Uma leitura esplendente, retalhos da peregrinação, trabalho da memória sem rede, nada se vai buscar a diários (que não existem), quando muito a depoimentos alheios, que ajudam a clarificar factos, lugares e situações. Sempre questionei o que leva o bardo a socorrer-se (com ou sem alegoria) de uma ilha ou ilhas na sua épica lírica, dirá mesmo num dos seus livros (Vinte Poemas para Camões, 1992) “Cada texto é uma ilha onde o autor/persegue como ninfas as palavras”. É quase um cânone na literatura memorial trazer à cena os ancestrais e com que fôlego e orgulho dessa genealogia ele nos fala de um martírio em plenas lutas liberais; temos a escola, o crescer no Estado Novo, “cada um no seu lugar”, a estadia em Lisboa, depois o Porto, chegou a hora de ingressar na Coimbra do Choupal, a poesia começa a ferver-lhe no sangue, e ferver com fervor, as suas considerações sobre o Romancero Gitano, de García Lorca, é pirotecnia insuperável:
“Trata-se de uma obra de vanguarda, uma revolução da linguagem através da reinvenção dos romanceiros, com uma riqueza metafórica extraordinária. É o que há naquele livro, uma energia, um ímpeto mágico que lhe dá uma dimensão universal como poucos livros de poesia moderna conseguiram. Não só por Lorca ter sido fuzilado, mas por ser poesia em estado puro. Antes dessa tragédia, já o Romancero Gitano andava a dar a volta ao mundo. As castanholas e as guitarras estão dentro das palavras, as facas brilham, os cavalos galopam nas estrofes, a lua tem uma lâmina cravada e escorre sangue, o vento é verde, há uma tribo de ciganos no romance sonâmbulo, de repente todos os rimances estão neste romance, que é da luz, é certo, mas também outra Espanha recriada por uma linguagem poética nunca vista.”
E há a vivência de Alegre no movimento associativo, o teatro, a campanha de Humberto Delgado, as eleições académicas, os confrontos entre a esquerda e a direita são diretos e rigorosos. E chegou a hora de partir para Mafra, mais adiante deram-lhe uma guia de marcha para o Batalhão Independente de Infantaria nº18, nos Arrifes, qualquer coisa como a sete quilómetros de Ponta Delgada, ele vai descrever a sua estadia.
“Aluguei um quarto numa casa que recebia militares e funcionários. Jantava numa pensão de cujo nome já não me lembro. Era dezembro. Noites frias. Não conhecia ninguém. Trazia comigo a agitação da luta estudantil, os momentos de festa, tinha uma namorada nova, não me lembro de nada tão triste como esses jantares solitários, seguidos de um breve passeio pelas ruas desertas de Ponta Delgada. Era quase um exílio.” E descreve a sua vida nos Arrifes: “Manhã cedo vinha um jipe buscar-me para o quartel que ficava nos Arrifes, lá no alto, por assim dizer dentro das nuvens. Ao princípio não entendia os recrutas, quase todos de origem rural e do interior da Ilha; acho que eles também não percebiam o que eu dizia. Um dos furriéis fazia de intérprete. A pouco e pouco começámos a decifrar-nos numa língua que era e não era a mesma. Havia um ambiente de maior descompressão do que no continente, pelo menos entre os oficiais, embora todos se queixassem de a sociedade local ser muito fechada e pouco recetiva em relação aos militares.” Descreve algo que podia ter chegado a um levantamento de rancho, tudo acabou em bem, vai ao cinema em Ponta Delgada e conversa com Ernesto Melo Antunes.
A solidão era bem difícil de combater, sentia-se ali como um deportado. “Lia, escrevia, comecei ali a rabiscar os primeiros versos em que se falava do País de Abril. Por acaso, ou talvez não, pouco depois de conhecer aquele capitão viria a ser redator do programa da Revolução de Abril. Talvez Rimbaud tivesse razão e, mesmo para quem não tem o dom do seu génio, a poesia seja sempre uma vidência. Talvez, à minha pequena escala, também eu estivesse a tentar reinventar a cor das vogais. Mesmo durante a instrução andava com versos na cabeça. Experimentava novos temas, novas rimas, novos ritmos. Estava a começar, sem saber, Praça da Canção.”
