Poeta Carlos Bessa publica reunião dos seus livros pela editora Tinta-da-China. “Vim no início da última década do século passado e nunca mais parti. Os Açores entraram na minha vida pela fotografia. Vi fotos de impérios e da população de diferentes ilhas e isso despertou em mim a imensa curiosidade de vir, de aprender, de descobrir, de conhecer.” Uma conversa escrita entre Vítor Teves e Carlos Bessa.”
Carlos, vamos começar pelo “princípio”. Como é que o Carlos Bessa, nascido em 1967, em Viana do Castelo, veio parar aos Açores? Dito de outro modo, desde quando é que os Açores se misturam na vida de Carlos Bessa? Isso porque, a ver pelo seu mais recente livro, Livros Reunidos, Tinta-da-China (2024), eles sempre estiveram na sua poesia, desde o seu livro Legenda (1995). Há algum início renegado antes desse livro?
Vim para os Açores porque queria conhecer as nove ilhas do arquipélago. Vim no início da última década do século passado e nunca mais parti. Os Açores entraram na minha vida pela fotografia. Vi fotos de impérios e da população de diferentes ilhas e isso despertou em mim a imensa curiosidade de vir, de aprender, de descobrir, de conhecer. Inicialmente, sem pensar que iria permanecer. Quanto à escrita, parte, como sempre, do que vivo. Quando cheguei aos Açores, já escrevia, já tinha feito letras para uma banda de garagem, já tinha publicado versos. Não renego nem o meu passado, nem as minhas paixões e raízes, nem a história que recebi ou que ajudei a fazer. Sou a súmula disso e de muito mais (e neste mais há sujidades). Embora também seja pouco dado a arquivos.
Começo por aqui. Os Açores estão na sua poesia desde sempre, pelo menos neste livro recente. Foi uma surpresa encontrar poemas como “Graciosa”, entre outros, já no seu primeiro livro. E é curioso afirmar o seguinte: para o leitor de 2024, os seus poemas, mesmo os desse seu primeiro livro, são de uma atualidade impressionante. Há verdade nessas minhas palavras e também elogio. Quer comentar?
Alegram-me as suas palavras e direi que foi com espanto que ao ler, na Graciosa, um livro de Steinbeck, “A um deus desconhecido”, me deparei com uma “longa procissão de crianças” açorianas em honra do Espírito Santo. E repare, nunca fui crente. Esse poema, que se encontra não no primeiro, mas no segundo livro, foi redigido depois de, precisamente nessa ilha, ter assistido, pela primeira vez, a essa manifestação popular, numa época do ano em que as flores exalam um perfume intenso e em que o céu parece, por vezes, rebentar de lágrimas e desespero. Mas, nesse imenso cenário, o que mais me impressionou foram alguns homens que, pela sua postura e idade, me inquietaram, como se também eles tivessem vivido essa fome de que fala Pascoaes em “O Empecido”, quando diz que até as pedras cheiram a pão. O poema está longe de ser bem conseguido, porque lhe falta a alegria escondida do aleijão.
Embora conhecendo o Carlos Bessa, há já alguns anos, desde 2019, e já conhecendo alguns dos seus poemas, este livro apresenta-se aos meus olhos, e provavelmente à maioria dos leitores, como um novo poeta. Já não publicava nada desde a obra Pai, de 2017. Aqui é inevitável, até por questões geracionais, a comparação com Jorge Gomes de Miranda – poeta que aparece num dos seus poemas -, ou seja, estamos perante o recuperar de um poeta de excelência esquecido. Aqui o elogio é tanto para o Miranda como para o Bessa – ambos com recentes obras na Tinta-da-china. Quer comentar?
Jorge Gomes Miranda foi um amigo com quem discuti muito e que me fez descobrir excelentes poemas de outras línguas. É um poeta que leio com prazer. Há já quase duas décadas que não o vejo. Fiquei feliz por ter voltado a publicar. “Nova identidade”, “A última pedra” e “Emoção artificial” são, que eu saiba, os últimos livros que publicou.
