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Professor João Miranda enaltece profissionais de saúde pela forma dedicada como decorreu a sua recente cirurgia ao coração

No regresso a casa, “Vêm-me as lágrimas aos olhos e desato num pranto, afinal os meus anjos sem asas, que diariamente trataram de mim, ainda têm o poder divinal de me proporcionar memórias que me apaziguam e me fazem ter esperança no amanhã!”

Anjos sem asas

“Grato, gracias,
que viajes e que voltes,
que subas ou que desças.
Está entendido, não preenches tudo,
palavra grato, mas onde aparece
tua pequena pétala escondem-se
os punhais do orgulho
e aparece um centavo de sorriso.”

                           Pablo Neruda

Os personagens do texto são reais, embora os nomes sejam ficcionados. O uso de nomes fictícios mantém o anonimato de todos o que passei a venerar e que ficarão para sempre neste meu coração renovado. Relato, de uma forma genuína e simples, os momentos que passei aquando da operação a que foi submetido a 14 de março, operação que foi um sucesso, embora o pós-operatório e a recuperação tenham sido (e estão a ser) etapas de dificuldade acrescida.
Quem é professor sente, nos muitos locais por onde passa, o privilégio do reconhecimento do seu trabalho e do carinho que dispensou, de forma natural e fruto da vivência diária com os alunos. Para além dos alunos, acabamos por criar laços de amizade e respeito por muitos pais e mães dos nossos alunos. No meu internamento, senti, mais uma vez, que ser professor é um privilégio: ajudamos a formar excelentes profissionais e cidadãos e ganhamos o reconhecimento de cada um deles.

“Vai correr tudo bem…”

Na madrugada de 14 de março, uma daquelas quintas-feiras de frio, marcada pelo silêncio da noite avançada e do início de um novo dia, à boleia do meu primo, sigo rumo ao hospital da CUF, carregado de uma ansiedade mal disfarçada. Seis e meia da manhã, dou entrada na receção das urgências, onde uma ex-aluna me recebe com um sorriso e me encaminha para uma enfermeira que me leva ao quarto onde permanecerei até ao início da cirurgia. Chegado ao quarto e depois das explicações relativas à localização dos locais que passaria a usar, a simpática enfermeira entrega-me uma touca, uma bata, um líquido gel desinfetante e uma lâmina de barbear para a depilação do local onde irei ser submetido à cirurgia. Depois da mudança de roupa e de me preparar de acordo com as instruções, aparece o meu futuro colega de quarto, vindo do Nordeste e que irá ser operado a seguir a mim. A operação atrasa-se e pelas 12 horas vêm-me buscar. Deitado na cama que me transporta pelo corredor e com a ansiedade e receio a acompanhar cada décimo de segundo da viagem até à sala de operações, vou tentando gerar no meu cérebro pensamentos positivos. Sou entregue à enfermeira que faz parte da equipa que procederá à cirurgia. Um a um vão chegando os restantes elementos, todos bem-dispostos. O cirurgião, de forma simpática, resume os procedimentos e sossega-me, dizendo que vai correr tudo bem. A última coisa que me lembro é do ligeiro calor do cobertor que, entretanto, me colocaram antes do início dos procedimentos.

“Com fios feitos de lágrimas
passadas…”

