o judo foi em 1962, com a vinda de férias do professor Costa Matos, que é açoriano, e representou Portugal nos Jogos Olímpicos de 1964, que aconteceram em Tóquio.
Em 1968, com a vinda do sensei Masatoshi Ohi, o judo começa a se desenvolver de uma forma diferente. Em vez de se fazer apenas nas férias de Verão, quando vinha o professor Costa Matos, passou a ser desenvolvido todo o ano. Eu aderi nos finais de 1973, portanto também já tenho quase 51 anos de prática de modalidade.
Em 1970 tivemos os primeiros atletas classificados a nível nacional e quatro anos depois, em 1974, tivemos o primeiro atleta campeão nacional açoriano. A partir daí, passamos a ter campeões nacionais todos os anos. Inicialmente, só com o Judo Clube de Ponta Delgada, porque era o único clube que fazia esta actividade nos Açores.
A partir de 1975 o judo alarga-se por várias zonas. É a partir do Judo Clube que começa a praticar-se judo na Lagoa, Água de Pau, Furnas, Ribeira Grande, Fajã de Cima, na escola Roberto Ivens, na ilha Terceira, na ilha do Pico, Faial e Santa Maria. Tudo isto dinamizado pelo sensei Masatoshi Ohi. O judo em São Jorge aparece mais tarde, através de um atleta que fez a sua iniciação na ilha Terceira e no Judo Clube de Ponta Delgada, o Vitor Soares.
O judo é o que é, quer se queira, quer não, com essa visão das pessoas que estão no Clube de não se fazer um clube fechado, mas sim onde houvesse mais gente a fazer judo.
Outro marco importante é que a partir de 1979 deixamos de ter treinador cá. Fruto de, diria, alguma perseguição, que resultou devido ao trabalho que realizamos. Nós éramos os únicos que iam correr para a rua, mais ninguém corria assim. Porque corríamos a diferentes horas, ganhamos a alcunha de ‘malandros que não queriam fazer nada’. O sensei Ohi percebeu que as dificuldades eram enormes e foi para os Estados Unidos. Isto levou a uma regressão devido a falta de pessoas.
Treinávamos em cima da relva do Jardim António Borges, nessa altura. Fomos para um campeonato nacional treinando em cima de relva. Tiraram-nos do local onde treinávamos, que era um edifício em São Gonçalo. Depois, treinamos um ano no ginásio do antigo quartel dos bombeiros. Em Julho de 1979, na véspera do sensei Ohi ir para os Estados Unidos, treinamos na sede do Santa Clara, que nos cedeu um espaço muito amavelmente. Éramos um grupo restrito que treinava, uma vez que o espaço era pouco.
Houve uma tentativa, frustrada, de várias pessoas, em aniquilar a modalidade que dava mais visibilidade ao desporto açoriano.
Em sua opinião, porque aconteceu esta tentativa?
Não sei se por questões políticas, que deviam de ter a sua quota-parte, ou se porque incomodávamos.
Nesta altura, não tinha cargos nenhuns de dirigente e foi uma altura bastante má para o judo nos Açores. Para ter uma noção, quando o sensei Ohi saiu, em conversa uns colegas, brincaram que devíamos ir para uns tanques de aprendizagem de natação e remo que havia em frente ao Pavilhão Sidónio Serpa, onde hoje se encontram os campos de futebol de piso sintético. Por acaso, isso deu-nos a ideia de irmos ver o local onde estavam estes tanques e reparamos que podíamos fazer uma boa sala de judo ali. Falamos com algumas pessoas e tentamos arranjar o espaço. Foi-nos dito que seria impossível, porque iriam arrancar com o tanque de remo, algo que até hoje não se veio a verificar.
Fui pedir uma reunião com os responsáveis do Governo de então, a explicar a situação que existia. Havia um espaço, que estava abandonado e que poderia ser aproveitado. Foi-nos cedido o espaço, mas mesmo aí houve muitos entraves. Tínhamos que saltar as janelas, para ir treinar, porque quem estava a tomar conta do espaço entendia que não podíamos ir para lá. Não sei se por indicação da antiga Direcção do Desporto. Coincidência, ou não, pouco depois, o Director Regional do Desporto saiu.
Depois dessa situação, encetamos esforços para arranjar um pavilhão que fosse melhor para nós. Com vontade de algumas pessoas envolvidas nisso; como por exemplo o Fernando Goianes, o João de Brito Zeferino, o Gil de Sousa que já não estão entre nós, e outros mais, mas gostava de realçar estes três nomes que tiveram um papel extremamente importante na concretização do sonho de ter uma sala de judo. É a sala actual que nós temos, onde não nos foi dada a largura pretendida. Havia muitos projectos para ali, sempre no âmbito de se fazer uma sala de judo. Um deles era para se fazer um octeto, que não se fez e havia também um projecto que não se realizou por ser bastante ambicioso para a altura. Concretizou-se a sala actual que foi construída por nós.
