José Soares lança livro ‘Peixes do meu Quintal’ a 24 de Abril no Forte de S. Brás
Correio dos Açores – O que é a Lusologia?
José Soares – Lusologia é um dos temas sob o qual nós temos escrito muito, já desde 1979/80. É tudo o que diz respeito aos lusos. É uma invenção que eu fiz, uma junção de duas palavras, os lusos e as logias que dizem respeito aos lusos, formando uma nova palavra. As línguas são vivas. É como outra palavra sobre a qual tenho escrito que é ‘hidrotório’. Nós temos o maior hidrotório da Europa, a maior Zona Económica Exclusiva. Hidro (água) e torrio de território.
De que trata o seu livro ‘Peixes do meu Quintal’?
Este livro é uma colectânea de crónicas que temos vindo a escrever, sobretudo, no Diário dos Açores, que foi onde começamos quando o Osvaldo me convidou há uns 10 anos atrás. Nessa altura, já fazíamos crónicas para o Açoriano e, depois, o Osvaldo Cabral convidou-me e eu aceitei. O livro é essa colectânea de crónicas ‘Peixes do meu Quintal’. E o nosso quintal é o oceano …
Começou no Correio dos Açores…
Começo a minha actividade jornalística em 1970, no Correio dos Açores. O livro tem uma fotografia desta altura. Daí para cá nunca mais parei. Tenho também uma foto das pessoas que escreveram para o cinquentenário do Correio dos Açores e o jornal já tem mais de 100 anos.
Nasceu onde?
Ponta Delgada, São José. Fiz a escola primária no Campo de São Francisco até à quarta classe. Depois fui para a Escola Comercial e Industrial de Ponta Delgada, junto do Teatro, onde fica hoje em dia a Escola Roberto Ivens. Fiquei lá até ao sétimo ano.
O que se seguiu?
Fui para Lisboa, onde frequentei a Universidade Católica. Tirei o curso de História porque, na altura, não existiam cursos de Comunicação Social. Trabalhava de dia e estudava à noite.
Interrompi o estudo para ingressar no exército. Ou interrompíamos o curso para fazer o serviço militar obrigatório e depois, no fim deste serviço, regressávamos e terminávamos o curso, – e isso era daquelas coisas que atrasava muito a vida das pessoas – , ou então pedíamos ao Ministério da Guerra para nos adiar o ingresso no serviço militar até acabar o curso. Havia estas duas opções. Eu interrompi porque não queria ficar em Portugal.
A primeira crónica no Correio dos Açores foi censurada. Era sobre a Helga, o segredo da maternidade. Mesmo assim tem umas coisinhas que deixaram passar.
Foi para onde no Ultramar?
Fui para a Guiné-Bissau.
Como foi a sua missão?
Geralmente não falamos nela. A guerra é o expoente da estupidez humana. Estive na frente da guerra, no mato.
Tem recordações desse tempo?
Tenho coisas escritas sobre isso que ainda não foram publicadas. Estou em vias de terminar um romance, onde talvez algumas coisas dessa altura entrem numa história fictícia do romance em si. A ficção, ao fim e ao cabo, é tirada das experiências e as experiências são transformadas em ficção. Tudo é ficção.
Mas a guerra não foi ficção, foi uma realidade…
Digamos que sim…
Quanto tempo esteve na Guiné?
Estive lá durante 28 meses, que foi o tempo da comissão. Na Guiné a missão era mais curta do que nas restantes colónias.
Em que zona da Guiné ficou?
Fiquei na Aldeia Formosa, Mampatá.
Porque é que se chama Aldeia Formosa?
Porque Mampatá pertencia ao concelho da Aldeia Formosa. É apenas a referência porque existe outra localização que se chama Simpatá. Então, para não haver confusão com os nomes, chamávamos de Mampatá, Aldeia Formosa.
Quando regressa a Lisboa?
Regressei a Lisboa em Janeiro de 1973. E depois de ter falado da Guiné com o general Spínola, (ele falava com todos), com ele a pedir-me para ficar mais tempo na comissão, eu recusei. O general até disse que as coisas iam mudar, mas disse-lhe que já ouvia a conversa de que as coisas iam mudar há muito tempo. Então decidi sair do país.
E foi para onde?
Fui para o Canadá, mais propriamente para Quebec. Mais ou menos dois meses depois ingressei no Algonquin College, um colégio de ensino superior. Na altura, não havia cursos em francês, então tirei em inglês. E foi aí que tirei o curso de Comunicação Social.
Quando casou?