Acordar de uma operação é uma sensação única, é como se tivéssemos adormecido a meio de uma série e ao acordar não nos lembramos em que parte do enredo tínhamos desligado. Primeira imagem ao acordar foi ver o rosto do simpático e competente cirurgião que me diz “a operação correu muito bem, muito bem!” Tento esboçar um sorriso e dizer obrigado. “Agora vai para outra sala (a dos cuidados intensivos) onde vamos cuidar de si.” Não tenho ideia da hora a que fui levado na cama, que seria o meu lar, nos próximos dias. Adormeço com facilidade e em todos os momentos sou assolado por sonhos ligados à minha infância e origem. Nos sonhos (e na realidade) sou um menino do Huambo e tal como no célebre poema de Manuel Rui Monteiro, imortalizado pela voz de vários cantores: Paulo de Carvalho, Rui Mingas, vejo-me a correr e a brincar “Com fios feitos de lágrimas passadas/os meninos de Huambo fazem alegria/constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas /e no céu descobrem estrelas de magia/com os sorrisos mais lindos do planalto/fazem continhas engraçadas de somar/somam beijos com flores e com suor e subtraem manhã cedo por lua”. Certamente, nas cruzadas do universo, existirá uma razão para os meus sonhos, pós-operatórios estarem ligados à minha infância e à música e letra dos Meninos do Huambo.
Acordo desse sono profundo, um rosto desconhecido diz-me: “Bom dia, senhor João, eu sou o X e hoje e amanhã vou estar aqui para cuidar de si!”. Respondo, num estado zombie, de quem está a tentar situar-se no tempo e no local: “Bom dia, ok, obrigado,” respondo tentando ser o máximo simpático. “Vamos lavá-lo e se algo o estiver a incomodar ou a doer, diga, por favor! Lavado e acomodado, recebo a visita do técnico de raio X e, revelada a radiografia, é detetado um problema: um pneumotórax. Imediatamente sou rodeado pela equipa médica, sendo submetido a um dreno que, apesar da morfina injetada, me doeu para caramba. Fico com mais aquele tubo no corpo e com mais vigilância. Sei que ao final do dia recebi a visita das minhas gémeas, assim como ouvia-as falar pelos cotovelos, fruto do nervosismo. Durante a noite, senti a presença dos primeiros anjos, em especial de uma mãe de ex-alunos meus. Durante toda a noite senti-a a monitorizar o dreno, assim como a ver como estavam os meus sinais vitais. Não descolou dos arredores da minha cama e de manhã, quando acordei, com um sorriso, perguntou-me “Como te sentes Jomi? Tens dores?” “Bem obrigado, não tenho dores, só quando me movimento”. Foram dois dias naquela sala, vigiado e apaparicado por uma equipa de anjos, sempre solidários e, em qualquer solicitação, lá estavam. Senti com um calafrio e uma lágrima nos olhos, o momento em que uma das médicas, depois de ver o resultado positivo do raio X do dia, diz “ até me arrepio de saber que está melhor!”. Antes de sair daquela unidade de cuidados intensivos, recebo a visita inesperada de dois ex-alunos, um médico e outra enfermeira, os dois para me mimarem com um sorriso e desejo de melhoras! Levado na cama que me iria acompanhar durante os sete dias de internamento, vou para o quarto que me acolheu e recebeu a 14 de março, onde já está o meu amigo e companheiro de internamento.

‘Nó de imensa gratidão…”

Naquele terceiro dia, depois de uma noite mal dormida e de nos dias anteriores não ter comido nada, chegou o pequeno-almoço: chá, pão e doce. O primeiro pedido foi para me ajudarem a arranjar uma posição na cama que me permitisse ingerir os alimentos, pedido que iria repetir nos restantes dias de internamento. A primeira operação consistiu em separar o emaranhado de fios dos aparelhos que vão fazendo a leitura dos nossos sinais vitais, permitindo detetar anomalias em tempo real. Depois de vencida esta etapa, com a ajuda da enfermeira e da auxiliar, consigo uma posição na cama que me permitirá comer e beber. Encho-me de coragem e pergunto à auxiliar: “Não se importa de me servir o chá e açúcar,