O público menos informado não saberá que o Carlos Bessa fez parte de um “movimento” de poetas chamado “Poetas Sem Qualidades” – nome de uma antologia organizada em 2001 pelo também poeta Manuel de Freitas. A expressão Poetas sem qualidades, uma referência à obra de Robert Musil, implica, muito sucintamente, o seu oposto: poetas com imensas qualidades num tempo, ele sim, sem grandes qualidades. Dessa antologia, também faziam parte poetas como Carlos Alberto Machado, Ana Paula Inácio, Rui Pires Cabral entre outros. Para a minha geração [parte dela] essa antologia tornou-se um marco, e uma extensão da própria Geração do Cartucho dos anos 70. O Carlos quer falar desse episódio? Qual era o clima entre esses diferentes poetas nessa altura? Visto a esse tempo há efectivamente pontos de ligação.
Não houve qualquer movimento, tão-pouco grupo. Trata-se de uma antologia do Manuel de Freitas que, à época, encontrou nos poemas de oito nomes e um anónimo (o próprio antologiador?) o pretexto para uma pedrada no charco. Ele próprio já não se revê nem nos nomes nem nas escolhas. Somos um país onde se lê pouco, mas se publica muito, e onde há um excesso de vaidades e de egos. Seja na poesia, seja na prosa. E onde há sempre uns quantos com a tara de quererem definir o gosto dos outros. O melhor será reter uma das afirmações do prefácio, “nisto da poesia o melhor é sempre andar sozinho”. De resto, creio que essa antologia nos mostrou uma das qualidades do próprio Manuel de Freitas, a de editor.
O seu livro Dezanove maneiras de fazer a mesma pergunta (2007) – um dos títulos mais originais de todos os seus livros – aponta para a ideia de Literatura/Poesia como resultado da multiplicidade de estilos, de retórica, de diferentes “inclinações”. Nesse livro assiste-se ao acentuar de questões metapoéticas – o “chiché”, a “composição”, “Carta a um amigo literário”, “Esta quase hagiografia”, “Fala de um poeta maldito”, etc. [Aqui permita-me um parenteses: da mais recente idiotice insular encontrei em jornais “Metarealismo” (somente para apontar o grau de ignorância que graça algumas das letras insulares.] A metapoética é uma característica que se vai intensificar na primeira parte do seu último livro. Quer comentar?
Dizer apenas isto: o quotidiano é o abismo, a linguagem o seu recipiente. E talvez a poesia seja, por vezes, uma interpretação despida do tráfico e da rotina.
De todos os seus livros, aquele que mais gostei, e que mais minuciosamente andei a ler, foi o último, o seu inédito livro final Alfenim e Perrixil. A minha leitura, sendo apenas uma leitura, não deixou de ver nesse seu livro uma evocação do embate de duas poéticas insulares [também nacionais] – uma herdeira dos poetas dos anos 70, nomeadamente João Miguel Fernandes Jorge (basta recordar a evocação a Bellis Azorica no primeiro poema desse livro) e da geração dos Poetas Sem Qualidades – e uma outra na linha de Herberto Hélder e outros seus “seguidores” como Emanuel Jorge Botelho e outros. Leio essa divisão também como sendo a divisão entre o Amor e a uma certa amargura, um certo queixume, uma divisão entre a alegria e a tristeza. E, inevitavelmente, uma de leve evocação a Lamarim (Vítor Teves, 2019) não fosse “Alfenim” terminar em “im”. Quer falar dessa dualidade final?
Vítor, sou um mau leitor de mim próprio. Deixo as interpretações e o mais para leitores, críticos e exegetas. Quanto ao modo como interpreta a poesia portuguesa deste último meio século, não partilho do seu ponto de vista. A estratigrafia da nossa poesia é, nesse como noutros períodos, indissociável da que se escreve noutras línguas. Houve um tempo de predominância do francês, mas já há muito que os nossos poetas se sentem familiarizados com o inglês (e as suas variantes) e também com o castelhano. Muitas das questões ainda prementes na poesia do nosso tempo foram definidas nos prefácios de William Wordsworth, com explicitações pertinentes que se podem encontrar em “The poetry of experience” (1957), de Langbaum e em “Du lyrisme” (2000), de Maulpoix. Se me pudesse distanciar de mim, talvez fosse capaz de deambular pela imensa rede dos vasos comunicantes.