Casei em 1973. O meu primeiro casamento. Tinha uma noiva que já namorava desde a Escola Industrial e casamos no Canadá. Tenho três filhos e oito netos.
A Comunicação Social não dá dinheiro, ou seja, não se enriquece com isso. Uma boa parte dos jornalistas investem amor no que faz e não por dinheiro. Está ali porque gosta daquilo, das histórias, do cheiro a tinta e de tudo o mais.
É fácil lançar um jornal no Quebec?
Não será fácil. Quando és tradutor, traduzes as línguas estrangeiras para a tua língua materna. Ser editor de um jornal em português, o Comunidad em 1973, num país estrangeiro e com língua estrangeira, não é fácil. Obviamente que o jornal era, essencialmente, dirigido para a comunidade de expressão portuguesa, sem dúvida nenhuma.
Lê-se em português no Quebec?
Lê-se, embora tivesse as suas limitações. Nós sabemos que as comunidades emigrantes daquela altura, sobretudo dos anos 50/60/70, eram pouco escolarizadas. Claro que dependia da edição que fizesses. Se fosse mais apelativa, tinha mais sucesso. E o jornal era distribuído gratuitamente.
Conseguia ter publicidade?
Sim, claro. Era através da publicidade que conseguíamos fazer as edições. Foi assim que fizemos. Ao mesmo tempo, fizemos rádio e televisão, sempre em português. Era num canal francês no Quebec. E, paralelamente a essas coisas, ingressei, a convite de um deputado local, (e não nos devemos esquecer que as eleições lá são uninominais que é um sistema diferente do nosso) no Partido Liberal, convite que aceitei. Então fiz, também, carreira na política canadiana.
Fomos subindo na pirâmide, e cheguei até a fazer campanha com o pai do actual Primeiro-ministro, Justin Trudeau, que é o falecido Pierre Elliot Trudeau. Depois, participei no primeiro referendo para a independência do Quebec em 1980. Nessa altura, combatemos o referendo. Estava no Partido Liberal e foi a minha visão na altura por falta de, se calhar, de conhecimento, da realidade canadiana, o que hoje, aliás, reconheço.
Trabalhei com o Partido Liberal a confrontar e a combater a separação do Quebec. Mais tarde, me 1995, aquando do segundo referendo, eu já tinha feito uma evolução bastante acentuada de integração no Canadá e, nessa altura, compreendi que as razoes do Quebec. Antes, em 1980, desconhecia, em termos históricos, o que tinha acontecido e os porquês da ambição do povo do Quebec para a sua soberania. Por isso, em 1995 abracei o sim e fui convidado pelo Primeiro-ministro da altura, Jacques Parizeau, a ingressar nas campanhas do segundo referendo. Nesse ano fui chamado pelo Primeiro-ministro canadiano, que era o Jean Chrétien, quebequense que me tentou virar as ideias, algo que era normal.
Eu era usado e bem usado, sobretudo com as etnias – as italianas ou de língua hispânica, os portugueses. Era, sobretudo, com esses que falávamos. Eram piscinas de tubarões e eu era uma sardinha no meio daquilo. Eles eram, naturalmente, contra a separação do Quebec. Os emigrantes enquanto emigrantes, são emigrantes porque sentiram instabilidade nos seus países de origem, de uma forma ou de outra, de várias formas: económica, social, ou outras e por isso emigram.
Quem está bem no seu país de origem, não emigra. Ao sentirem instabilidade emigram e querem a paz social e política, se possível. Portanto, são, naturalmente, contra qualquer sobressalto, qualquer terramoto que vá contra isso.
Tínhamos de fazer campanhas de pedagogia e explicar a eles o que eu também tinha acabado de aprender sobre o Quebec e as razões que levaram 6 milhões e tal de pessoas francófonas a pedir o reconhecimento à sua identidade enquanto povo, língua e cultura. Hoje são quase 9 milhões. É quase a população de Portugal.
Fui convidado, numa campanha eleitoral para o Governo do Quebec, que já me tinham prometido a Emigração, através de um deputado muito influente do partido. Mas eu desisti porque já tinha ideia de regressar. Eu fazia muitas viagens aos Açores e a Portugal por questões comerciais.
Paralelamente a isto tudo, abrimos ourivesarias no Canadá.
Teve ourivesarias no Quebec?
Sim.
Foi um bom negócio…
Naquela altura foi um bom negocio, hoje não seria. Tudo tem o seu tempo.
Vendeu as ourivesarias?
Sim, vendi. Antes de decidir reemigrar na minha própria terra. Então, decidi vender tudo lá e vir para cá.
