Não deixa de ser curioso encontrar contradições em quem acusa os outros daquilo que acaba por fazer. As relações humanas estão cheias de exemplos – «o ministro é um bandido porque foge aos impostos, mas se eu pudesse fugir aos impostos era mesmo impecável» – e a política, por maioria de razões, está ainda mais pejada deles.
Se olharmos para ela na perspetiva de Hegel, no sentido da busca do reconhecimento como forma de luta subjetiva que leva ao avançar das sociedades, então cada um dos homens e mulheres que pratica a arte da política procura, no fundo, alcançar uma meta idealista de reconhecimento e de autorreconhecimento.
E esta busca leva, inúmeras vezes durante o processo histórico, à adoção de diferentes definições de moralidade e de aplicabilidade moral das ideias, das definições e dos próprios ideais e conceitos civilizacionais. Na atualidade política, estas noções variam cada vez mais, com mais velocidade, e com a muito permanente retorcida capacidade de se dizer tudo e o seu contrário.
Os partidos mais extremistas são, normalmente e em particular nas suas idades mais juvenis, belos exemplos de como se consegue ser profundamente populista, gravitando a verdade da perspetiva que melhor favorece a sua propaganda, exercitando enormes prerrogativas de contradições morais de cada vez que é necessário.
O tema dos tachos é um desses terrenos férteis nos quais qualquer partido radical, de direita ou esquerda, habitualmente ergue grandes princípios filosóficos para demonstrar como “eles são só tachos” e “nós somos só gente séria, de trabalho”. Um exemplo concreto que há uns anos teve o seu debate. Um familiar do antigo líder comunista que teria sido contratado por uma autarquia liderada pelos comunistas para alguns trabalhos de reparação e manutenção, com um ajuste direto bastante significativo, para as funções que qualquer assistente operacional poderia executar.
O que aos olhos de muitos portugueses se atentou como a um tacho, na perspetiva dos visados era outra coisa qualquer. Eventualmente se o sujeito contratado, com as mesmas condições num município de outra cor, fosse familiar de um social-democrata ou socialista, seria com certeza acusado de ter prevaricado com a célebre frase dos “tachos para os amigos”. Neste caso, familiares. É sangue que os portugueses adoram ver. Mesmo que acusem o presidente da junta de não ter dado um jeito ao filho.
Esta fórmula nunca acaba enquanto não terminarem os partidos que a utilizam. O problema, nestas coisas, é que por vezes o feitiço vira-se contra o feiticeiro. O mesmo é dizer que este princípio assassino de caráter não costuma ser muito bem visto quando faz ricochete. E acaba sempre por fazer ricochete quando as forças políticas atingem alguma maioridade, depois de, na sua juventude, terem tido o alto patrocínio da inimputabilidade nesta matéria. E quando, como faz o partido de direita radical Chega, acusa qualquer um, com funções de soberania ou outras que lhes insuflam o salário, então cair em contradição é ainda mais fácil do que cair em tentação. Veja-se o caso de Diogo Pacheco de Amorim que, após a sua eleição para uma das vice-presidências do parlamento nacional, irá acrescer à remuneração de deputado, um considerável valor respeitante a despesas de representação.
Estamos a falar em mais de mil euros, muito acima do salário mínimo nacional. Poderá este bónus ser considerado um tacho? Bem, sim e não. Sim, se forem os outros. Não, se forem os próprios, neste caso, os próprios deputados da direita radical.
Mais curioso, para terminar esta história, é que Pedro Frazão, deputado do Chega há duas legislaturas, membro do Conselho de Administração, tem precisamente o mesmo salário de um vice-presidente. E querem saber a parte mais curiosa? Foi este parlamentar que acusou outros, no caso o presidente da casa da democracia, de “ter um tacho”. Assim sendo, resta a dúvida. E poderíamos colocá-la a José Pacheco: o Chega tem tachos ou não? Conhecendo-lhe a perspicácia argumentativa podemos torcer pela resposta. Sim, se for sobre eles. Não, se for sobre nós. O capital não tinha pátria. Mas parece que os tachos têm sempre dono. Os outros.
Fernando Marta