Nesse último livro, os poemas da primeira parte apresentam um título, digamos, duplo: um mais geral que aponta normalmente para uma região específica dos Açores e um outro que remete para uma figura da retórica. Gostei muito dessa solução! À medida que os poemas são apresentados são também apresentadas as pistas para a análise desses mesmos poemas e de outros. Assim encontramos figuras da retórica, da História da Teoria da Literatura como: Paralipse, Incipit, Parataxe, Estribote, Silepse, etc. Ou seja, estamos perante uma aparente poesia “fácil” mas cheia de artifícios de uma riqueza extrema, sem que haja apenas o foco “na palavra”. E, nesse sentido, a linha vai remeter a poetas como Joaquim Manuel Magalhães (entre os dois encontro a repetição constante da tríade do vocabulário) e a João Miguel Fernandes Jorge (nomeadamente o uso de plantas dos Açores na sua formula científica). Quer comentar e acrescentar mais algumas influências pessoais? Ou acrescentar alguma coisa nessa análise?
Lemos sempre com as nossas mundivi-dências e conhecimentos. Apenas posso dizer que, para mim, a poesia não tem de ser “difícil” ou complicada. E que, dentro dela, também cabem o humor, o jogo e aquelas outras atividades que há séculos seduzem e encantam os seres humanos. Ou a dor, o asco, a fúria. Nomes? Alberto Pimenta, Fernando Assis Pacheco, Fernando Guerreiro, Gil de Carvalho, para referir apenas quatro poetas tão diferentes e tão esquecidos.
A sua poesia também apresenta preciosos jogos linguísticos e alegorias. Vejamos dois exemplos, os seguintes versos: “contendas e contrafortes” (poema “Cerrados”) que podemos também ler como: “com tendas e contra fortes” [tendas versus fortes; contendas literárias entre fracos (que vivem em tendas) contra fortes (fortes que vivem em contrafortes)]; ou ainda o verso: “um burro a trotar canada acima” (poema “Ribeira Grande, Metalepse”) que aponta para a alegoria de alguém que vai subindo com o seu esforço pessoal e solitário o patamar social. Aqui não podemos esquecer a imagem do burro (um dos animais mais inteligentes do reino animal) como personagem central no cinema de Robert Bresson (“Au hazard Baltazar”, filme de 1966) e presença assídua na poesia de João Miguel Fernandes Jorge. Além de burros, há gaivotas, leões e hienas, tudo presença do reino animal da poesia. Quer comentar?
Há vários animais de outras espécies, como aves, caracóis e diferentes insetos. Não se trata, creio, de nenhum bestiário, tão-só de presenças quotidianas. Leões e hienas comparecem por via de uma citação, cuja interpretação deixo para os leitores. Quanto ao burro, é (ou era) uma presença no quotidiano rural da Graciosa ou de S. Jorge, pelo menos até há uns anos e um animal que muito aprecio. A Ribeira Grande é, creio, o lugar onde se fabricam peças de bela olaria, que nos idos de 90 adquiri e que continuam a fascinar-me, pelo material, pelas formas, pelas cores.
Apesar de alguma semelhança com outro poeta insular (refiro-me somente ao título do seu último livro), o Carlos Bessa vai além da mera piada irónica e do mero ataque fácil e banal. O Carlos Bessa consegue fazer da ironia e do humor verdadeira poesia, com uma subtileza que falta a alguns velhos e a muitos jovens. [A mim falta essa subtileza, mas tenho a desculpa, ainda, a idade! (risos)]. Isso para lhe perguntar o seguinte: que “papel deve ter a poesia” na nossa sociedade, ela deve somente repetir cânones do passado (numa repetição que não passa de repetição) ou viver o seu tempo (sem, contudo, esquecer o passado)? Em que espaço ou equilíbrio deve existir? Quer comentar?
