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Crónica da Madeira: Marta e Carlos a Madeira estar-vos-á grata por terem feito do Ballet uma dádiva de amor aos madeirenses

“Nestes tempos de incertezas, os gestos solitários e solidários do bailarino são um convite e um apelo a uma nova aliança da cultura e da natureza, do indivíduo e da sociedade, do passado e do futuro.”

Passaram-se mais de cinquenta anos do dia em que encontrei o Carlos Fernandes e a Martha Ataíde, deles me apaixonei atraído pela dança: dois dos melhores bailarinos da Companhia de Bailado da Fundação Gulbenkian. Desde muito novo que o ballet, como expressão de arte, chamou-me a atenção, talvez porque encontrei na linguagem corporal o discurso da beleza, salvadora do mundo. Razão que me levou, quando cheguei a Roma, onde me fixei, procurar nos programas culturais os espetáculos de ballet. Assim pude ver, ao vivo, as duas maiores estrelas do bailado mundial: Margot Fonteyn e Rudolph Nureyev.
Martha Ataíde e Carlos Fernandes são portadores de currículos que atestam da alta qualidade e profissionalismo que bem caracterizam o êxito das suas carreiras. Eles sempre viveram para a dança e sempre procuraram enriquecer os seus conhecimentos. Como todos os bons bailarinos, passaram horas, de manhã à noite, a ensaiarem, conscientes de que só dedicando muitas horas à dança, com persistência e tenacidade, atingiriam a meta dos seus sonhos. Percorreram o mundo como bailarinos da Companhia Gulbenkian. Frequentaram as melhores escolas de bailado em Londres. Viveram intensamente as suas carreiras e dessas fizeram laços de amizades. Com esses, internacionalizaram-se.
Quando o Carlos Fernandes se reformou, fê-lo na posição de diretor de cena da Companhia Gulbenkian. Apesar dos êxitos, dos prémios, ele não deixou nunca de ser madeirense. Preso à ilha por razões familiares e pelo sonho que alimentou durante toda a vida: abrir uma escola de bailado, na sua terra natal. Sonho coadjuvado pela bailarina, sua mulher, Martha Ataíde. Conhecendo este seu desejo, fui ao seu encontro a fim de convidá-lo a concretizar o seu sonho. Antes, porém, falei, ao Presidente Alberto João Jardim, no projeto e no que representava como uma mais-valia no contexto da nossa autonomia. Ele concordou. Sugeri-lhe, para dar mais força ao convite, que recebesse o bailarino, o que aconteceu, daí a dois dias.
Sendo Secretário do Turismo e Cultura, regozijei com a ideia: crianças e jovens madeirenses, a par de outras instituições de cultura, poderiam frequentar também a escola de bailado, justamente dirigida por dois bailarinos, conhecedores profundos do métier. Ninguém melhor do que eles, frequentadores assíduos das escolas londrinas, para ensinar uma das mais belas expressões artísticas.
Decidida e autorizada, pelo governo, a abertura da Escola de Bailado Carlos Fernandes, era necessário encontrar, no centro do Funchal, instalações adequadas. Depois de terem sido visitados muitos edifícios, finalmente surgiram as instalações que melhor se adaptavam à concretização do projeto: uma antiga fábrica de farinha, na rua Latino Coelho.
Isto passou-se há quarenta anos. Durante este longo período, frequentaram a escola, centenas e centenas de alunos, tendo como diretora artística a bailarina, coreógrafa e figurinista Martha Ataíde, que, com seu marido, imprimiram grande qualidade àquele estabelecimento de ensino. Entre as muitas iniciativas da escola, destacam-se os vários espetáculos levados à cena, entre outros: Coppélia, Petrushka, Cinderella, Quebra-Nozes, Bayadère, Branca de Neve, Giselle. Todos coreografados e com figurinos da categorizada bailarina e diretora artística. O público não poupou nunca os seus aplausos e elogios, bem merecidos pelo trabalho notável realizado.
Martha Ataíde frequentou, como aluna, durante anos e anos, a Companhia Royal de Ballet de Londres, com a qual fez várias digressões, e, simultaneamente, teve aulas particulares com duas conhecidas Mestras do bailado internacional: a Audrey de Vos ea Eileen Ward, ambas inglesas. Mais tarde, Martha Ataíde vai, como professora, dar aulas de dança espanhola, na capital inglesa. Trabalhou com coreógrafos de todo o mundo: Léonide Massine do Ballet Russo, Walter Gore, John Auld, SergeLifar, Roland Casenave, Birgit Culberg, Jorge Garcia, etc. Foi ensaiadora do Ballet Gulbenkian entre 1973 e 1987; de 1985 a 2006, esteve à frente da sua escola de bailado, em Lisboa. Organizou e lecionou, com Carlos Fernandes, os Cursos de Verão Internacionais de Dança da Madeira. Em 1990, a Escola do Bolshoi convida-a para fazer parte do júri dos exames finais. Para o projeto “Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura” coreografou e dançou nas Óperas Carmen e La Traviata. Organizou durante dez anos os Cursos Internacionais de Dança e Teatro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Nos 500 anos da Cidade do Funchal coreografou e dançou nas Sevilhanas, com a colaboração da Orquestra Clássica da Madeira.