abrir o pão e colocar o doce?” Ela, com um sorriso e uma voz delicada, responde “Não tem mal, estamos cá para ajudar, senhor João!” Com desenvoltura, deposita o invólucro do chá na caneca, abre o pacotinho do açúcar e despeja-o na chávena. De seguida, abre o pão e espalha aquele doce vermelho sangue.” “Obrigado, muito obrigado, agradeço.” “De nada, senhor João!” Fico a sós, com um nó de imensa gratidão na garganta. Retiro o saco de chá da chávena e mexo melhor o açúcar. Corto o pão em duas metades, ensopo a primeira na água quente do chá e levo à boca: uma iguaria! Sacia-me a sede, emudece-me os lábios que estavam extremamente secos e apazigua o estômago que estava vazio. Absorvo cada um desses momentos, em intimidade e delicio-me com aquele pão e aquela água de chá, a melhor refeição até aquele dia. Um dos efeitos daquele pequeno-almoço foi trazer-me à memória a minha saudosa mãe. Ela, quando eu estava doente, mimava-me com o leite e café, com açúcar à fartura, e o pão e manteiga para eu molhar no galão e saborear o gosto da manteiga e do pão. Os meus braços estão marcados pelas inúmeras picadelas das agulhas, sendo que num deles, o tubo do soro acompanha os movimentos da minha mão, como se aquele apetrecho fizesse parte da minha estrutura. No nariz reside o tubo de oxigénio e no dedo está instalado o sensor das diferentes medições necessárias a controlar os dados vitais. Fecho os olhos e imagino os passos seguintes, levantar-me da cama, ir à casa de banho, lavar o rosto e os dentes e tomar um duche. Acordo para a realidade com a voz da enfermeira: “Sr. João, vamos lavá-lo, retirá-lo da cama e mudar a sua roupa de cama. Hoje está com melhor aspeto!” São momentos em que nos sentimos despidos de toda e qualquer autonomia. Diariamente, escovar os dentes, lavar a cara, tomar banho e vestirmo-nos são rotinas que não valorizamos, mas que ao ficarmos sem elas percebemos que perdemos a nossa intimidade e integridade. Aqueles anjos, com arte e engenho, tal como o senhor X, substituem os nossos braços e com mestria lavam o nosso corpo e afagam a nossa alma, fazendo com que a nossa autoestima ainda perdure.

E os Anjos: “Bom dia professor”

No quarto dia, acordo com um “Bom dia, professor!” Fico confuso se estou a sonhar ou se estou acordado. Aos pés da cama está uma ex-aluna, agora médica. As feições e o sorriso são os mesmos, mas não pode ser um sonho, pois o local não me parece o mais apropriado para uma aula de matemática. Recebo com emoção o seu diagnóstico e as suas recomendações médicas. Para espanto meu, no dia seguinte, o acordar é idêntico, agora com outra personagem, também ex-aluna e que a partir daquele dia ficou responsável pelo meu acompanhamento. Dois anjos que souberam cuidar de mim.
Recordo, com muito carinho, a forma mimosa, profissional de cada um dos enfermeiros e auxiliares que diariamente me acompanharam. Preocupados com a minha falta de apetite e de nada comer, recebi a visita da nutricionista que ajustou o meu almoço e jantar, de forma a eu poder comer melhor. Falta referir a terapeuta, munida de uma paciência de Santa Madre Teresa de Calcutá. “Vá, vamos lá repetir, agora são só 10 minutos”. Como o Einstein tem tanta razão, 10 minutos são muito relativos, ali, naqueles exercícios, pareciam 100 anos! “Senhor João, vá lá, só faltam 3 minutos.” “Tem a certeza que o seu relógio não está variado?”, perguntava eu.
São estes profissionais que nos dão alento e dignidade nos momentos em que passamos a não autonomia e dependemos deles. São eles que, para além dos conhecimentos profissionais, têm um levado espírito humanista. São estes anjos sem asas que me salvaram. Obrigado. Para o cirurgião, uma palavra especial, para além de um profissionalismo e conhecimentos científicos imaculados, é um ser humano simples e maravilhoso.
No regresso a casa, ecoa, como se estivesse presente no meu cérebro, o magistral tema de Caetano Veloso “Às vezes no silêncio da noite … eu fico ali sonhando acordado juntando o antes, o agora e o depois…No silêncio da noite…”. Louvável dom que o ser humano tem, o de poder, em determinados momentos, na intimidade, aquecer a alma e ter uma sensação de paz, pela voz imaginária do Caetano. Vêm-me as lágrimas aos olhos e desato num pranto, afinal os meus anjos sem asas, que diariamente trataram de mim, ainda têm o poder divinal de me proporcionar memórias que me apaziguam e me fazem ter esperança no amanhã!

João Miranda

Título, entrada e entre-títulos da responsabilidade da redacção
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