Veio para São Miguel quando?
De uma forma mais definitiva foi no ano 2000. Exactamente no virar do milénio.
E veio porquê?
Porque sair da ilha é a pior maneira de ficar nela.
Nunca perdeu as saudades pela ilha…
Não.
Trouxe a esposa e os filhos para São Miguel?
Os filhos ficaram lá. A minha primeira esposa, entretanto, faleceu, a mãe dos meus filhos. E quando vim para cá já conhecia uma companheira, com a qual vivi muitos anos, até casar em 2009. Foi numa Quinta-feira, que acordei mal disposto e disse: “olha amor, vamos casar”. (risos). Já estávamos juntos há mais de 20 anos. E casamos. Como dizem os brasileiros, com papel passado. (risos).
Quando regressa a São Miguel, fica a fazer o quê?
Em São Miguel eu tenho um membro da família que me levou um dia a fazer um piquenique a um sítio que chamavam Praia dos Moinhos e que eu não fazia ideia de onde era. Eu cresci em Ponta Delgada e, naquela altura, Ponta Delgada era a ilha de São Miguel, o resto não existia. De bicicleta era um pouco longe para ir lá. Não sabia o que era, embora já tivesse ido para aqueles lados uma vez, quando fui pedir aos pais da minha primeira mulher autorização para namora-la. Naquela altura era assim. Ela era dos Fenais da Ajuda. Levamos 1h45m para chegar lá. Aquilo para mim era muito longe.
Como se instala no Porto Formoso?
Foi acidental. Nos anos 90 começo a fazer muitas viagens a Portugal e no, regresso, parava sempre nos Açores. Ficava em Ponta Delgada em casa desta minha prima, e quando me convida para fazer um piquenique numa praia eu concordei. Fomos para lá, até havia umas bostas de vaca lá na areia porque havia um senhor que levava as vacas para a praia, uma a duas vezes por mês, para lavar as tetas com água salgada. Parece que isto fazia bem às vacas. Agora, têm químicos para isso e não levam as vacas para a praia.
Eu tenho uma dependência. Sou dependente de café. Então quis tomar um café depois do piquenique na praia. E indicaram-me que teria de ir a uma taberna na freguesia tomar um café, ao senhor Luís dos Ovos. A sua taberna ficava perto do porto e estava cheia de pescadores. Este foi o meu primeiro contacto com este povo, de que gostei muito. Eles ensinaram-me muito.
No regresso fiquei a pensar como é que um sítio tão bonito, que me deixou logo apaixonado, não tinha sitio para tomar café.
Dois ou três dias depois de ficar a pensar nisso, fui lá de novo e encontrei um velho moinho de água. Estou a falar em 1986. Bati à porta do moinho e apareceu-me aquela clássica figura açoriana, de uma senhora de xaile toda vestida de negro, porque já era viúva, e perguntei-lhe se queria vender. Chegamos a um acordo e segui a minha vida.
A seguir tive que restaurar o velho moinho e comprar uma máquina de café.
Restaurou o moinho com o dinheiro do ouro…
(risos) Era a minha vida. Era o que dava dinheiro. A política também dava, não posso dizer o contrário. Já os jornais davam para matar o vício do jornalismo. No fundo, foi sempre o que eu gostei de fazer.
Restaurei o moinho e comprei a máquina de café.
Deixe que lhe diga que o Pedro Almeida Maia vai fazer a apresentação do livro no dia 24 de Abril, às 18 horas no Museu Militar dos Açores, que fica no Forte de São Brás, no Campo de São Francisco.
Ironicamente, eu nasci numa casa a 100 metros dali. E foi ao pai dele, que era um comerciante de materiais industriais para restauração, que eu comprei o material para o primeiro bar do moinho. Mal pensava eu que o filho dele iria apresentar o meu livro anos depois.
Aquela propriedade ainda é sua?
Sim, ainda é minha.
E tem crescido?
Compramos duas ou três propriedades ali à volta, uma que era do Ted Smith, que era treinador do Benfica e que depois veio para cá. (….)
Entendia que o sítio tinha potencial. Na altura, era muito cedo, talvez. Mas, agora, está a chegar a sua altura. Tudo tem o seu tempo.
O que o marcou mais ao longo da sua vida?
Sem dúvida nenhuma que foi a guerra. A guerra marca.
