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Elegia da vida como serviço imperfeito e jamais concluído: Grande clássico moderno da literatura europeia

É uma novela empolgante, um cruzamento de parábola e saga, tudo numa viagem de resistência heroica em que um homem simples, todos os anos, no primeiro domingo do Advento, encaminha-se para as montanhas, sujeita-se a todos os riscos, para regatar as ovelhas perdidas nas altas pastagens. Ele chama-se Benedikt, faz-se acompanhar de um cão e de um carneiro. Prepara-se agora para 27ª viagem, a derradeira caminhada e o escritor, a quem coube um lugar cimeiro das letras islandesas, faz-nos emergir numa caminhada de solidão e intempérie, empolga-nos com a carga metafórica daquele serviço público prestado à comunidade é o que há de mais sublime na existência humana – Advento, por Gunnar Gunnarsson, Cavalo de Ferro/Penguin RandomHouse, 2024.
Esse homem simples que domina por completo a tessitura da novela não sabe ao certo o que significa a palavra Advento, “mas era uma palavra que continha, em si, a expetativa, antecipação, preparação. Com o passar dos anos, aquela palavra passara a conter, para ele, toda a sua vida. Afinal, o que era a sua vida, o que era a vida humana na terra, se não um serviço imperfeito e jamais concluído, que, contudo, valia a pena realizar por conta desta expetativa, antecipação e preparação que o elevavam e o imbuíam de significado e valor?”
A parábola é a expedição, encaminhar para lugar seguro as ovelhas perdidas, para não morrerem de frio ou à fome nas montanhas, isto antes que a festa do Advento espalhasse a sua bênção sobre a terra. Trata-se de um texto ágil num mundo pintado de branco, a neve da superfície e a neve das montanhas, e as inclemências da natureza, fúrias que não demovem esta vontade indómita de cuidar quem está em risco. Benedikt e os animais saem da aldeia em direção à última quinta antes de entrarem nas montanhas, as conversas são singelas, há nevões no exterior e calor humano dentro de casa. O desafio é temível, o céu invernal e pesado, anda-se cercado pelo gelo, caem flocos brancos. Vai-se encontrando com agricultores, fazem-lhe reparos para os riscos especiais desta viagem. Ficamos a saber que ele é apenas um camponês, um jornaleiro. Há os locais de pernoita, ficamos a saber algo sobre este homem simples que teme não estar rodeado de seres humanos e teme que Deus se esqueça dele. Não há vacilações na hospitalidade e o autor aproveita qualquer oportunidade para desfiar argumentos da parábola: “É curioso como os seres humanos que caminham juntos na escuridão atravessam as trevas como que sozinhos sem companhia. Como que fechados em si. Mas a solidão das trevas é diferente da solidão das montanhas, ali, nas terras habitadas, não se vive uma solidão absoluta e o isolamento não é tão profundo quanto o que flui do vazio do deserto gelado e dos penhascos rochosos.”
Cresce a intempérie, varre os telhados gelados, era como se houvesse soltado na noite escura uma horda de criaturas selvagens e furiosas. De abrigo em abrigo, alguém o vai acompanhar agora, de nome Hákon, e depois mais gente. E dá-se uma pincelada quanto a tão terrível viagem em grupo: “Raras vezes se tentavam entender uns aos outros, e mais valia que nem se dessem a esse trabalho, porque não se faziam ouvir por mais que gritassem: o vento despedaçava-lhes invariavelmente as palavras antes de as arrastar, em farrapos, pelas balas de neve.” Encontra-se uma cabana onde aqueles quatro homens vão descansar antes de regressarem à tempestade. Começa a recolha das ovelhas, a sua procura não é nada fácil, Benedikt cambaleia de cansaço, procura desesperadamente a sua cabana nas montanhas, por vezes podem esquiar. Tratados os animais dos seus companheiros, chega a hora de partirem, viaja-se à luz das estrelas. Desfia o autor outra meada da parábola, a vida de Benedikt resumia-se àquela caminhada, ele estava pronto para tudo e para se despedir de tudo, já nada o prendia o mundo. Viagem penosa, este homem simples caminha todo aquele tempo a direção certa, demanda um novo abrigo, nova reparação de forças e depois, nova viagem em que Benedikt dá por si imerso em escuridão.
E aqui estamos nas montanhas em busca das ovelhas, nova dimensão da parábola, corporizada em Benedikt, a missão do homem é encontrar uma solução nunca desistir, lutar contra o destino e as vicissitudes. Ele atravessa o rio glacial de esquis, estamos na antevéspera do Natal, arrebanhou os animais, já está de regresso, o serviço à comunidade chegou temporariamente ao seu termo, é a hora de, em toda a placidez, ele poder sentir as alegrias do Advento.
Um outro escritor finlandês, autor do posfácio, sublinha que o estilo de Advento é semelhante ao de um conto de fadas, ele revela-se um mestre do estilo na descrição das condições climáticos, tem o poder soberano de se mostrar convincente nas suas descrições, faz de Benedikt uma das aventuranças cristãs, ele é um bem-aventurado, ganhará o reino dos Céus, é desenhado com uma grande inteligência natural e emocional, é extremamente sensível à natureza e aos animais, conhece até ao mais ínfimo pormenor as ervas que cobrem os prados no verão e como se manifesta o inverno nas montanhas. Esta obra-prima da literatura europeia pode ser entendida como uma alegoria dos princípios magnos do cristianismo, há também quem possa dizer que esta caminhada se pauta pelos princípios basilares da ecologia. E não são poucos os críticos literários que comentam a influência que a obra teve a inspirar relatos como aqueles que escreveram Hemingway ou Conrad, pois este Advento é o drama da resistência heroica, a bem-aventurança dos homens simples que cuidam dos outros sem nenhum oportunismo de ganhar o reino dos Céus.
De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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