Caro leitor, hoje irei falar sobre um problema matemático com mais de 2000 anos e que ainda continua por resolver. Este resumo é baseado no documentário “The Oldest Unsolved Problem in Math” da Veritasium.
Alguns dos matemáticos mais brilhantes de todos os tempos, como por exemplo, Euclides (séc III a. C.), Nicómaco (séc. I), Mersenne (séc. XVI), Fermat (séc. XVII) e Euler (séc. XVIII) tentaram resolvê-lo.
O problema consiste em saber se existe algum número perfeito ímpar. Um número inteiro positivo diz-se perfeito se for igual à soma dos seus divisores positivos, excluindo o próprio número. Por exemplo, 6 é um número perfeito, pois os seus divisores são 1, 2, 3 e 6 e, por sua vez, 1 + 2 + 3 = 6. Por outro lado, o número 12 tem como divisores 1, 2, 3, 4, 6 e 12, sendo 1 + 2 + 3 + 4 + 6 = 16, pelo que 12 não é perfeito. Procedendo deste modo para os números entre 1 e 10 000, verificamos que apenas 6, 28, 496 e 8128 são números perfeitos. Estes foram os únicos conhecidos até ao século XIII.
O notável matemático Euclides, 300 a. C., foi o primeiro a referir-se aos números perfeitos na sua obra “Os Elementos”, que lista os primeiros quatro números perfeitos – 6, 28, 496 e 8128 – e apresenta uma maneira eficaz, mas bastante demorada, de se encontrar outros. Recorrendo às potências de base 2, isto é, 1, 2, 4, 8, 16, 32, 64,…, a fórmula de Euclides diz-nos que números da forma (2p–1)×2p-1 são perfeitos sempre que 2p–1 for um número primo (número que só possui 2 divisores: ele próprio e a unidade). Efetivamente, 6 = (22–1)×21, 28 = (23–1)×22 , 496 = (25–1)×24 e 8128 = (27–1)×26. Atendendo a que o fator 2p-1 é um número par, o produto (2p– 1)×2p-1 é um número par e, por conseguinte, os números perfeitos desta forma são sempre pares. Euclides encontrou uma maneira de gerar números perfeitos, mas não provou que essa fosse a única. Portanto, pode haver outro modo de obter números perfeitos, incluindo potencialmente números perfeitos que sejam ímpares.
Quatro séculos depois, o matemático e filósofo grego Nicómaco de Gérasa (60 – 120) publicou Introdutio Arithmetica, o texto aritmético padrão para os mil anos seguintes, e onde enunciou 5 conjeturas, tendo por base apenas os 4 números perfeitos conhecidos. Estava convicto que:
O n-ésimo número perfeito tem n algarismos;
Todos os números perfeitos são pares;
Todos os números perfeitos terminam em 6 e 8 alternadamente;
A fórmula de Euclides produz todos os números perfeitos que existem;
Existem infinitos números perfeitos.
Mas seriam as conjeturas válidas para todos os outros números perfeitos que ainda não se conheciam? Durante os mil anos seguintes, ninguém conseguiu provar ou refutar qualquer uma delas.
No século XIII o matemático egípcio Ibn Fallus publicou uma lista com 10 números perfeitos e os respetivos valores de p. Contudo, enganou-se e 3 deles não eram perfeitos. Ao observar a lista, constatou-se que o 5.º número perfeito tem 8 algarismos, o que refutava a 1.ª conjetura de Nicómaco. Para além disso, o 5.º e o 6.º números terminam em 6 e, portanto, a 3.ª conjetura também era falsa. Feitas as contas, das 5 conjeturas 2 são falsas. E as outras 3?
Dois séculos depois o problema dos números perfeitos chegou à Europa renascentista, onde redescobriram o 5.º, 6.º e 7.º números perfeitos. Até então, todo o número perfeito tinha a forma que Euclides havia deduzido. A melhor maneira de “encontrar” tais números era “encontrar” os valores de p para os quais 2p– 1 era primo.
Assim, o francês Marin Mersenne (1588 – 1648) estudou extensivamente os números desta forma. Em 1644, publicou os seus resultados num livro que incluía 11 valores de p, para os quais afirmava que correspondiam a números primos, ficando os números desta forma conhecidos por “números primos de Mersenne”. Os valores de p indicados foram 2, 3, 5, 7, 13, 17, 19, 31, 67, 127 e 257. Desta lista, os 7 primeiros expoentes p resultam em primos e correspondem aos 7 primeiros números perfeitos. Mas, para alguns valores maiores de p, como 67, Mersenne admitiu não ter verificado se 267–1 era primo, pois levaria muito tempo. Ele discutiu o problema dos números perfeitos com outros grandes matemáticos da época, tais como Pierre de Fermat (1607 – 1665) e René Descartes (1596 – 1650).
Em 1638, Descartes escreveu a Mersenne a dizer “creio poder mostrar que não existem números pares perfeitos, exceto os de Euclides.” Ele também acreditava que, se existisse um número perfeito ímpar, este deveria ter uma forma especial, como por exemplo, o produto de um número primo pelo quadrado de outro número distinto. Caso estivesse certo, estes teriam sido os maiores avanços no problema, desde Euclides.
Mas Descartes não conseguiu provar nenhuma destas afirmações. Em vez disso, ele escreveu “quanto a mim, julgo que é possível encontrar números perfeitos ímpares reais. Mas seja qual for o método usado, leva muito tempo a procurá-los.”