Se entendermos a poesia como uma arte, é não só a expressão de um indivíduo, como também uma construção única. A escolha das palavras, os assuntos de que fala, os processos de que se serve refletem sempre o passado e o presente. Para alguns, a poesia será a expressão do um contra todos. Outros defenderam que ela é feita por todos contra um. Para uns, deve ser obscura e difícil. Para outros, o mais cristalina possível. Como nunca gostei de tiranias e tendo em conta as diferentes histórias da literatura e a multiplicidade de registos, a poesia será o que cada poeta decidir, com a ressalva de que para que isso seja possível, o poeta deve ser antes de tudo um bom leitor, deve conhecer os caminhos por que a poesia tem andado nestes séculos que leva de existência. Assim, não será um mero epígono.
Como analisa a produção de poesia nos Açores. Acha que as editoras existentes têm conseguido abranger e apresentar a pluralidade dos autores e correntes existentes nos Açores? Ou entende que estamos ainda muito presos a soluções, esquemas e nomes (com linhagem vincada na testa) que dominam o ambiente? Terão as “contendas” mais recentes servido para abalar alguma inactividade reinante – as duas no seu devido contexto, os doces (Alfenim) e os salgados (Perrixil) – ou tudo continua adormecidamente na mesma?
Os Açores têm tido um número razoável de poetas. Uns mais conhecidos e lidos, outros menos. Hoje é fácil publicar, quer em papel, quer em digital. As editoras fazem o que podem, tendo em conta que parece sempre haver mais gente a escrever do que a ler. As tiragens são cada vez mais pequenas, o espaço nos jornais é cada vez mais residual, o ensino tem-se revelado incapaz de dar a conhecer a história literária do país e da região, sem esquecer que grande parte das pessoas não tem qualquer interesse pela poesia ou pela prosa. Apesar disso, há, em algumas ilhas, gente que se encontra para ler poesia e para falar dela e há programas de rádio e televisão locais e regionais que dão espaço a poetas açorianos. Há mais do que uma editora açoriana a publicar autores de cá. E tem havido vários encontros de escritores com a presença de diferentes poetas. O Instituto Açoriano de Cultura, por exemplo, tem não só editado alguns livros de poesia, como tem tentado divulgar alguma da poesia que se faz na região. As bibliotecas municipais poderiam talvez, se houvesse outros meios e formação de quem nelas trabalha, dar a conhecer livros, poemas, autores. Porque é disso que os autores precisam, de leitores.
Resta-me, para terminar, apresentar os parabéns pelo novo livro e também pelo trabalho desenvolvido junto do Instituto Açoriano de Cultura, nomeadamente na republicação ou apresentação de nomes esquecidos da poesia açoriana, um produto, desde Pedro da Silveira, ganho pela pertinência e qualidade. Resta-me lançar a faísca final: para quando uma série de poetas vivos, e jovens, uma nova geração que marque, e seja representativa dos tempos de hoje apoiada pelo Instituto Açoriano de Cultura? Uma sem preconceitos religiosos, sexuais, estéticos, raciais, morais ou outros? Obrigado, Bessa!
Agradeço as suas palavras, em meu nome e no do Instituto, que tem dado espaço e voz, através da revista Atlântida, a poetas jovens e menos jovens dos Açores e tem até procurado estabelecer pontes entre os diferentes arqui-pélagos da Macaronésia no que à poesia diz respeito. Um trabalho parco e insuficiente, que necessita, com urgência, de visão política, ou seja, que se entenda a literatura como parte da riqueza e do património de uma região e de um país, mesmo quando as vozes sejam incómodas, quer moral e politicamente, quer esteticamente. Nos Açores, como no Continente, continua a entender-se a literatura pela perspetiva do negócio, descurando o direito constitucional à não-discriminação. Discriminação que continua a ser um não-assunto. Ninguém quer saber. Além de ser evidente que a maior parte da classe política, cá e lá fora, como não lê, se limita a repetir meia-dúzia de lugares comuns, de que, pelos vistos, nem se apercebe e que também não encontra oposição nos cidadãos que, 50 anos depois da ditadura, continuam a revelar índices medíocres de leitura. Noutras áreas, há o costume de consultar os que conhecem, mas agora, como parecem andar todos entretidos com os currículos pessoais, talvez se dê o caso de uma das cadeiras ser a política do vazio.