Carlos Fernandes é natural do Funchal, foi aluno do curso especial do Grupo Experimental de Ballet, dirigido por Norman Dixon, onde passou a trabalhar depois como profissional. Em 1966, foi elevado à categoria de solista. Em 1968, recebeu o prémio da Casa de Imprensa como melhor bailarino de caráter. Dançou como partenaire de Paula Hinton, num espetáculo para Isabel II, de Inglaterra. Estudou e trabalhou com coreógrafos de renome internacional. Em 1974, estreou-se como coreógrafo. Desempenhou as funções de diretor de cena, especialidade que o leva a Londres para um estágio no Scottish Ballet e no London Festival Ballet. Criou obras para os diversos estúdios coreográficos da Fundação Gulbenkian. É também autor do bailado Touro Selvagem. Foi organizador dos Cursos de Dança Internacionais de Verão da Madeira 80/81/82, coroados de grande sucesso, com a presença de alunos de diferentes países.
Na comemoração dos 20 anos da fundação da Escola de Bailado cria a Companhia de Dança da Madeira que realiza alguns espetáculos.
O sonho de Carlos Fernandes era de ter feito desta Companhia um veículo de promoção da Madeira, internacionalizando-a. Teria sido fácil, uma vez que ele, como diretor de cena, tinha as ligações certas com as várias companhias e empresários, que naturalmente pagariam os cachés negociados. Era só necessário um investimento inicial.Depois, a companhia pagava-se a si própria. Levei a proposta ao governo e, por qualquer razão, não me deu autorização. Antes, tinha encontrado no aeroporto de Paris, o coreógrafo John Auld, com quem conversei sobre o assunto. Nessa ocasião, tinha sido criada a Companhia de Ballet do Mónaco.Ele disse-me: é pena que a Madeira não tenha apoiado o Carlos na iniciativa da internacionalização da Companhia de Bailado. Teria sido um excelente meio de divulgação da Região da Madeira. Não se esqueça do que lhe vou dizer: a Companhia do Mónaco, é ainda praticamente desconhecida. É fraca, mas verá,não serão necessários muitos anos para se tornar famosa e requisitada pelos empresários. Hoje, a Companhia do Mónaco faz digressões pelo mundo, promovendo o principado como local de cultura e turismo. Tinha razão John Auld.
Na realidade, lamento que não tenhamos apoiado a criação da Companhia de Bailado, possibilitando a sua internacionalização, o que teria sido um excelente meio de promoção da Madeira.
Após quarenta anos de lutas, sucessos, sonhos e tantas concretizações de projetos dos bailarinos, Carlos Fernandes e Martha Ataíde, depois de um trabalho gigantesco que os envolveu em despesas avultadas, dos seus patrimónios pessoais, eles estão, neste momento, a encerrar a escola. Encerramento causado pela canalhice de um seu antigo aluno em que, tanto o Carlos como a Martha confiavam cegamente, se apoderou da mesma. A Escola de Bailado Carlos Fernandes já não existe, infelizmente, mas ela viverá na memória de muitos dos antigos alunos que sempre a recordarão com saudade e gratidão, que sempre admirarão os dois notáveis bailarinos, seus fundadores, que muito deram das suas sensibilidades, talentos, criatividade e profissionalismo, à dança em Portugal.
Na Madeira foram pioneiros: introduziram o ballet, dando a oportunidade, a tantas crianças e jovens de se iniciarem nesta expressão artística. Eu sempre lhes reconheci o seu trabalho, porque sempre os compreendi. Eles trouxeram à Madeira uma plêiade de bons bailarinos e criaram, a muitos madeirenses, o prazer e o interesse pelo ballet. Tenho-os acompanhado, nestes dias, com uma certa tristeza, ao esvaziar das instalações: malas cheias de adereços, de um guarda-roupa tão variado e riquíssimo, acumulado nestes quarenta anos, caixas de bijuteria, cenários, álbuns de fotografias, etc. Tem sido uma azáfama, com grupos de operários a desmontar e arrumar, um património que faz parte das histórias da escola e dos seus fundadores. Lá ficarão os espelhos, as mesas, as cadeiras e as barras e o vazio dos olhares que tão entusiasticamente deram vida a um projeto que enriqueceu a Madeira humana e artisticamente.
Este texto é a gratidão de um amigo que vos admira muito e, ao mesmo tempo, a sua homenagem aos extraordinários bailarinos: Martha e Carlos.
Um dia a Martha referiu-me um pensamento de Paul Guth, que tanto me tocou. Com ele termino este meu texto:
“A dança é a mais completa e a mais comovente de todas as artes. É o teatro do corpo, onde este, ao mesmo tempo, constitui o cenário, a ação e o protagonista. Dançar é pôr em causa a própria vida. (…) E, no entanto, a dança é a mais íntima união do espírito e do corpo. Ela é o espírito que dança por intermédio do corpo transformado em fogo…”.

João Carlos Abreu

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