Cerca de 100 anos depois, na Academia de S. Petersburgo, o matemático Christian Goldbach (1690 – 1764) conheceu um prodígio da matemática com apenas 20 anos, Leonhard Euler (1707 – 1783). Os dois corresponderam-se por carta e, em 1729, Goldbach apresentou-lhe o trabalho de Fermat. No início, Euler ficou indiferente, mas depois apaixonou-se pela Teoria dos Números e passou os 40 anos seguintes a trabalhar em problemas dessa área. Entre eles estava o problema dos números perfeitos.
Euler continuou onde Descartes havia parado e contribuiu com 3 avanços neste problema. Em 1732 descobriu o 8.º número perfeito, (231–1)×230, comprovando que 231–1 era primo, tal como Mersenne previra.
Para as outras descobertas, ele inventou uma nova arma – a função sigma, que devolve a soma de todos os divisores de um número, incluindo ele próprio. Por exemplo, sigma(6) = 1+2+3+6 = 12, que é o dobro de 6. Tal facto é verdade para todos os números perfeitos. Isso poderá parecer uma pequena mudança, mas é extremamente poderosa.
Com esta função, Euler alcançou a sua 2.ª descoberta e fez o que Descartes não conseguiu. Provou que todo o número par perfeito tem a forma de Euclides. Este Teorema de Euclides-Euler resolveu um problema com 1600 anos, para além de provar a 4.ª conjetura de Nicómaco.
Euler também queria resolver o problema dos números perfeitos ímpares. Assim, para a sua 3.ª descoberta, decidiu provar a outra afirmação de Descartes “todo o número perfeito ímpar deve ter uma forma específica, ser o produto de um número primo pelo quadrado de outro número distinto.” Mas foi mais longe e mostrou que um número perfeito ímpar N deve satisfazer a condição N = p4k+1 × M2. Contudo, não conseguiu provar se tais números existiam ou não, tendo escrito “se existem números perfeitos ímpares é uma questão muito difícil”.
Nos 150 anos seguintes, pouco progresso foi feito, não se descobrindo outros números perfeitos. Os matemáticos continuaram à sua procura e a maioria começou com a lista de primos proposta por Mersenne. O próximo do rol seria 267–1. Porém, 230 anos depois dele ter publicado a sua lista, Édouard Lucas (1842 – 1891) provou que esse número não era primo.
Frank Nelson Cole (1861 – 1926), 27 anos depois, deu uma palestra para a Sociedade Americana de Matemática. Sem dizer uma única palavra, caminhou para um quadro negro e escreveu que 267–1 = 141 573 952 589 676 412 927. Depois caminhou para o outro quadro ao lado e escreveu 141 573 952 589 676 412 927 = 193 707 721 × 761 838 257 287. Sentou-se e o público entusiasmado aplaudiu. O que aconteceu para tanta euforia? Cole havia fatorizado 267–1, provando que não era primo. Mais tarde, admitiu que levou 3 anos para determinar os fatores. Um computador moderno leva menos de 1 segundo a encontrar estes mesmos fatores.
Até 1952 descobriram-se apenas 12 primos de Mersenne e, consequentemente, 12 números perfeitos. A principal dificuldade foi verificar se os números grandes de Mersenne eram realmente primos. Nesse mesmo ano, o matemático Raphael Robinson (1911 – 1995) escreveu um programa de computador para realizar esta tarefa e executou-o no computador mais rápido da época, o SWAC. Em apenas 10 meses ele encontrou os 5 próximos números de Mersenne e os correspondentes números perfeitos. Nos 50 anos seguintes, novos números de Mersenne foram descobertos em rápida sucessão, recorrendo-se a computadores.
De referir que, em 1952, o maior número de Mersenne era 22281–1, que tem 687 algarismos. Nos finais de 1994, era 2859433–1, tendo 258716 algarismos. Com números astronomicamente grandes, a tarefa de encontrar números primos complicou-se, mesmo para supercomputadores.
Assim, em 1996, o cientista da computação George Woltman (1957 – ) lançou o GIMPS – Great Internet Mersenne Prime Search – o qual distribui o trabalho por computadores pessoais ligados através da Internet, permitindo que qualquer pessoa ofereça voluntariamente o seu poder computacional para ajudar na busca dos números primos de Mersenne. O projeto tem sido um êxito.
Em 2017, usando-se o GIMPS, foi descoberto o 50.º primo de Mersenne, 277232917–1, com mais de 23 milhões de algarismos. Para celebrar essa conquista, a editora japonesa Nanairocha publicou o livro “O maior número primo de 2017”, contendo apenas esse número escrito em 719 páginas e que se esgotou em 4 dias. Um ano depois foi descoberto o 51.º primo de Mersenne, 282589933–1, tendo 24 862 048 algarismos e com direito a outro livro.
Até hoje, este é o maior número primo conhecido. Podemos suspeitar que existe apenas um número finito deles, o que significaria que a 5.ª conjetura de Nicómaco seria falsa, mas esse pode não ser o caso.
E quanto ao problema em aberto da existência de números perfeitos ímpares? A maneira mais fácil de resolvê-lo seria encontrar um exemplo. Uma forma é tomar diferentes números ímpares e averiguar se são perfeitos. Utilizando-se o algoritmo Factor Chain conseguiu-se mostrar que se existir um número perfeito ímpar, ele deve ser maior do que 102200, o que é uma tarefa muito difícil mesmo para um supercomputador.
Segundo Pace Nielsen, matemático da Brigham Young University, “tem-se tentado abordar esse problema criando cada vez mais condições que os números perfeitos ímpares têm de satisfazer. Uma teia de condições. Mas até agora não funcionou.” Resta-nos esperar até que um novo Euler, tão raro quanto os número perfeitos, faça a próxima grande descoberta. Até lá.
Maria do Carmo Martins