Liberdade, Autonomia e Desenvolvimento, eis a trilogia que nos deve orientar para um futuro melhor
Em 1966, encontrava-me no ano final da comissão militar em Angola, prestando serviço no Grupo de Artilharia de Campanha de Luanda, depois da bateria 516,onde fora colocado em rendição individual, ter regressado a Portugal. Comandada pelo capitão Villares Gaspar, um oficial que estivera em Ponta Delgada, no QG de São Braz,a516 era uma unidade operacional muito coesa, pelo que ainda hoje lembro com alguma emoção a despedida que tivemos no cais de Luanda: eu, que ficava; eles, que regressavam. Naquela época, estavam na modaos livros de Jean Lartéguy sobre a guerra da Argélia (“Os centuriões”; “Os pretorianos”), leitura atraente para os oficiais milicianos. Foi assim que, numa tarde de 1965, celebrando o Dia da Artilharia na messe dos oficiais, quando um general me perguntou “o que pensava o nosso alferes-dr. sobre o destino da guerra”, respondi que iria acabar como na Argélia, com uma solução política. Fui logo confinado ao quarto do oficial de serviço, do qual só saí depois da intervenção do comandante do Grupo, Tenente-Coronel Freitas do Amaral, um oficial de elevada craveira intelectual ,a cuja memória rendo aqui homenagem.
Um ano após esta estória, tendo passado à disponibilidade em Luanda e ingressado no Instituto de Investigação Científica de Angola, sempre instilei nos meus alunos do Colégio de D. João II, bem como nos colegas e estudantes da Universidade de Luanda, que a independência de Angola era algo inevitável. Em 1972, acompanhando minha esposa ao Brasil, EUA e Inglaterra, na viagem de finalistas da Faculdade de Medicina de Luanda, tive noção dessa inevitabilidade, confirmada por uma capa da revista Newsweek. Que ,numa foto de 2 guerrilheiros, tirada na mata africana, destacava a frase “Black Africa Moves South”. A partir daí, concorri e obtive uma bolsa da NATO, para mestrado e doutoramento em França, chegando a Lisboa no início de abril de 1974. Avisado por meu irmão, então inspetor da PJ, de que algo estava a preparar-se nas
Forças Armadas, depois do falhado “golpe das Caldas” do mês anterior, contatei de imediato o Ministério do Ultramar, valendo-me do conhecimento angolano do Diretor-Geral Espinha e do Secretário de Estado Pinheiro da Silva, ex-Secretário Provincial de Educação. No aeroporto de Lisboa, ao apresentar os documentos autorizando a saída, o agente da PIDE quis saber como comprara a parka de cabedal com gola de pelo de carneiro, tipo Marlboro country, que na altura envergava. Respondi apresentando o cartão de ex-alferes e os papéis da NATO, remetendo o homem ao silêncio. Voando na SAS, aterrei em Nice a 22 de abril, 3 dias antes do golpe militar dos cravos. Ainda conservo o passaporte com os históricos carimbos.
Na manhã de 25 de abril, ao entrar no laboratório da Estação de Zoologia Agrícola e Luta Biológica de Antibes, onde começara a trabalhar, o técnico Jacques Euverte, um ex-paraquedista da Legião Estrangeira, disse-me que tinha havido um golpe militar em Lisboa e que a tropa estava na rua. Perante a minha incredulidade, deu um murro na mesa onde tratava dos insetos e berrou: “escuta Rádio France, pateta!”, o que fiz de seguida, confirmando a notícia e acalmando o furioso Euverte. Telefonar para Luanda não era fácil, mais ainda nesses dias, pelo que só quando consegui ligação para casa tranquilizei um pouco mais. De França, fui acompanhando a situação, embora as notícias fossem vagas e imprecisas. Nem me apercebia da tragédia que foi a colocação em Angola do “almirante vermelho”, um enviado do MFA que ameaçava os portugueses, a ponto de ter de dormir numa fragata ancorada na baía, com medo das represálias. O MFA também teve os seus carrascos, mas ninguém fala deles. A esperança numa transição pacífica em Angola foi desvanecendo, até que um dia, no final de 1974, ao falar com minha mulher para África, ouvi um som de explosão pelo telefone. Perante o meu alarme, ela respondeu calmamente “foi uma bomba lá em baixo na rua”. As pessoas habituam-se à guerra, disse-me mais tarde. Em dezembro de 1974 vim a Ponta Delgada passar o Natal com meus pais e a filha Patrícia (entretanto enviada pela mãe para a segurança dos Açores) e tive ocasião para reunir no Campo de São Francisco com elementos do MAPA-Movimento para a Autonomia do Povo Açoriano. Penso que só então comecei a entender o verdadeiro sentido da ideia de Liberdade trazida pelo 25 de abril, visto que até aí, as preocupações com a família que ficara em Angola ofuscavam tudo o resto. A tranquilidade só veio quando a Dra. Eva, já médica e com a filha Lisa bébé, veio passar 1975 a França, antes de entrar para o velho Hospital da Misericórdia de Ponta Delgada.
Vivi 1975em França, dedicado à investigação científica e preparação académica, mas com alguma atenção à política francesa, onde despontava o Presidente Giscard d’Estaing, que nos anos 90 vim encontrar a liderar o grupo político do Parlamento Europeu que o PSD integrou, ao aderirmos à CEE. E nunca é demais recordar, entre janeiro de 1986 e julho de 1989, tive a responsabilidade de ser o único eurodeputado a representar os Açores, porque o PS só depois das eleições de 1989 colocou um candidato açoriano em lugar elegível na lista nacional. Esta foi, sem dúvida alguma, mais uma face positiva da revolução de abril, que se tem traduzido na total transformação do País e das Regiões Autónomas. Mas o pós-25 de abril também teve faces negativas, desde a política à economia, de que ainda hoje sofremos as consequências. O contragolpe de 25 de novembro de 1975 conteve a caminhada para o desastre, mas a recuperação esteve cheia de altos e baixos, depressões e euforias. Todavia sobrevivemos, conservando o precioso bem da Liberdade, que é preciso preservar a todo o custo, desde logo nas próximas eleições europeias de 9 de junho. Liberdade, Autonomia e Desenvolvimento, eis a trilogia que nos deve orientar para um futuro melhor, 50 anos depois do 25 de abril.
Vasco Garcia