E toma a decisão de se casar com Isabel, esta chegou no Funchal. “Trazia as alianças, enfiámo-las nos dedos ainda no cais e partimos para o Hotel das Furnas. Passada a breve lua-de-mel, fomos viver para São Gonçalo, uma moradia para oficiais, nos arredores de Ponta Delgada.”
Estabelece novas relações, entre elas António Borges Coutinho, segundo filho do Marquês da Praia e principal figura da oposição antissalazarista em São Miguel, deixa dele uma água-forte muito impressiva:
“Foi uma das amizades fortes da minha vida. Com ele e sua mulher, Conceição. Vivam no Palácio Praia, embora ele estivesse de más relações com o pai. Era um casa singularíssimo. Ele, um aristocrata sergiano e antifascista, leitor de jornais e revistas de esquerda ingleses e americanos. Ela, uma passionária. Quando o António (dizíamos Toni) esteve preso pela PIDE na cadeia local, Conceição atravessava as ruas da cidade com um carrinho de mão onde transportava uma enxerga. Para que se visse e soubesse. Por vezes o Toni ia ao clube da terra, de estilo inglês. Sempre que via um amigo a tomar um copo com o inspetor da PIDE dirigia-se a ele aos berros: Tu não tens vergonha de beber com este gajo?
O espírito de casta das velhas famílias de Ponta Delgada, por mais contraditório que pareça, ainda permitia ousadias destas a um filho de marquês, apesar de ser um eterno suspeito de atividades subversivas.“
A ele e aos seus amigos deu-lhes para formar uma Junta da Ação Patriótica, eles tinham chegado à conclusão que a maior parte dos oficiais, quer os do quadro, quer os milicianos, tinham sido enviados para Ponta Delgada ora por suspeita de participação na chamada Revolta da Sé (major Pastor Fernandes e tenente-coronel Alvarenga) ora por ligação a pessoas envolvidas no assalto ao Quartel de Beja, ora por participação direta em atividades da oposição (Melo Antunes), ora por ação direta no movimento estudantil.” Ainda se sonhou num golpe revolucionário para tomar a ilha. Mais adiante, quebrada a ilusão, foi noticiada a visita do Presidente da República aos Açores no mês de julho de 1962. Produziram panfletos em grande profusão, entravam nas povoações a horas mortas, enviavam os papéis por debaixo das portas ou nas caixas do correio, deu escândalo. “A PIDE teria dito ao Governador que era preciso agir e o Governador teria respondido que não podia prender 90% dos seus oficiais. Há sempre outra solução. Guias de marcha, ala para a guerra. O primeiro fui eu. Recebi ordem para me apresentar no Depósito Geral de Adidos, em Lisboa, a fim de seguir para a Angola. Dias muito tristes. Custou muito deixar aquela cidade a que, no princípio, tinha sido tão difícil adaptar-me. Ainda nos juntávamos à noite. Mas estávamos todos como que entupidos. Um nó na garganta. Tinham sido tempos muito intensos, com amigos como seria difícil encontrar assim.”
O leitor que se prepare para uma viagem avassaladora, Alegre partirá para Angola, combate, é preso, regressa, foge a salto, conhece Argel e Paris, são dez anos de exílio, regressa a 2 de maio a Portugal, já era então muito conhecido pelos seus primeiros livros, já tinha produzido aquele que é indiscutivelmente o mais belo poema de toda a literatura de guerra colonial, Nambuangongo, Meu Amor. Para que conste. É uma viagem avassaladora e uma gema literária da literatura memorial, estas Memórias Minhas.
Mário Beja Santos