Recebemos, tal como outros clubes receberam na altura que queriam fazer alguma coisa relativamente a instalações desportivas, 1.500 contos, o que nos dias de hoje são 7.500 euros. Cederam-nos o terreno e o projecto de engenharia também. Fomos os únicos que realizaram o seu projecto, nenhum dos outros que recebeu este apoio fez o seu.
Hoje, visto à distância, foi uma construção diabólica. A obra acabou em cerca de 22 a 23 mil contos, cerca de 120 mil euros. Cada atleta foi pedir um donativo de porta em porta para pedir donativos. Felizmente tivemos uma colaboração óptima por parte das pessoas. Também tivemos empresas que nos ajudaram bem como os nossos sócios com máquinas e outro tipo de instrumentos. Nunca vi uma obra ser feita assim na Região. Nesse ano, não tivemos campeões nacionais. Os nossos treinos eram feitos a acartar baldes de cimento para encher as vigas e os pilares do pavilhão.
Também tivemos uma grande ajuda do antigo dono da Tecnovia, que nos deu uma grande ajuda, que nos cedeu uma máquina de encher placas.
Ao longo do tempo, esta instalação tem servido o judo do clube, da ilha e da Região, mesmo sem condições regulamentares em termos de medidas e pouco espaço para meter público.
Perdemos um pouco em termos de público. Enchíamos o Sidónio Serpa quando nos era possível organizar um campeonato regional de judo lá. Isto acontece porque os pavilhões passaram a ficar mais ocupados, e bem, com outras modalidades. E também porque havia uma maior deterioração dos tapetes de judo cada vez que os deslocamos e cada tapete tem o custo de 130 euros. Já fizemos muitos campeonatos, onde tivemos que deslocar os nossos tapetes, e eles acabam por ter de ser substituídos. Sempre demos essa ajuda à Associação de Judo.
Actualmente, temos muita gente a praticar judo. Mas isso é periódico, umas vezes temos mais pessoas, outras menos. Como vivemos numa Região Autónoma, temos sempre um período onde perdemos atletas que vão estudar para o continente. É cansativo. A nossa universidade, infelizmente, não tem todos os cursos que as pessoas procuram para seguir os seus estudos. A grande maioria é Medicina, Engenharia e Direito. Temos os preparatórios quer de Medicina quer de Engenharia, mas depois acabam sempre por ir para fora.
Não conseguimos fazer os treinos ou dividir os horários de treino, de uma maneira mais organizada em idades porque a sala que temos não nos permite. Com o sonho que temos de fazer uma sala de judo nova, colmataríamos esta deficiência e a ilha e a Região ganharia um espaço onde se poderiam realizar actividades por muitos anos. Seria uma sala com duas áreas de combate, 8 metros por 8 metros, com tapetes de segurança à volta. Poderíamos, desta forma, organizar algumas provas, como estágios e treino, que já seria possível.
Quanto custaria e onde seria esta nova sala?
Foi-nos cedido, pelo antepenúltimo Governo Regional, um pouco da área do tapete em cima. Fizemos estudos da área, com engenheiros e projectistas. Com o terreno que nos foi cedido, teríamos que destruir todo o alçado daquele edifício, que está bom. A obra iria ficar em mais de 1.200 mil euros, o que era impossível. Depois, com a boa colaboração da Direcção de Obras Públicas, desenvolveu-se um projecto em cima do actual parque de estacionamento. Não iria ocupar o parque todo, continuaria a existir parque. Assim, o custo da obra fica reduzido de maneira significativa. Passaria a custar um pouco mais de 400 mil euros, isto tudo valores antes da guerra da Ucrânia. A partir daí o custo está mais inflacionado.
Fazendo esta obra, ficaríamos com um data de problemas resolvidos relacionados com o judo, na Região.
Já existe data para o arranque da obra ou ainda está só no papel?
Ainda só está no papel. Entrou a Covid e isto ficou tudo parado. Inicialmente, pedimos uma audiência ao Director Regional do Desporto, do penúltimo Governo, para explicar a situação em que nos encontrávamos e o que iríamos fazer para ter mais terreno.
Fizemos um estudo prévio, para saber se era viável construir junto da Câmara de Ponta Delgada, que nos foi favorável. Também temos o projecto de arquitectura e o levantamento topográfico todo feito. Falta-nos só a parte das especificidades da construção em si.
