As II Jornadas Regionais de Medicina Veterinária, a decorrer Hotel Marina Atlântico entre hoje e Domingo, reúnem profissionais da área com o objectivo de “combater a insularidade”, possibilitando a formação contínua e a partilha de experiências clínicas e pessoais. Com 184 inscritos, o evento aborda temas como anestesia, trauma, cirurgia, dermatologia, medicina interna, neurologia, saúde mental e comunicação na profissão. Nesta entrevista, Francisco Brandão, veterinário e responsável pela organização do evento, explica alguns dos motivos que levam a que esta profissão tenha a maior taxa de suicídio na Europa e o papel de eventos como este para alertar os colegas e a sociedade.
Correio dos Açores – Qual a expectativa das II Jornadas Regionais de Medicina Veterinária?
Francisco Brandão (Veterinário e organizador do evento) – A principal expectativa é sempre a de tentar reunir o maior número de profissionais da medicina veterinária de animais de companhia dos Açores, sejam estes médicos veterinários, enfermeiros, ou colegas da parte farmacêutica. Por iniciativa minha, as Jornadas Regionais da Veterinária surgem da tentativa de combater a nossa insularidade — ou uma das consequências da insularidade: o isolamento, ao criar um evento onde se gera oportunidade para que estejamos todos reunidos e onde se possam partilhar experiências não só profissionais e a nível clínico, mas, sobretudo, aquilo que envolve o nosso dia-a-dia, como o impacto que o trabalho tem na nossa vida pessoal.
Quais são os principais temas que vão estar em debate e quantos participantes já estão confirmados?
Neste momento temos 184 inscrições. O evento começa Sexta-feira, dia 12 (hoje), e a primeira manhã é dedicada exclusivamente à anestesia. O orador José Diogo dos Santos vai falar-nos um pouco sobre teoria, mas que também vai apresentar muitos casos práticos das mais variadas situações que acontecem quando se fazem anestesias. De seguida, o orador Miguel Ramos trará uma componente de trauma e cirurgia minimamente invasiva, e uma parte sobre a displasia da anca e, portanto, virada para a área de ortopedia com o Luís Chambel.
Já a manhã de Sábado será dedicada à dermatologia com a oradora Carolina Mesquita. Depois, segue-se uma componente de medicina interna que não passa pela parte das consultas, mas pela vertente dos animais que já estão internados. Ou seja, a oradora Sheila Pedrosa vai dar-nos a perspectiva de quem é responsável por todos os animais internados, dá seguimento aos casos e faz a avaliação para saber se é necessário recomendar novos tratamentos, ou novos exames de diagnóstico complementares.
Depois, vamos falar de neurologia com o orador Rui Rodrigues. O foco vai estar na parte das convulsões, um assunto onde eu noto muita confusão por parte do público geral. Isto na medida em que convulsão é quase um sinónimo de epilepsia, e não é assim. Ou seja, apesar da epilepsia ser uma doença que cursa com convulsões, estas podem ter origem em muitas outras causas.
Por fim, terminamos as jornadas com um tema que não é clínico, mas que é altamente importante. O colega Andrés Santos vai falar da perspectiva ou da comunicação em medicina veterinária, seja esta entre técnicos ou de técnicos para o público em geral. Também vai falar-nos de estratégias ou “mecanismos de defesa” para lidar com a doença mental.
Quer explicar qual a relevância do tema “a saúde mental e a comunicação em medicina veterinária”?
A medicina veterinária é uma área que está a crescer e a sociedade geral exige cada vez mais de nós. No entanto, o nosso curso é muito direccionado parte técnica, e no nosso dia-a-dia, não somos apenas médicos que faz exames e que faz tratamentos. Não. Na nossa profissão precisamos de competências interpessoais — como empatia — que nunca nos foram ensinadas. Algumas pessoas têm estas ferramentas de uma forma mais inata, mas temos outras que são mais introvertidas ou que têm mais dificuldade na parte da comunicação. Assim, acredito que é muito importante haver algum tipo de formação continua – pós-licenciatura ou mestrado – pois a comunicação é fundamental. O colega André, que tem muita experiência de comunicação e muito conteúdo online, vem partilhar um pouco das suas estratégias e forma de pensar. O meu objectivo é o de que esta perspectiva possa abrir um pouco as portas aquelas que têm mais dificuldade neste âmbito.