E é a única coisa de que não quer mesmo falar…
Não vale a pena, é tempo perdido. Aqueles que falam muito sobre isso, tiveram pouco que fazer lá. Eram situações perigosas, no meio de muito barulho. O Spínola ia lá muitas vezes para levantar a moral porque sabia que eram sítios de maior operacionalidade. Todas as guerras são tolas, não é?
E hoje o que faz?
Escrevo. Estou a fazer aquilo que sempre gostei de fazer e que, de certa maneira, sempre fiz.
Reformou-se?
Não. Não gosto de me reformar. Não me reformo. Ainda faço tudo o que puder fazer. A cosia que nunca devemos deixar que nos façam é sermos descartáveis como os copos de plástico. Serve-se uma vez e mete-se para o lado. A sociedade hoje tem muito este hábito de descartar aquilo que chamam de terceira idade.
Eu não gosto de reforma, estou sempre no activo. Sob o ponto de vista oficial sim, estou reformado. O Governo, por exemplo, não me aceitaria como empregado, nesta altura. Mas faço tudo. Tenho uma grande polivalência, aprendida alias nas velhas escolas industriais que nos ensinavam muito dessas coisas.
O mal foi termos cortado, depois da instauração da democracia, com tudo o que era salazareno. Mesmo aquilo que era bom. Porque havia coisas boas. Nenhum sistema só tem coisas más. Havia algumas coisas boas. E das escolas industriais, saíam grandes mestres em tudo. Tínhamos cursos de quase tudo. Aprendi essa polivalência e hoje prego pregos, faço construção…
Como olha para a evolução da política açoriana?
Olho com bastante optimismo. Alcançamos em 50 anos, como me disse à pouco, o Américo Viveiros, mais do que nos últimos 500 anos, sem dúvida nenhuma. Embora, com tudo aquilo que possamos criticar, com todo o direito legitimo com que o possamos fazer, mas há um saldo positivo.
O saldo positivo que mais não fora, é a própria liberdade em si que não existia no tempo. E hoje todos nós temos liberdade para mudar. Se não estivermos satisfeitos com o actual sistema, temos liberdade para o mudar. Mas é preciso uma acção cívica, não podemos estar sentados à espera que o Governo ponha e disponha das coisas. O cidadão é o Governo. Apenas delegamos o poder neles, de quatro em quatro anos. O povo é o poder. O povo com liberdade e dentro da ordem social, obviamente, pode sempre mudar as coisas.
Eu sou optimista. Aquilo que vejo hoje em dia é que podia estar melhor. Pode sempre estar melhor, mas também podia estar pior. As coisas são o que são.
Sou agnóstico, embora respeite todas as crenças. Tenho um santo do ponto de vista cultural, que é o Santo Cristo.
Nasci num Sábado de Santo Cristo, no Campo de São Francisco. Ao nascer ouvi logo aquela música e deve-me ter ficado (…).
Todas as vezes que venho a Ponta Delgada, e venho muitas vezes, paro no Campo de São Francisco e se a igreja estiver aberta entro e vou-lhe dizer bom dia. Falamos um pouco um com o outro e depois vou-me embora.
Que reflexão faz sobre a Autonomia dos Açores?
Primeiro, temos de ter as nossas próprias forças políticas. Já não digo que os Açores ou a Madeira sejam independentes. Se nunca houver uma maioria para isso, pois que seja, mas que tenhamos uma Autonomia.
Porque o que temos agora, e eu tenho escrito muito sobre isso, é uma Neo-autonomia. Não é uma autonomia como deve ser.
Neo-autonomia, porquê?
Temos uma autonomia em camisas-de-forças, completamente controlada por São Bento e Belém, em Lisboa. Como? Por exemplo, a Constituição Portuguesa proíbe partidos regionais ou insulares. Não podemos ter. Não podemos fazer qualquer espécie de auscultação popular a não ser que seja nacional. Fizemos a do aborto, que me lembro, mas era regional, mas sim nacional.
Fazer um referendo, seja sobre o que for nos Açores, tem muitas restrições constitucionais…
Vai viver a sua vida nos Açores?
Quem sabe. Ninguém sabe. Tenho vivido até aqui e espero que sim. Não tenho intenção de deixar as ilhas. Considero o Canadá como uma pátria que me acolheu e pelo qual tenho um grande respeito. Até de uma forma especial o Quebec. Tenho essas duas nações às quais estou umbilicalmente ligado, mas obviamente que as raízes da árvore estão enfiadas aqui, nestes picos atlânticos. É difícil arrancá-las.
Poderás cortar uma árvore, mas a raiz fica lá. Até poderá apodrecer mas fica sempre lá.
João Paz/F.F.