Não nos foi dito que o terreno não nos seria cedido mas estamos num impasse há um ano e meio. Em princípio, não haveria problema, mas vamos ver se isso sempre se concretiza. Vamos ver que apoios poderemos ter. Não é um local que seja para uso pessoal, vai ser para o desporto e para a comunidade.
Deixe-me dizer algo sobre os apoios que existem para o desporto na Região que, na minha opinião, precisam de ser repensados. Hoje, ao contrário do que acontecia antigamente, não há clube que tenha a sua instalação. Tudo é do Estado.
Os clubes que têm as suas próprias instalações são os mais prejudicados. Temos cerca de seis clubes que são prejudicados na Região em relação aos outros: o Judo Clube de Ponta Delgada, o Clube de Ténis de São Miguel, Clube de Ténis na Terceira, a Escola do Pauleta, o Fayal Sport, e pouco mais, que têm instalação própria. Tudo o resto vive à conta do Estado. Não têm despesas com o espaço e têm acesso aos mesmos apoios que a Região entende dar. Ainda temos a desvantagem de algumas entidades criticarem o apoio maior, cerca de 750 euros a mais por ano, que os clubes que têm instalação própria recebem para apoio. Ora, este apoio não cobre as despesas que o clube tem, num ano. Há uma injustiça enorme na forma como os apoios estão a ser dados aos clubes. Tem que se pensar noutra forma de os apoios serem distribuídos.
Alguns clubes usam o dinheiro da Região, no meu entender, para contratar atletas profissionais quando o dinheiro, na minha opinião, não deveria ser usado para este fim. Deveria ser usado, sim, para promovermos a actividade física e o desporto e para metermos mais pessoas a praticar as mais diversas modalidades.
Então os clubes que têm recinto próprio saem prejudicados porque os outros usam esse dinheiro para se promover…
Quem tem instalação própria, tem despesas que os outros não têm. Esta é a única zona do país onde as escolas estão abertas à população, o que acho muito bem. Somos a única zona do país onde existe o serviço de desporto. Não estou com isto a dizer que o serviço de desporto não tem feito um bom trabalho. O que se trata é que há uma injustiça no uso das coisas públicas e na forma como se tratam as entidades desportivas.
Nós, para mantermos o clube a funcionar, todos pagamos uma cota. Seria impossível mantê-lo a funcionar senão houver essa cota. A cota que existe na maioria das outras modalidades serve como receita directa, sem despesa, uma vez que não são eles que fazem a manutenção do espaço que utilizam.
Poderíamos fazer mais actividades, mas o nosso dinheiro é investido na manutenção e produção do que gastamos. As despesas são grandes. Também estamos no impasse da obra e o edifício precisa de alguma manutenção que se avançasse, englobávamos tudo no mesmo.
Algumas pessoas que estão noutras modalidades já ma referiram que o bom era não termos instalações desportivas. Cedíamos as instalações ao Estado e depois este emprestava-nos as instalações e explorávamos. A manutenção não ficava a cargo do clube. Este é um pensamento que vai estando presente em alguns dirigentes de algumas modalidades que têm algumas dificuldades, como nós estamos a ter. Há aqui alguma coisa que tem que ser mudada na Região Autónoma dos Açores, sob pena de termos clubes de um Deus maior e outros de um Deus menor.
As modalidades são prejudicadas em prol do futebol?
Toda a gente em Portugal gosta de futebol, mas cada um tem que fazer o seu caminho. Não tenho dúvidas que o futebol move massas, é o desporto mais popular. Não quero tirar a importância que o futebol tem para dar a nós.
Temos que dar o valor certo às coisas certas. Não se pode andar a subsidiar equipas profissionais de futebol. A Região é pequena, somos poucos e é um luxo andarmos a profissionalizar atletas. Não se formam atletas. É inconcebível, por exemplo, numa equipa de juniores ter atletas profissionais e nenhum jogador ser de cá. Não há coragem de acabar com isso.
O dinheiro público é para metermos os miúdos que vivem cá, ou que vieram para cá, a praticar desporto. Só assim poderemos mete-los em alto nível. Podemos ter o exemplo da Bélgica, que percebeu qual é a sua dimensão para o desporto não profissional. Dão muito mais ênfase às modalidades que se adequam à sua população. Temos que ver onde poderemos ter sucesso e quais as modalidades onde aplicar dinheiro. Há muitos clubes que acabam falidos porque entram numa espiral de sonhos, e é muito bom sonhar, mas, depois não têm dinheiro para concretizar estes sonhos. Se querem ter uma equipa profissional têm que arranjar maneira de fazer dinheiro para isto. Não pode ser com dinheiro público.