A medicina veterinária é a profissão com maior taxa de suicídio na Europa…
Quanto à parte da saúde mental, considero um dos temas mais importantes pois a medicina veterinária é a profissão com a maior taxa de suicídio na Europa. Nós lidamos com muitas frentes do foro emocional. Ou seja, quem segue veterinária, à partida gosta de animais e, portanto, em primeiro lugar está a motivação para tratar o animal; depois, há a componente da responsabilidade técnica que todos nós sentimos; e, por fim, há a expectativa dos donos que realmente recorrem a estes profissionais para resolver um problema. E o que acontece é que muitas vezes somos pouco compreendidos relativamente aos limites.
Neste ponto, posso fazer uma analogia com a medicina: quando as pessoas vão ao médico, à partida aceitam aquilo que ele diz que é possível ou não tratar, pois ‘ele é médico e, portanto, é ele que sabe’. Sinto que na medicina veterinária as pessoas não têm tanto respeito. Connosco, as pessoas questionam, duvidam e apontam muito o dedo quando as coisas não correm bem. E, como é obvio, muitas vezes as coisas não correm bem porque realmente não há nada a fazer. Qualquer ser vivo tem os seus limites biológicos e, por muito avançada que a medicina veterinária esteja, quando um animal chega a esse limite, não há nada a fazer.
Por fim, vem a parte financeira. Enquanto que a medicina regular tem o sector público, onde os exames, tratamentos e internamentos são muito baratos face ao custo real, em veterinária não há sector público, é tudo privado e caríssimo. Neste sentido, nós deparamo-nos com situações em que precisamos de fazer certos exames, diagnósticos ou tratamentos e isso não é possível porque aquela pessoa não tem condições financeiras. E, depois, entra mais um dilema que é: eu não quero que esse animal morra, e que não seja necessariamente a morte, mas eu não quero que ele deixe de ser tratado, mas a pessoa não consegue pagar; se a pessoa não pagar, o animal não fica bom, e agora o que é que eu faço? Portanto, a cereja no topo do bolo é a parte financeira. Nós já temos uma preocupação constante de como é que vamos gerir toda a parte emocional naquele momento, e, depois, esta é uma arma de arremesso do público geral aos veterinários. Se os exames são caros e as pessoas não podem pagar, somos acusados de só querer dinheiro; se as cirurgias são caras, temos de fazê-las de qualquer modo porque somos veterinários em se não as fizermos é porque não gostamos dos animais. Tudo isto é uma pressão gigante sobre os veterinários e acho que poucas pessoas têm noção disto.
Para além da maior taxa de suicido, a medicina veterinária é das profissões com maior taxa de abandono profissional. Ou seja, as pessoas formam-se e passados alguns anos desta pressão, desistem de ser veterinários.
No meio de tudo isto, ainda lidamos com a eutanásia, o que torna a morte muito próxima do nosso dia-a-dia. Aquilo que separa a sanidade mental da insanidade é uma linha muito ténue e, por vezes, basta uma fase mais difícil, ou um momento de maior solidão ou de mais tristeza… E a verdade é que muitos colegas põem fim à vida e às vezes fazem-no mesmo nas clínicas com as medicações de eutanásia dos animais.
A pressão a que somos submetidos, a sequência de burnouts e as taxas de suicídio são problemas muito graves na medicina veterinária. É fundamental criarmos mecanismos para alertar os colegas, porque é normal sentir estas pressões e não é preciso chegar ao ponto em que se decide que está na hora de pôr fim à vida por terem de lidar com isto. E, por outro lado, é importante que a sociedade comece a olhar para os veterinários como pessoas que adoram os animais sim, mas que o seu trabalho é como outro trabalho qualquer, o qual implica despesas e contas para pagar. É importante que deixem de colocar tanta pressão nesse sentido. Este tipo de formações, como é o caso da palestra do André, servem para transmitir formas e mecanismos internos para lidar com tudo isso.
Que outros contributos esta iniciativa dá aos os profissionais da Região?
