Este ano, em particular esta quinta-feira, sucedem-se os eventos a fazer memória do 25 de abril de 1974. Tinha seis anos na altura. Nasci e cresci numa família dividida entre a participação política, de forma militante, com direito à clandestinidade e à prisão, e a participação cívica dentro do que o regime permitia mas sempre com um grande sentido humano que hoje, talvez de forma mais esclarecida, apelidaria de cristão ainda que não fosse vivido totalmente dentro da Igreja.
A minha mãe pertencia à acção católica; o meu pai era um ateu convicto. Confesso que não sei qual dos dois se aproximava mais da Doutrina Social da Igreja na sua acção, na defesa dos direitos das pessoas, sobretudo do direito a uma vida digna e em suficiência material, o que aos olhos da ditadura não era certamente algo tão defensável quanto o possamos julgar pelo alinhamento da hierarquia com o regime.
Vivia em Beja, numa família abastada e instruída e apesar da idade conseguia perceber que o que eu tinha era muito mais do que o que tinha a esmagadora maioria dos meus amigos, porque os meus pais tudo fizeram para que nem eu nem os meus irmãos vivêssemos numa bolha. Apesar de sermos meninos de colégio, brincávamos saudavelmente na rua com todos, todos mesmo.
Reconheço em tantos vizinhos a pobreza; em tantos conhecidos a vergonha de não saber ler e não ter dinheiro para enviar os filhos para a escola; a solidão de tantas mulheres cujos maridos emigravam para poder enviar o sustento para os filhos e lhes dar uma vida mais digna do que a que eles tiveram; a tristeza em tantos olhos que trabalhavam a terra de sol a sol, com as mãos calejadas pelas enxadas dos campos e apenas comiam pão e toucinho, porque as partes nobres do porco, quando havia para matar, ficavam em salmoura para os dias de festa ou para pagar uma consulta ao médico. Conheci muitas pessoas assim. Visitei, com os meus pais, muitas casas onde o melhor que se tinha era para pagar os favores de uma consulta médica ou de uma ajuda financeira.
O Alentejo era uma região de profundos contrastes sociais, sem liberdade, sem desenvolvimento económico, pelo menos para todos – muitos tinham demais e outros nada tinham, mesmo! -, com péssimas taxas de literacia e educação, com condições de habitação indignas para grande parte da população, com valores muitos conservadores a todos os níveis e até uma falsa virtude pública cheia de vícios privados.
Nunca vivi em bolha, até porque o meu pai faleceu pouco tempo depois do 25 de abril e a minha mãe passou a ser o sustento de uma casa onde os filhos estudavam em boas escolas e educação e instrução foram sempre ultra valorizados, mas alguém tinha de trabalhar para pagar. Valemos pelo que somos e não pelo que temos; mas nunca podemos baixar os braços para olhar para os outros e sermos capazes de partilhar. Foi com esta “cartilha” que cresci.
Aos 56 anos de idade, a caminho dos 57, lá para o fim do ano, custa-me a entender que alguns valores como a liberdade, a democracia, a igualdade de oportunidades, o acesso à educação, à saúde ou à habitação, o direito a uma remuneração condigna e ao trabalho estejam hoje a ser postos em causa e que nós não consigamos perceber que estes valores de abril, que para muitos foram uma conquista suada, sejam agora usados, de forma bem ligeira e populista, por alguns que têm um conceito enviesado de democracia. Sobretudo quando olhamos para fora da janela do nosso conforto e percebemos que estão longe de ser consumados para alguns, que infelizmente são cada vez mais. E é desses, que uma vez mais, alguns populistas se estão a aproveitar. Desses e de outros que sempre tiveram tudo, antes e depois do 25 de abril.
Quando somos jovens sonhamos sempre mais alto e achamos que todos os sonhos são possíveis. Na idade do meio, olhamos para a vida vivida e deitamos-lhe contas para ver o que falta cumprir do sonho e se tivermos ainda forças não desistirmos de o perseguir.
Quando olho para certos comportamentos e tendências da sociedade atual, no caminho penoso da radicalização, fico com a sensação de que muitos não só já não sonham como até desejam o regresso ao passado, quem sabe cansados de sonhar, desiludidos com o presente e saudosos da segurança que consideram ter perdido.
Os valores de abril podem não estar só em causa porque a minha geração de políticos não os soube concretizar na sua plenitude e foi suficientemente incompetente para o fazer. Tivemos crescimento, lá isso tivemos, mas nem sempre ele se transformou em desenvolvimento para todos.
Sonhamos um mundo novo mas não tivemos em conta de que nem todos partíamos do mesmo lugar e as desigualdades poderiam ser adensadas.
Deixamo-nos seduzir pela tecnocracia e iludimo-nos com a sociedade do bem-estar, onde a dignidade assenta mais na aparência do que no ser.
Fizemos o país crescer mas não nos preocupámos com os que ficaram para trás, que ficam sempre para trás.
Os valores de abril podem estar mesmo ameaçados porque os transformamos em conceitos e os retiramos a pouco e pouco da vida concreta, dando-lhes apenas carga ideológica sem vida.
Por isso, celebrar abril não é apenas recordar o antes e a revolução. É, sobretudo viver abril “o dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo”, como no verso de Sophia de Mello Breyner.
Ouvir a rua, mesmo quando ela não faz eco; acolher os povos da terra, sobretudo quando fogem da guerra; perceber que ter um trabalho não chega para ter uma vida digna; reconhecer que a habitação e o pão são um direito para a vida.
Celebrar abril é resolver os problemas de hoje. Só haverá democracia e liberdade quando elas rimarem ambas com humanidade e dignidade.
Carmo Rodeia