Quantos atletas têm a praticar?
No clube temos cerca de 270 atletas. Na Região, andam à volta de 1.300 pessoas a praticar judo. Infelizmente, está a ser praticado só entre as ilhas. Em Santa Maria está a fazer-se algo, mas ainda não está a 100%.
Tem a expectativa de aumentar o número de atletas com o novo pavilhão?
Poderá ser um chamariz, mas não é por aí que vai aumentar o número de atletas. Vamos ter outra estrutura, poderemos ter horários diferentes que nos permitam ter a expectativa de ter outras classes, e assim aumentar o número de atletas.
Lembro que há uma instituição que fez uma determinada obra, na expectativa de aumentar o número de atletas com a construção de uma sede social, o que não veio a acontecer. Tem a ver sempre com o trabalho que as pessoas façam. Vamos construir um recinto desportivo. O que temos hoje em dia é um pavilhão de treino com uma sala de musculação, uma sauna, dois balneários que precisam de ser ampliados, uma secretaria e uma sala onde os atletas estudam.
Poderemos fazer outros horários, com o novo pavilhão, que nos permite ter mais miúdos a treinar.
O Judo Clube de Ponta Delgada funciona como um clube de inclusão?
Sem dúvida nenhuma. Temos gente de todas as profissões. Um dos primeiros clubes a ter invisuais a ter desporto foi o Judo Clube de Ponta Delgada.
Em 1977 houve a hipótese de levar dois atletas, um deles já falecido que se chamava Virgínio, ao campeonato do mundo de invisuais. Na altura, foi dito que não valia a pena, que era um gasto de dinheiro.
Mas temos gente de todas as profissões e de todos os estratos sociais. Toda a gente paga cotae se não puderem pagar, não há problema. Arranjamos sempre solução. Aconteceu, por exemplo, durante a crise em 2008. E não ficaram com uma dívida por causa disso. Vamos manter sempre isso assim. Não somos uma empresa que só pensa em ter lucro. Obviamente que temos que ter lucro e resultados positivos face às despesas. Tivemos uns anos difíceis, onde demos prejuízo, para manter uma cota barata.
Os nossos lucros são irrisórios, mas também não temos crédito mal parado. Desde que o Clube começou nunca recorremos a crédito. O Clube tem dado sempre um passo do tamanho da sua perna, como se costuma dizer. Esta tem sido a prática do clube.
O judo é um desporto caro?
Não é caro, e o equipamento pode durar anos até se estragar. Claro que se estivermos a falar de uma competição mais a sério que o custo sobe. Os equipamentos que se encontram à venda rondam os 20 ou 25 euros.
Há equipamentos para todos e para todos os bolsos. As competições têm fatos próprios e com regras próprias. Todos os fatos têm a sua própria medida e ai já são um pouco mais caro.
O facto de priorizarem o estudo contribui para que mais pessoas pratiquem?
Quem vai ao clube percebe. Damos sempre prioridade aos estudos dos atletas. Já tivemos atletas que, ao fazer o seu percurso estudantil, tivemos que os proibir de treinar e metíamo-los a fazer os trabalhos de casa. Felizmente, apenas aconteceu uma ou outra vez.
Sabe que, normalmente, os clubes estão mais preocupados com os resultados…
Infelizmente alguns clubes, em algumas ocasiões, nem querem saber da saúde dos atletas. O sensei Ohi dizia que enquanto formos fazendo resultados que toda a gente nos bate nas costas e que no dia em que falhamos ninguém nos conhece. Isto depois foi reconhecido por um atleta que, na década de 70, tinha um problema no joelho e, como sabe, não haviam as ligaduras que existem hoje, e que assim que deixou de ter resultados lembrou-se dessa frase.
Não podemos ganhar a qualquer custo. Não é esta a nossa maneira de estar no desporto.
Em todas as grandes provas internacionais de judo: taças de Europa, taças do Mundo, Grand Slams, Grand Prix, Masters, campeonato do mundo e campeonatos continentais, é frequente as selecções ficarem a treinar em conjunto, depois de terminada a prova, e partilham experiências uns com os outros. Isto de nos fecharmos é completamente errado.
Que mensagem quer deixar?
Gostaria que o poder político olhasse de maneira diferente para o desporto. Eles olham, mas deveriam refazer a forma como se dão os apoios ao desporto.
Temos também muito pouco gente a fazer desporto nos Açores. É preciso meter mais gente a fazer desporto. Existe mais organização do que quando comecei a fazer desporto mas precisamos ainda de mais pessoas a fazê-lo e há que conseguir aumentar estes números.
Frederico Figueiredo