Para quem vive e trabalha nos Açores, no geral não há sequer hipótese de formação contínua e, como acontece com todas as outras ciências, a medicina veterinária está em constante evolução. Como tal, para nós é fundamental acompanhar este processo. E para termos acesso a isso nos Açores, o que temos de fazer? Temos de ter custos superiores comparativamente a quem vive no continente pois isto implica sempre uma deslocação de avião, estadia, dias em que as clínicas ficam sem pessoas ao serviço, etc. Assim, aquilo que quis fazer foi trazer a formação cá e acredito que isso tem um grande impacto numa componente técnica promovendo o contacto com novas ideias, teorias, tratamentos, etc.
Para além disso, há a questão da saúde mental e o facto de a vida não se resumir a trabalho. O convívio também é muito importante pois muitas vezes sentimo-nos sozinhos, ou seja, naquelas situações que os problemas não se resolvem e não temos ninguém por perto para falar sobre isso, muitas vezes não sabemos que a pessoa do lado está a viver o mesmo que nós com um caso parecido. Assim, acredito que estas jornadas contribuem muito numa perspectiva evolutiva, quer na parte técnica, quer de união da classe médico-veterinária.
Este ano decidiu incorporar o conceito de Travel and Learn, nomeadamente com um passeio de whale watching? Pode explicar melhor o conceito e como se insere nas características específicas da região?
Por um lado, este conceito tem a ver com a oportunidade de arranjar ferramentas para descomprimir e para fomentar o convívio entre os colegas. Mas, por outro lado, também é uma forma de tornar este evento atractivo para os colegas que não vivem cá. Na primeira edição tivemos perto de 120 participantes e este ano temos quase 200. Pois, ao contrário daquilo que aconteceu na primeira edição, este ano temos cerca de 15 colegas do continente que acredito terem se sentido atraídas por este conceito. Ou seja, viram que haviam umas jornadas com temas e oradores interessantes, mas até aí não há nada que não possam ter acesso no continente. No entanto, perceberam que, ao lado das jornadas, também têm a oportunidade de passar uns dias na ilha e, inclusive, ter a experiência de ver baleias nos Açores. Para além do contacto entre colegas, atrair pessoas de fora tem essa mais valia: é bom para a Região! Numa altura em que ainda não estamos na época alta do turismo, só para este evento temos mais de 20 quartos de hotel preenchidos, um almoço com 130 lugares marcados e dois barcos de whale watching cheios. Há uma dinamização de tudo aquilo que está à volta do evento e, neste sentido, quero sempre fazer com que todos os envolvidos ganhem algo.
O evento é gratuito para os profissionais de medicina veterinária da Região…
Este é um evento sem fins lucrativos e ofereço a entrada a todos os colegas da Região. E como é que faço isto? Entre pessoas que conheço, de farmacêuticas, distribuidores, etc., peço um donativo para cobrir os custos do vento, ou seja, pago a passagem e a estadia dos oradores e ofereço códigos de convite a todos os colegas da Região. Assim sendo, eu não ganho nada com isso para além do prazer de ver concretizar esta iniciativa que acredito ser apreciada por todos. E, claro, é essa a minha motivação. Mas, quem se envolve comigo nesta iniciativa acaba por ganhar: o hotel, o restaurante, a empresa de whale watching Terra Azul, que são os nossos parceiros. Portanto, acabamos todos por ganhar alguma coisa.
Para além disso, o evento já está a ter algum impacto a nível nacional, nomeadamente em meios de comunicação com destaque na revista Veterinária Atual. Portanto, este ser um evento que coloca os Açores no mapa para mim é um orgulho enorme.
Quais são as expectativas para uma terceira edição das Jornadas Regionais de Medicina Veterinária?
A Região é, por si só, um local atractivo e este evento que está a crescer tem muito potencial para continuar nesse sentido. No entanto, a verdade é que eu já não consigo fazer isto completamente sozinho e apenas com base em apoios de particulares. Para continuar a crescer, seria necessário haver alguma abertura ou interesse da parte pública — da Câmara Municipal e do próprio Governo Regional. Ou seja, se eventualmente conseguirmos um orçamento mais alargado, conseguiremos promover um evento maior, mais sustentado e com mais apoios. Se não for o caso, e impendentemente disso, as jornadas vão continuar, mas talvez não atinjam a sua máxima potencialidade na medida em que estamos financeiramente limitados.
Daniela Canha